Filosofia é uma palavra pomposa. Ela nos remete invariavelmente — e erroneamente — a homens excêntricos de intelecto superior e certo distanciamento do mundo real, com suas teses que sempre procuram novas formas de especular o inespeculável. Filosofia também é — erroneamente — sinônimo de um tempo em que os homens usavam togas e se reuniam na academia para tentar desvendar os mistérios da alma, muito antes de Freud, este também sobretudo um grande filósofo. O fato é que filosofia parece não combinar de modo algum com o século XX, o século da viagem à Lua e dos bites e bytes e faxes e celulares e as megalópoles com seus bilhões de Homo sapiens.
Vários fatores contribuem para afastar a filosofia do nosso convívio social. Uma delas é a própria Academia, que outorgou-se o direito de só ela falar sobre as derradeiras questões humanas — e o que é pior: de um modo tão hermético que exclui o homem comum, com seus bilhões de neurônios, de compartilhar das descobertas ou, por outra, das dúvidas dessa ciência que se mistura em doses homogêneas com literatura, especialmente com a poesia.
Os acadêmicos acabaram por se tornar guardiões de um conhecimento que sempre quis e precisou ser democrático. No cofre das universidades estão os bacharéis em filosofia, que não nos permitem especular sobre o ser e o nada sartreano sem antes de lido pelo menos cinqüenta livros introdutórios; ou então que não nos permitem admirar o pensamento socrático porque nosso grego arcaico não é tão bom assim. Ou que simplesmente aboliram nomes importantes da história da filosofia por questões ideológicos, mais precisamente o vírus do policiamento marxista, mas isto é outra história.
A filosofia, então, vai morrendo, como de resto, ao que me parece, todas as manifestações intelectuais que nos distinguem dos demais animais — o ornitorrinco inclusive. Moribunda, tísica ou tendo tomado já um cálice de cicuta, eis que assim milagrosamente sempre aparece alguém para lhe curar dos tubérculos do academicismo e do elitismo — falso — a que a filosofia está ligado.
Algumas medidas emergenciais que estão sendo tomadas para que a filosofia sobreviva. O escritor sueco Jostein Gaardner lançou com estrondoso sucesso seu romance O Mundo de Sofia, no qual, entre um que outro mistério menor, dava lições de filosofia a uma menina cheia de dúvidas pertinentes. Houve quem torcesse o nariz para o livro, chamando-o de superficial e reducionista. O Mundo de Sofia, no entanto, é um alento num mundo que, achava-se, havia abolido o pensar genuíno e ingênuo — a matéria-prima do raciocínio humanista mais elaborado que, em suma, é a filosofia. O livro de Gaardner, entretanto, tem como público-alvo jovens. Os adultos, pois, se sentiam meio constrangidos ao ler aquele romance infanto-juvenil, por mais interessante que fossem as informações que ele lhes oferecesse.
Esse constrangimento parece não ter mais razão de ser com o lançamento, pela editora Angra, em parceria com Instituto de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, de um livro que nos permite sentarmos à mesa com os maiores filósofos da história e perguntarmos, informalmente: “E daí, Sócrates, o que você pensa de…?” Chama-se A Escada dos Fundos da Filosofia e a proposta é de que o leitor adentre o mundo das idéias filosóficas desde os pré-socráticos até o niilismo nietzschniano e os jogos lógico-matemáricos de Wittgenstein por um caminho alternativo, que eliminasse os adornos lingüísticos e/ou estéticos da “porta da frente”. A idéia do leitor tomando conhecimento do cotidiano e das principais idéias dos filósofos concomitantemente pode dar a impressão de certo voyeurismo intelectual. Faz parte, porém, da tentativa do filósofo alemão Wilhelm Weischedel em atrair o público leigo para este mundo que insiste em se perguntar de onde viemos, para onde vamos, quem é — se é — Deus e, de uma vez por todas, qual a razão dessa nossa pequena existência.
Tratando o tema sem o jargão ininteligível que faz a cabeça de nove em cada dez “filósofos” modernos, Weischedel nos permite especular sobre a importância de Xantipa, mulher de Sócrates, na obra deste que foi o maior filósofo da Antigüidade. Também nos dá momentos deliciosos como as revelações pecaminosas que levaram Santo Agostinho a ser um dos mais influentes pensadores de toda a Idade Média e Moderna. Com bom humor, Weischedel tira a aura de ininteligibilidade de Kant e Wittgenstein e, o que é melhor no livro, desmistifica Nietzsche como um filósofo fadado à maldição por sua descrença.
Ler A Escada dos Fundos da Filosofia é parecer, após a última página, algo como o pensador de Rodin, sem o pedantismo que o simples e inato ato de filosofar hoje nos sugere.
NIETZSCHE. O filósofo alemão, cuja obra alguns ainda tentam estupidamente veicular ao nazismo, morreu há cem anos, data que o mercado editorial aproveita para reeditar as obras do autor e incrementá-las. Bom para a filosofia — e seus escassos leitores. Por ocasião do centenário de morte de Friedrich Nietzsche, a editora Relume Dumará lança quatro obras de e sobre o autor, entre elas O Crepúsculo dos Ídolos — Ou como Filosofar a Marteladas, uma das melhores obras de Nietzsche, considerado pelo próprio como a melhor obra de sua maturidade. Ainda estão nas livrarias Nietzsche — Metafísica e Niilismo, de Martin Heidegger; e Alegria, a Força Maior, de Clément Rosset, livro que procura a vertente da alegria na obra nietzschniana. Algo no mínimo surpreendente.
HANNAH. Na onda comemorativa também estão os 25 anos de morte da pensadora judia Hannah Arendt, uma das mulheres mais brilhantes do século XX, autora de livros-chave para se entender os regimes totalitários que se instalaram na Europa na primeira metade do século. Dela, o livro que recomendo como imperdível é o ensaio-reportagem Eischmann em Jerusalém, que tem como subtítulo “um estudo sobre a banalidade do banal”. É um estudo político-filosófico sobre o burocrata acusado de ter incrementado todo o esquema logístico que culminou com o Holocausto. Judia, Hannah Arendt mantém-se numa sobriedade surpreendente neste livro.
Também a Relume Dumará lança, por ocasião dos 25 anos de morte da autora, Para uma Política da Amizade – Arendt, Derrida e Foucault, escrito pelo pensador espanhol Francisco Ortega, que pretende, ao unir estes três nomes, ressaltar a importância da amizade na reflexão filosófica.