Resgate da memória inventada

Quando alguém diz que escreveu um livro “despretensiosamente”, desconfie. Afinal, se uma pessoa dedica seu tempo a escrever e depois batalha pela publicação e divulgação da obra, é evidente que há alguma pretensão
Wilson Bueno, autor de “Mar paraguayo”
01/08/2000

Quando alguém diz que escreveu um livro “despretensiosamente”, desconfie. Afinal, se uma pessoa dedica seu tempo a escrever e depois batalha pela publicação e divulgação da obra, é evidente que há alguma pretensão. E tem mais: todo escritor deseja ser eterno. Então, qual seria a melhor maneira de se eternizar, literariamente falando? Ficando aqui mesmo no Brasil, ninguém melhor do que Machado de Assis para se tomar como exemplo de grande escritor, que usou uma linguagem exata — dominando como poucos a gramática — e que até hoje, um século depois de seu aparecimento, é lido e compreendido.

Seguindo o raciocínio do parágrafo anterior, surge outra pergunta: os escritores que praticam experimentalismo com a linguagem têm valor?  Alguém poderia responder que uma das funções dos experimentalistas é romper as regras da norma culta, provocando avanços no idioma. Os leitores e as leitoras do Rascunho devem querer saber por que estou levantando todas essas questões e o motivo de tanta indagação é justificado diante da publicação do mais recente livro do escritor paranaense Wilson Bueno — Meu Tio Roseno, a Cavalo (Editora 34, 85 págs.).

Tudo aquilo que é narrado “aconteceu” antes do dia 13 de março de 1949, data do nascimento do narrador que conta uma aventura de seu tio Roseno, também conhecido como Roseéno, Ros, Roseveno, Rosano, entre outros nomes. O protagonista percorrerá cinqüenta léguas e meia montado no cavalo Brioso — partindo do entroncamento do Breu com o Laranjinha com destino a Ribeirão do Pinhal — porque recebeu o anúncio do nascimento de sua filha, que será chamada Andradazil e que ainda está no ventre da bugra Doroí.

Durante sete céus e seis entrecéus, Roseno viaja a cavalo vivendo e observando situações que se passam no interior do Paraná. No entanto, Wilson Bueno — necessariamente — não recria causos nem estórias provenientes da cultura oral, a exemplo do que acontece no recém lançado Pensão Alto Paraná (Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 151 págs.), coletânea que reúne oito contos de Domingos Pellegrini, que faz um resgate dos costumes e da vida dos habitantes da região norte paranaense da metade do século 20. O enredo de Meu Tio Roseno, a Cavalo tende mais para a imaginação do que para a realidade, apesar de também apresentar referências do mundo antes de 1949, como o narrador insiste em repetir no decorrer das páginas.

Em seu percurso, o cavaleiro andante Roseno observa boitatás ou fogos-fátuos, cadáveres pendurados em cruzes espetadas na areia, até descer do cavalo para se hospedar em um hotel e — a pé — puxa a barba de uma mulher barbada, briga com meganhas e, novamente em cima de seu cavalo Brioso, ainda enfrenta chuvas e ventanias antes de chegar ao local onde deseja. O protagonista é tocador de sanfona e capador de galo, mas não pratica estas atividades durante a viagem que lhe proporciona conhecer, por exemplo, bugres, caboclos, capiaus, fazendeiros, índios guaranis, invasores, “paraguayos”, peões, sitiantes e vaqueiros.

Meu Tio Roseno… apresenta um enredo simples e denuncia que Bueno se preocupa mais com a elaboração da linguagem, misturando português com espanhol e outras línguas. O autor explicou que ainda utiliza “paulistês”, “paranaensês”, “fronteiriço” e até um idioma indígena — tanto que o livro traz em suas últimas quatro páginas um “Elucidário Guarani”. Um exemplo desse turbilhão da linguagem de Bueno: “Periplo de agua y espuma, hetavé, hi’á, nosso tio e os rios pequenos, o Mitãchu’í assanhado coleando, e fino, assim de asas, o Iruná, o Agriãozinho, o Verde, e o Corasí’iví, neblina, picaflor, com o seu serpenteio miúdo, penugem, safira d’água por onde, prenúncio de chuvas, a borboletinha miruá, de intenso tijolo, faz ondular em ouro, aos milhares, enxames, a cambiante superfície, acendendo e apagando; o revôo da miruá, aos rios pequenos confundida, tapete em flor, era como se o Panambi-iví undoso andasse — ocre, arisco, breve transluz” (pág. 61).

O experimentalismo não está presente em todo o livro, mas apenas em alguns momentos e, assim, as 85 páginas foram suficientes para que o autor desse seu recado. Diferente de livros escritos de maneira convencional, o texto de Meu Tio Roseno… exige esforço do leitor e — vamos supor que — se a obra tivesse 400 páginas, pouquíssimas pessoas chegariam até o final.

A narrativa é marcada por algumas repetições constantes que têm a finalidade de lembrar ao leitor que a aventura de Roseno antecedeu tanto o nascimento do narrador quanto a Guerra do Paranavaí, além do aviso de que o protagonista cavalga a fim de acompanhar o nascimento de sua filha que receberá o nome Andradazil. Estas observações podem irritar alguns leitores mas tendem também a motivar algumas pessoas a prosseguirem ansiosamente até o final do enredo, que reserva uma grata surpresa. Sem querer ser desmancha-prazeres — uma vez que o autor se preocupa mais com a linguagem do que com o enredo —quando Roseno finalmente chega ao local por que tanto cavalgou, ele recebe a notícia de que alguns soldados levaram a bugra Dorói, que ainda não havia gerado a sua filha Andradazil.

Se as referências a locais do Paraná fazem com que a narrativa seja rotulada de regionalista, o que confere valor universal ao livro é a presença do mal. Wilson Bueno apresenta uma estória de amor, onde o protagonista de olhos verdes segue em direção de uma mulher de olhos azuis que vai dar à luz sua filha, e no caminho ele depara com inúmeras manifestações da maldade até que — depois de sete céus e seis entrecéus de viagem motivada pela expectativa de batizar Andradazil —, Roseno tem seu objetivo frustrado pela ação de forças “malignas”.

Humilhado pela falta constante de dinheiro e com a finalidade de tornar eterna sua terra natal, James Joyce revolucionou a linguagem ao escrever e publicar — em 1922 — Ulisses, que está ficando para a história da literatura, apesar do livro ser mais citado do que lido. A obra também experimental de Guimarães Rosa, que apresenta neologismos (palavras novas) e traz em sua escrita influências da linguagem oral, é cada dia mais reconhecida e valorizada não apenas no Brasil. É difícil entender os motivos que levam Wilson Bueno a desenvolver experimentalismo lingüístico e só o tempo dirá se a obra dele ficará na história, mas uma afirmação é possível fazer: ao invés de recriar o passado, ele fez o resgate da memória inventada.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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