Os pesadelos no caderno de Ana

Qual a utilidade do sonho, no sentido unicamente onírico da expressão, à literatura? Essa é pergunta essencial aos leitores que percorrerem as páginas enigmáticas e avulsas de "Caderno de Sonhos"
O primeiro equívoco de Ana Miranda foi crer na intimidade entre sonhos e literatura
01/09/2000

Qual a utilidade do sonho, no sentido unicamente onírico da expressão, à literatura? Essa é pergunta essencial aos leitores que percorrerem as páginas enigmáticas e avulsas de Caderno de Sonhos (Dantes, xxxx págs.), último livro da escritora pernambucana Ana Miranda, 49 anos.

Afinal, qual o valor literário de um amontoado de imagens desconexas, sonhadas por uma adolescente de 21 anos (entre 3 de dezembro de 1972 e 23 de março de 1976) visivelmente impressionada pela primeira gravidez e atordoada pelo desejo de se tornar atriz?

A constatação, no mínimo, é de que graves equívocos de interpretação e sensibilidade foram cometidos pela escritora e pela editora, pois ambas apostaram que delírios oriundos dos desejos noturnos e pessoais de uma jovem poderiam interessar ao leitor que, no fundo,  está alheio a essas fantasias.

O primeiro grande engodo de Ana talvez tenha sido acreditar num elo íntimo entre a literatura e os sonhos. Ela deve ter suposto (ou se valido) que, em ambos, coincidem tipos semelhantes de conteúdos: os manifestos, facilmente identificáveis porque estão em primeiro plano; e os latentes: fantasmas dos nossos desejos que, inconfessáveis, ocultamos.

Mas o que ela não percebeu é que só a literatura, por meio do estilo e da estética, transpõe as barreiras que separam cada ego dos demais. Já os sonhos, apesar de terem portas para todos os lados, nada mais são que súplicas num discurso contínuo e incompreensível, e sua leitura só é possível com a criação de outros símbolos, cujos valores são a dissipação e a fantasia.

O segundo grave erro de Ana Miranda é, sem dúvida, de avaliação ao permitir a publicação de suas frouxas anotações sem se dar conta das sutis diferenças entre as duas matérias de memória.

Já a editora, que embarcou na atual fobia do mercado pelas séries e está publicando textos “engavetados”, não atentou para o detalhe de que, na maioria dos casos, só há o féretro de alguns ensaios, porque aos escritores não é possível conviver por muito tempo com cadáveres.

No caso de Cadernos…, a Dantes também foi ingênua ao não perceber que os sonhos, como apregoava Sigmund Freud, são desejos que o homem oculta cuidadosamente por envergonhar-se de suas próprias fantasias só lhes dando asas nos devaneios. E essa é a razão para eles não passarem de enigmas e códigos ilegíveis até mesmo para quem os cria ou sonha. E, mesmo que essas fantasias nos fossem reveladas, o relato não nos seria aprazível; talvez repulsivo ou, no máximo, indiferente.

Exatamente o que ocorre ao leitor em relação ao último trabalho de Ana Miranda, um conjunto de símbolos ocos para a análise crítica da literatura, mas um laboratório excelente aos doutores em patologias  psíquicas:

“Estou convertida à religião católica e entro na igreja, vestida de preto, com um véu preto que cobre o meu rosto. Quando chego na frente do altar, vejo que a santa está nua, ferida, e pinga sangue de seus seios. Assustada, fujo por uma porta, mas vou dar dentro de outra igreja, que dá em outra igreja, e assim por diante. Em todas as igrejas encontro santos despidos e feridos, sofrendo.”

“Alguém marca a porta da minha casa com uma cruz. Pergunto-lhe: ‘Por quê?  Por quê?’ O homem diz que não teve má intenção, que não quer me fazer mal nenhum. É apenas uma ordem. ‘Mas quem deu a ordem?’ pergunto. Ele diz que não sabe.” Eis os sonhos de 19 de outubro e 5 de outubro de 1973, respectivamente.

“Estou deitada numa rede, rodeada de crianças que são meus filhos, e de escravas negras. Abro a blusa e tiro o seio. No seio, em vez de uma teta está incrustado um olho azul. Sinto desejo sexual por meu próprio seio. Meu marido faz sinal que deseja ir para a cama comigo. Vou para o quarto mas, quando me aproximo, meu  marido bate a porta e fico do lado de fora. Ele estava com ciúmes do meu seio.”  Esse é o sonho de 26 de março de 74.

Escritora que alcançou grande (e, porque não, merecido) prestígio pelos seus romances anteriores, onde mostrava tramas bem arquitetadas e a evidencia de uma exaustiva e bem sucedida pesquisa, Ana Miranda deveria ter descoberto, por meio da experiência, que só o escritor, por meio da criatividade e da confluência de muitos outros fatores, supera os limites fronteiriços do individualismo de cada ser humano.

E sua maior ferramenta nesse embate não é a sonolência nem o abstrato, mas o talento que utiliza para suavizar o caráter dos seus próprios devaneios egoístas e subornar (com o prazer) as fontes psíquicas mais profundas dos desejos alheios, possibilitando assim a libertação de grandes tensões na mente do leitor.

Estranho a escritora não ter percebido isso quando escreveu seu romance de estréia, Boca do Inferno (1989), convivendo com uma época turbulenta centrada na violenta luta pelo poder que opôs o governador Antônio de Souza Menezes, o temível Braço de Prata, à facção liderada por Bernardo Ravasco, da qual faziam parte o padre Antônio Vieira e o poeta Gregório de Matos.

Ou quando pesquisa para o segundo livro, O Retrato do Rei (xxxxx), e se ambienta com o mundo e o submundo do Rio de Janeiro e de Minas Gerais do século XVIII durante o ciclo do ouro e da Guerra dos Emboabas, uma das mais cruéis batalhas já ocorridas no País num período onde a ambição de poder e de riqueza nutriam ódios que, em ambos os lados, alegavam causas justas e ideais patrióticos.

E mesmo quando revela (aí, com maestria e sensibilidade) em A Última Quimera (1995), seu terceiro e melhor livro, todo o furor e o sorriso negro do poeta Augusto dos Anjos, um extravagante personagem gótico sob o sol escarlate do nordeste, que conservava o pessimismo e mantinha a mesma paixão de Baudelaire e Alan Poe à morte, ao escatológico e ao macabro.

Com toda essa bagagem, é inevitável deixar de questionar porque Ana Miranda, ao invés de contemporizar seus os sonhos e criar um alfabeto e uma sintaxe que os tornassem legíveis, optou por descrevê-los como são: casas abandonadas onde aranhas tecem silenciosamente e onde todos se iludem — dessa vez com a verdade.

Isso tudo faz de Caderno… uma confusão de conjecturas e intenções e uma frustração para os leitores, porque ela não utiliza regras óbvias da literatura, como eleger a prioridade da higiene mental, manter a mente desimpedida para as surpresas e avaliar as idiossincrasias e tendências coletivas do homem. A ambição e as individualidades só representam seu mais tacanho perfeccionismo tribal.

Além do mais, perder tempo com devaneios é o mesmo que compelir ao inseto a tarefa de elaborar a metafísica do sapo que o devora. Ou seja, uma inadequação entre o idealismo e o egoísmo prático numa sessão espírita permanente, e um pífio estudo da falência individual e da emulação de idéias do homem adjetivo, ornamental, diáfano, vazio.

Além disso,  melhor que entender de sonhos, como faz qualquer Freud de porta de venda (apesar de nunca poder roubá-los), é compreender que o homem inaugura a toda hora uma porção de segredos de estampas patéticas, morais, físicas e nascidas da vaidade que a vida se faz curta para decifrá-los.

Valdeci Lizarte
Rascunho