Obsessão pelo Agora

Quem deseja conhecer uma determinada época pode consultar livros históricos e enciclopédias mas também é possível compreender um período por meio da literatura
Marcelo Mirisola, autor de “O azul do filho morto”
01/09/2000

Quem deseja conhecer uma determinada época pode consultar livros históricos e enciclopédias mas também é possível compreender um período por meio da literatura, uma vez que romances e novelas trazem em seus enredos personagens inseridos no contexto histórico em que as obras foram escritas. O Rio de Janeiro do século passado aparece em alguns livros de Machado de Assis – Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memórias Póstumas de Brás Cubas –, assim como a antiga capital federal do início deste século está presente tanto em Triste Fim de Policarpo Quaresma quanto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha de Lima Barreto, e a “cidade maravilhosa” dos anos cinqüentas serviu de cenário para algumas peças de teatro de Nelson Rodrigues. O leitor que confere um dos textos acima citados entra em contato não apenas com uma narrativa mas também com o passado imortalizado literariamente – mesmo que os autores não tenham escrito pensando na posteridade.

Atualmente diversos prosadores, dos mais variados estilos e calibres, estão fazendo uma espécie de “mapeamento da realidade” e entre eles encontra-se um carioca de 33 anos chamado Marcelo Mirisola, que acaba de lançar O Herói Devolvido (Editora 34, 191 pgs), livro contendo 30 contos narrados em primeira pessoa. O imaginário deste autor inclui a sociedade brasileira contemporânea e também apresenta influência de vários autores – principalmente Charles Bukowski. Sendo assim, o leitor encontrará relatos de relações sexuais do narrador com mulheres – uma diferente em cada conto – como em À Guisa de Orquídeas, Ivete…et Fructum, (relato de um amor perdido) e Eva é nome de buceta.

Em praticamente todas as “narrativas curtas” há descrições de alguma transa e o narrador masculino não se restringe apenas ao sexo feminino, encarando homens também. Em Bié, o sujeito que conduz o texto apaixona-se por uma lésbica e tece comentários a respeito de um assunto abordado no decorrer de todo o livro: “Esse negócio de ‘GLS’ é refugio subversivo.” O homossexualismo é uma alternativa que existe desde a época da Grécia Antiga – por volta de 500 a.C. –, e se no início do século 20 a sociedade discriminava aqueles que se envolviam intimamente com seres do mesmo sexo, atualmente tanto gays como lésbicas e simpatizantes são tolerados e estão presentes em todos os segmentos sociais. Se nos anos setentas os comunistas eram os subversivos, atualmente a opção “GLS” pode ser interpretada como uma atitude contra as regras estabelecidas pela sociedade. Mirisola faz questão de inserir inúmeros personagens homossexuais em seus enredos, como acontece no conto Os Noivos, onde o narrador mantinha relações com um garoto de programa que suicidou-se num banheiro de uma praça de alimentação de um shopping center e, ao recordar suas “experiências”, ele relata a seguinte cena: “Girardi ali, chupando. Tive uma ereção. Enfiei no cu de Girardi. A noiva gozou na boca. Eu gozei na bunda do putão.”

No decorrer das páginas de O Herói Devolvido o leitor encontrará palavras provenientes da linguagem oral como, por exemplo, fodia, pauzão, punhetas, cu, bocetas, putaqueopariu, merda, trepar, bicha, caralho, cagalhões, pica, fudendo, peidos, cocô, foda e veado – sinal de que o autor deseja chocar o público leitor, conservador ou não. No conto  Margô, o enredo – praticamente inexistente – é um pretexto para o narrador emitir seus pontos de vista: “O mundo está cheio de promoções imperdíveis, simbolistas e parnasianos enrustidos, programas infantis e uma confluência de nazistas, chupadores de cacete e publicitários fazendo de tudo para pôr no rabo da gente. Outra coisa. Casamento, sadomasoquismo, inclusive os caralhos de borracha, olimpíadas, curso de inglês, origami, bigode, formatura, palestras, seminários: tudo a mesma merda. Um jeito desesperado que ‘as gentes’ sem talento (e põe sem talento nisso aí) encontraram para adquirir um certo brilho e reconhecimento entre seus pares.”

Mas será que um livro contendo palavras de baixo calão, descrições de cena de sexo e personagens homossexuais provoca espanto? Hoje qualquer pessoa tem acesso a programas de “sacanagem”, seja nos sites especializados na Internet, ou optando por filmes pornográficos pay-per-view disponíveis para quem é assinante de tevê a cabo, como também nos teatros que levam ao palco peças de sexo explícito ao vivo. Se a intenção de Marcelo Mirisola foi abalar a opinião pública, então ele está sendo anacrônico, uma vez que a pornografia tornou-se tão banal que a televisão brasileira exibe diariamente em horário nobre cenas “picantes”, na “novela das oito” ou no “Ratinho”, e convém lembrar ainda que as revistas “proibidas para menores” são responsáveis por boa fatia do faturamento das bancas de jornais.

Depois de 50 anos de atividade em nosso país, ninguém duvida do poder de persuasão da televisão, que é capaz de derrubar um presidente da república e colocar um sociólogo dentro do Palácio do Planalto e também de criar ídolos. Em vários momento de O Herói Devolvido o autor interrompe a narrativa para falar de figuras do nosso imaginário, ora insultando a apresentadora Hebe Camargo, a cantora Fernanda Abreu e o cineasta Quentin Tarantino, ou apenas citando personalidades como o ator Tarcísio Meira, o atleta Oscar Schmidt, a cantora Marina Lima e a instituição “Universal do Reino do Edir”. O narrador não perde uma oportunidade para afirmar categoricamente que odeia o poeta Manoel de Barros e o intelectual Mário de Andrade, revelando sua admiração por Júlio Cortázar e Clarice Lispector, além de insinuar que Jorge Luis Borges e Ayrton Senna foram homossexuais.

Se no romance tradicional – principalmente no romantismo romântico – somente após superar inúmeras dificuldades os personagens ficavam juntos e felizes para sempre, em O Herói Devolvido não há espaço para divagações nem para o amor platônico e o que interessa é ser “feliz” no momento, como ilustra o conto A Garota do Blue Bar (uma fábula): em um dia qualquer – sem que a data mereça ser lembrada – o narrador conhece, por acaso, uma prostituta na fila de um supermercado e, imediatamente, os dois vão para um hotel a fim de concretizar uma rápida relação sexual e – satisfeito o apetite – eles separam-se para nunca mais se encontrar.

Nos três últimos contos do livro – O Nome Disso, Shepardianas e Uma Dança. Dança da Chuva – não existe enredo mas apenas linguagem. Sim, há uma tendência na literatura brasileira, praticada por escritores como Wilson Bueno, Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier e também por Marcelo Mirisola, que consiste em preocupar-se acima de tudo com a linguagem sem dar importância ao conjunto de incidentes que constituem a ação de uma obra de ficção – quase como se estivesse decretada a morte do enredo. Bueno, Karam, Valêncio e Mirisola são “netos” de James Joyce e “filhos bastardos” de Guimarães Rosa, tanto que no conto A Praça do Ovo o narrador comenta o seu envolvimento com prostitutas –“nunca paguei para meter em bucetas” – revelando preferir sexo anal e faz uma confissão “esclarecedora”: “Perdi o cabaço num sobrado na rua João Guimarães Rosa. Curioso, né?”.

O Herói Devolvido traz reflexos da realidade mas inclui influências literárias, repertório pop e a imaginação do autor, que criou um universo ficcional onde os personagens estabelecem relações passageiras e superficiais, sem que a ameaça da aids impeça que eles tenham inúmeras transas com incontáveis parceiros. Se o autor despreza o passado e as tradições – “Eu fico puto da vida quando leio uns autores à antiga. Um pouco por falta de romantismo. Um bocado por falta de talento.” – o fato de ele usar personagens homossexuais indica a ausência de esperança no futuro – afinal, gays e lésbicas, necessariamente, não estão interessados em ter filhos nem em perpetuar a espécie. Enfim, muito mais do apenas “retratar” a época em que vive, Marcelo Mirisola quer mesmo é levar até as últimas conseqüências o lema carpe diem, numa espécie de culto, ou melhor, numa obsessão pelo agora.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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