O Hipopótamo Que Chora

Num bar da praça da Catalunya, bem na cabeceira das Ramblas, tomando uma cerveja com o poeta Benaójan, fui apresentado pela primeira vez a Josep Tuset
01/10/2000

No período de quatro anos que passei em Barcelona como correspondente do Diário da Noite, vivi uma experiência que, pelo que teve de sutil, e mesmo de perverso, me fez entender certos mecanismos de aniquilamento pessoal e de destruição de prestígios que, sem que venham a ser privilégio de nossa época, vigoram ainda hoje, com grande fluência, nos meios literários.

Num bar da praça da Catalunya, bem na cabeceira das Ramblas, tomando uma cerveja com o poeta Benaójan, fui apresentado pela primeira vez a Josep Tuset, um rapaz dez anos mais moço que eu, estudante de Letras que, à custa de grande empenho pessoal, levava à frente com um grupo de amigos da mesma geração uma revista literária batizada O Hipopótamo Que Chora.

Sempre disposto a estimular os mais jovens, Benaójan colaborava com a revista, assinando uma coluna de comentários críticos. Contudo, ele acabara de receber um convite para uma temporada na Filadélfia e, ali mesmo, diante daquele balcão de presuntos e defumados, sugeriu que, durante esse período de ausência, eu o substituísse na revista, tarefa que imediatamente aceitei.

Para o número em que fiz minha estréia, os rapazes tinham preparado uma reportagem de capa sobre o Círculo de Málaga, um grupo de escritores maduros e influentes que, uma vez por mês, se reunia no Bar dos Pêndulos para celebrar a amizade e discutir livros. O texto, assinado pelo mesmo Josep Tuset, era franco, sem as meias palavras e as omissões odiosas que costumam caracterizar a crítica literária desde os tempos mais remotos. Apesar disso, expunha uma imagem desfavorável, problemática por certo, mas franca e viril, do Círculo de Málaga.

Quanto a mim, despachei pelo correio para o apartamento de Josep, ao lado do Parc de Montjuïc, o texto datilografado de minha primeira coluna, que tratava de Dostoievski. Paguei a taxa postal e, atarefado, esqueci por completo de O Hipopótamo Que Chora, já que àquela época eu andava assoberbado com meu trabalho jornalístico. A nova edição da revista foi vendida, de mão em mão, nos bares das Ramblas. Ainda colaborei com ela por mais duas edições, até que o poeta Benaójan, por motivos de família, retornou precocemente a Barcelona e me telefonou para avisar que retomaria seu posto de cronista.

Para selar nossa amizade, combinamos um almoço no Shahen Shah, um restaurante indiano freqüentado por madames e executivos, onde estaríamos bem distante dos escritores. “Você sabe que, em Málaga, se diz que foi você quem fez a cabeça dos garotos contra eles”, Benaójan me contou, depois de ressaltar que ia dizer algo que não sabia se tinha ou não o direito de dizer. “Dizem também que você usou os meninos para destruí-los”.

Embora, desde o início, eu tenha me empenhado em defender o direito dos rapazes de escrever o que pensavam, atitude que, contudo, parece provocativa num meio dominado pelo cinismo e pelas meias palavras, nem mesmo cheguei a ler o texto assinado por Josep Tuset, de modo que muito menos teria condições de ter sido seu mentor intelectual. “Isso é pura tolice”, argumentei, desanimado.

“Pois é o que insistem em dizer”, Benaójan me garantiu, “e você sabe, quando essas coisas se espalham, a verdade não está mais em questão”. Agradeci pela confidência, sem a qual eu continuaria a me julgar só um cronista substituto _ e inocente _ e voltei para casa. Através de conhecidos, porém, descobri aos poucos que uma verdadeira conspiração, que envolvia ódios pessoais e métodos detestáveis, me era atribuída. Além de insensato (pois um homem maduro não poderia incentivar aquelas linhas rebeldes), eu era tomado pelos adeptos do Círculo de Málaga (logo eu, que jamais pertenci a círculo algum) como um manipulador de espíritos. E, naturalmente, um covarde.

Pensando em minha saúde mental, tratei de esquecer a história mas, semanas depois, ao ser apresentado numa fila de cinema a uma jovem poeta madrilena, fui obrigado a ouvir: “Sabia que eu o odeio? Além de ser vingativo, o senhor usa os mais fracos como escudo”. Apesar de associar imediatamente seu comentário ao episódio de O Hipopótamo Que Chora, não consegui esboçar reação alguma, até porque a moça, eu era obrigado a admitir, ao contrário de meus detratores, me dizia aquilo lealmente, em palavras diretas. “Muito obrigado por me comunicar o que já sei”, consegui responder, por fim. E ainda tive o impulso, sincero, de lhe dar um beijo de gratidão no rosto, do qual ela se desviou com uma expressão aparvalhada de repulsa.

Procurei Benaójan e lhe narrei o episódio da fila de cinema. “Eu lhe disse, essas coisas não desgrudam”, ele comentou. E era verdade. O episódio de O Hipopótamo Que Chora me fez entender que a difamação, disfarçada em postura crítica, é um dos elementos fundamentais da literatura _ ou, ao menos, daqueles que se empenham em praticá-la. E se falo da literatura, e não de outras artes, é só porque é apenas dela que costumo provar. O que fazer a respeito? Nada. Simplesmente não temos controle algum sobre esses relatos de perseguição que, num tipo difuso de peste, saltam dos livros (onde deveriam estar) para contaminar a realidade.

Não se faz literatura sem alguma contaminação _ e, ao constatar isso, só me restou decidir que, ainda assim, eu não deixaria que esse efeito viesse a colocar em perigo meu amor por ela. Julgamento que, até hoje, me esforço para sustentar. O mais grave seria se, ao fazer essa descoberta, eu me deixasse calar, receoso de que minhas palavras fossem novamente tomadas pelo que não são. Palavras são formas vulneráveis, cada um as desdobra como quer _ e só por isso, aliás, a literatura é possível.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho