Há mitos que são inexplicáveis. A literatura é um deles. Deambulam pelo mundo inúmeras idéias, pessoas e conceitos consagrados imerecidamente em páginas de obras de prestígio questionável. O livro ganhou força tamanha através dos séculos, que é difícil combater improbabilidades que alguns deles transformaram em regras. Pelas esquinas dobram universitários achando-se inteligentes porque carregam um Paulo Coelho debaixo do braço, o que os faz pensar que sabem ler. Assim como espraiam-se Décios Pignataris que imaginam dominar a escrita porque têm uma meia dúzia de leitores daquele tipo sob as axilas.
Minha teoria para a força do livro (talvez alguém já tenha dito isto, mas não me lembro) é a herança religiosa. O substantivo livro tornou-se adjetivo sagrado, transportador de verdades supremas, graças ao apelo da Bíblia, papiro de qualidade duvidosa e autenticidade improvável.
A preguiça crônica impede-me de ler muito, mas nesta curta carreira de leitor nunca vi um livro espalhar um conceito tão fictício como o de A Mulher de Trinta Anos, escrito na década de 1830 pelo francês Honoré de Balzac e relançado agora pela Editora Estação Liberdade (228 págs.).
O termo balzaquiana virou sinônimo para uma mulher de 30 anos, presumidamente sensual, charmosa e mestra na arte de amar, como se bastasse derrapar na curva das três dezenas e qualquer polaquinha ressabiada transformaria-se em Catherine Deneuve.
Fica claro no livro que Balzac era chegado numa veterana. Ele até desperdiça algumas linhas para comparar suas preferidas às adolescentes (A mulher de trinta anos a tudo satisfaz, e a moça, sob pena de não ser, a nada deve satisfazer, pág. 124), mas este não é o cerne da obra.
A Mulher de Trinta Anos é uma ode ao desamor. A vida de Julie d’Aiglemont é um infortúnio sem fim. Ela casa-se com o homem errado (um asqueroso coronel de Napoleão) achando que o amava (e vice-versa), e passa a vida com o sentimento de culpa por desejar outros, mas não ter coragem de carregar o adultério de sua consciência para a cama. A desculpa de Julie para si mesma, para o medo de encarar um novo amor, é a incompreensão que a sociedade teria para sua felicidade proibida.
Balzac, ainda que escrevesse de forma chata e confusa, soube como ninguém observar o comportamento mundano (mundo + humano). Mais sociólogo do que escritor, foi o primeiro intelectual a perceber as mudanças causadas pela Revolução Francesa, mesmo ela tendo ocorrido dez anos antes de seu nascimento.
Em uma das frases célebres de A Mulher de Trinta Anos, Balzac afirma que o encanto do amor desapareceu em 1789. A frase é corretíssima, mas incompleta. Se o encanto desapareceu no ano da Revolução, foi porque era apenas o que restava de um sentimento teoricamente mútuo (há amor quando ele não é correspondido?).
O amor evaporara muito antes, quando foi inventado o espelho (não perguntem quando). Desde que viu a própria imagem refletida pela primeira vez, o ser humano passou a desejar uma companhia de formas mais agradáveis que a sua, algo que antes não tinha noção do que era. Eis aí a morte do amor e o nascimento do egoísmo. Muitos relutam na tentativa de amar, mas não ao outro e sim na busca de um preenchimento do vazio da própria alma revelada no espelho, o que nunca é retribuído a não ser nas ilusões (desilusões?) que o ser humano cria.
A Mulher de Trinta Anos é um fiel retrato disso e esse é o grande mote no romance de Balzac, na maioria das vezes mal interpretado. O sofrimento de Julie na verdade não passa da obsessão humana em insistir na tristeza como desculpa pela incapacidade de ser feliz. Julie torna-se uma dependente do sofrimento, acha que ele é necessário. Mas ela não está solitária neste baú da infelicidade, como alerta o pensador francês Pierre Lévy em O Fogo Liberador, lançado neste ano (Iluminuras, 330 págs.): “Quanto mais sofremos, mais o ego se fortalece.”
A Mulher de Trinta Anos poderia ter sido uma obra mais sólida não fosse as divagações do próprio Balzac. A começar pelo título, um dos motivos pelo qual o conceito da mulher fatal aos 30 virou lei, como se isto pudesse trazer realização a alguém, em especial às mulheres. O conceito é equivocado no próprio livro, pois Julie deixou de ser feliz exatamente ao sair da adolescência para entregar-se a um amor que pensava existir.
A ausência de amor na vida de madame d’Aiglemont faz de sua existência um exercício de pura melancolia, o oposto do que qualquer mulher, de qualquer idade, desejaria. Julie mantém-se fiel ao coronel fisicamente, mas ama em segredo lorde Grenville, que acaba morrendo. A melancolia tem seu ápice quando a heroína vê sua própria filha seduzida pelo filho de outro candidato a amante, como acontece no capítulo final.
O sonho feminino do casamento ideal (alguém já ouviu falar nisso?) acaba tornando vítima a própria Marquesa d’Aiglemont, que define sua união com o coronel como “uma prostituição legal.” Este romance de Balzac, apesar da profusão de chavões do senso comum e de clichês literários, poderia ter sido melhor compreendido não fosse pela incoerência entre as seis partes em que se divide. Não há harmonia entre os capítulos e pululam frases da estirpe de Paulo Coelho como “[…]o bulevar, sombreado por grandes árvores frondosas, faz uma curva graciosa como a de uma alameda de floresta verde e silenciosa.[…]”, na página 141.
O fato é que não foi pela perfeição literária que Balzac entrou para a história. A definição mais genial sobre seu estilo veio de Flaubert: “Que formidável escritor ele teria sido, se soubesse escrever!.” Para Marx e Engels, ele foi o que melhor delatou a sociedade resultante da Revolução Francesa, com a destruição dos valores morais e a ascensão do dinheiro e do desejo material.
Nesse sentindo, ainda que resista como um clássico por quase dois séculos, A Mulher de Trinta Anos não é o melhor de Balzac. Na série de romances que intitulou de a Comédia Humana, o autor produziu obras mais bem talhadas e originais. É pena que A Mulher… tenha virado sucesso e ofuscado a luz de genialidades como a Pele de Onagro (principalmente no Brasil). Nesse livro, um jovem prestes a suicidar-se por causa de uma desilusão amorosa recebe uma pele mágica que realiza seus desejos, mas vai encolhendo a cada pedido atendido e encurtando sua vida (pena que não foi Julie d’Aiglemont a ganhar o casaco).
Equívocos e divagações de lado, A Mulher de Trinta Anos é uma obra com méritos por mostrar a luta de consciência enfrentada pela mulher, com sua visão deslumbrada do amor, que não resiste à paixão nacional do homem pelo copinho de cerveja e pela partida de sinuca no boteco da esquina. Desse modo, A Mulher… é um clássico que encontra paralelo em O Estrangeiro, de Albert Camus (Record, 1999, 126 págs.), livro que explorou o jeito masculino de lidar com o amor, ou simplesmente não lidar. Mersault, o complexo e ao mesmo tempo banal personagem criado por Camus para representar todos os homens, teria a resposta para o eterno questionamento de Julie d’Aiglemont em busca das razões de sua infelicidade. Se fosse ele o militar que desposou Julie sem qualquer sentimento que não o carnal, a sofredora teria uma resposta à altura de seu ego para o amor não correspondido: “Acho que não a amo, mas isso não quer dizer nada”, diria o indiferente Mersault à balzaquiana (ou às).
Para derrubar de vez a tese de que A Mulher… foi puramente uma homenagem declarada às senhoras de 30 anos, faltou ao livro de Balzac descrever como se daria a tão propalada conquista, charme e sedução madura. A não ser em duas páginas de um capítulo insosso, chamado justamente de Aos Trinta Anos, Balzac nada revela sobre os atributos físicos e o desempenho amoroso de sua protagonista. A beleza fica por conta dos vestidos, a sensualidade escondida embaixo das anáguas.
Neste ponto, Balzac perde feio para o russo Vladimir Nabokov, autor do polêmico Lolita (Companhia das Letras, 1998, 356 págs.), em que conta as desventuras de um quarentão apaixonado pela sua enteada de 12 anos. Se o assunto é a sensualidade feminina, Nabokov dá um banho em Balzac, numa obra chocante na qual até um pé tamanho 32 vira objeto de desejo (inclusive para os leitores).
Julie ou Lolita, o fato é que nenhuma das duas vence a batalha contra o espelho. A grande vantagem de Lolita é que ainda terá dezoito anos para virar Julie, e nesse tempo poderá enlouquecer muitos homens e fazê-los babar feito crianças.
A Mulher de Trinta Anos retrata fielmente a sociedade de sua época (que não mudou muito, apenas dissimilou) e de como o encanto do amor (o que restava dele) desapareceu em 1789.
Julie d’Aiglemont viveu da esperança de o amor suplantar o ego e morreu infeliz por causa disso. Acreditou naquela velha conversa fiada de que é preciso amar a si mesmo para depois amar alguém, pura ilusão de ótica nos tempos pós-espelho (aceitar-se é plausível, amar-se, inverossímil).
A marquesa d’Aiglemont teve uma vida inútil. Trocou a felicidade pela adesão a princípios impostos por uma sociedade fútil (não é mais assim?) que media a honra feminina pela fidelidade ao maridão infiel. Restou-lhe, aos pedaços, o amor de mãe pelos filhos (o único que, às vezes, sobrevive).
A mulher de trinta anos passou uma vida em desterro para cumprir seu dever de mostrar charme, elegância, etiqueta e fidalguia feminina, atributos que agradam a tantos homens, principalmente àqueles sobreviventes das obras de Balzac. Outros preferem Nabokov.