(Re)descobrindo Sossélla

Se você não conhece o nome Sérgio Rubens Sossélla é por que nos últimos 10 anos ele ficou meio “esquecido”, e só recentemente sua obra vem sendo resgatada pela imprensa cultural local
01/10/2000

Se você não conhece o nome Sérgio Rubens Sossélla é por que nos últimos 10 anos ele ficou meio “esquecido”, e só recentemente sua obra vem sendo resgatada pela imprensa cultural local. Apesar de imensa produção, principalmente poética, incluindo prosa de ficção, ele nunca teve nenhum livro publicado por uma grande editora.

Sérgio Rubens Sossélla nasceu no dia 27 de fevereiro de 1942 em Curitiba, onde fez seus estudos. Formado em direito pela UFPR, em 1966, atuou como funcionário público na área jurídica até 1970, quando assumiu a função de juiz substituto em Jacarezinho. De 1976 a 1977 atou como juiz em Pitanga, removido por merecimento para Ribeirão Claro no ano seguinte, e de 1978 a 1986 esteve à frente da Vara Cível do município de Assis Chateaubriand, tendo se aposentado por tempo de serviço e também alegando sentir “náusea”. Atualmente, reside em Paranavaí, dedicando-se exclusivamente à poesia.

A carreira jurídica foi um ganhã-pão para o poeta Sossélla, mesmo por que “a poesia não dá camisa, tira”. Sobrepoemas é o título de seu primeiro livro de poesia, lançado em 1966, e nesses 34 anos ele já editou mais 300 obras. Apesar de abordar temas variados, a infância, a família e o sonhos são a matéria-prima de seus poemas, a maior parte deles curtos, que trazem verdadeiros “achados” como:

eu dirigi os melhores
filmes que assisti

estou de bem comigo.
sonho o que eu quero.

jamais abandonei
a criança que fui

? haverá um momento em nunca?

a biblioteca pública do paraná
não divulgou ainda quantas vidas foram salvas

imprensa nova impressa agora:
edição fac-símile do dezenove de dezembro
com outra primeira página

Ele também produziu poemas longos, como estes publicados com exclusividade nesta edição do Rascunho. Em 2000 Sossélla produziu e editou artesanalmente mais de 32 títulos, com destaque para Teoria dos Anjos, Escrita Fina, De Consumo e Que Tal é a Marca. A Imprensa Oficial do Paraná lançará nos próximos meses uma antologia de poesia e também reeditará A Nova Holanda, obra de prosa experimental de ficção lançada em 1988.

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sim, ele passou por aqui

então o cowboy abruptamente envelheceu
(desde menino trazia os olhos de um cão chutado pelo destino)
nem mais com as crianças da rua ele brincava (como costumava)
e nas raras vezes em que surgiu (arqueado e tropeçando)
a mão vazia desenhava saques lentos para um alvo que não existia
monologando só passagens da sua infância
(? saberia que por ser quem era sairia
miseravelmente derrotado pelas vitórias que fizera?)

assim rapidamente ele morreu
levando na garganta mugidos estrangulados
vermelhos e largos vergões na alma trincada
sinais de tiros e marcas de punhais no frágil corpo atormentado

morreu ele rapidamente assim
pedindo ao deus misericordioso jamais nascesse de novo
tão sozinho e abandonado que até a sua sombra não lhe acompanhava

sim
ele passou por aqui
(aldeia dos canibais)
alongando o quanto pode a amargura da permanência
além dos próprios limites suportáveis da existência
e foi embora para nunca mais

mas todas as noites
o seu fantasma alucinado
teima em repassar aí em frente
(naquele veloz corcel invisível)
deixando uma grossa nuvem de poeira e de remorso para nós

(a)onde está?

se não está no gibi
encantou-se na floresta amazônica

se não está na floresta amazônica
vive entre o cowboy e o último disparo

se não está no último disparo
e trem que parte levou o trem mendigo

se não está no trem mendigo
um lexicógrafo-caçador hibrida-se em orion

se não está em orion
ficou na terceira dimensão e meia

se não está na terceira dimensão e meia
pulsa nas crateras lunares de artem’ev e mee

se não está em artem’ev e mee em mim
milton carneiro sumiu na procissão de eus

se não está na procissão de eus
glorificou-se nos dentes podres de van gogh

se não está nos dentes podres de van gogh
grafita a pax christi nos muros do mundo

se não está está nos muros do mundo
quadrinizou-se nos olhos quietos de borges

se não está nos olhos quietos de borges
escandaliza-se o verso do poeta e o seu escarro

se não estiver no escarro
nem procure no gibi
ou na enciclopédia britânica
porque até os neutrinos se recusam
a atravessar de novo a imagem
– plúmbea e emulsionada –
dos ratos guardando o corpo de artaud

, das músicas também: um labirinto para usar lapela

ernani reichmann escreveu

visão cinematográfica
que temos das coisas

encontrei poemas
não sei o que espero

estamos chegando a um castelo
estamos chegando, há um castelo

estamos chegando a um prado
e há, um prado

lá vêm os cavaleiros

não sei o que espero
encontrei poemas
tudo isso posso ver
nessa música

lá vêm os cavaleiros
há um prado
estamos chegando a um castelo

músicas poderão continuar ainda

desenhos para paul claudel

acabou de aparecer o negativo do sonho
que pensei fosse a matriz deste poema, o seu estêncil gelatinado
e no tamanho ofício se escreveu no banheiro, atrás do espelho
inúmeras caixas de fósforo infantis construídos por pablo picasso
para muito alumiar a verdade
inúmeras caixas de palitos imitando lápis de cor
para muito alumiar a verdade
com figurinhas amarelas e vermelhas, quase alaranjadas
para muito alumiar a verdade
e os chiclés os chicles os chicletes empalmaram tudo
para muito brincar a verdade
com figurinhas alaranjadas e amarelas, quase vermelhas
para muito brincar a verdade
inúmeras caixas de lápis de cor imitando palitos
para muito brincar a verdade
inúmeras caixas de fósforos infantis construídos por
e o onírico agora me aponta o nome de paul éluard
e o onírico agora me revela o nome de william ard
: mas nem abri o portão do campo concentracionário pelo escasso tempo
as crianças crescem rapidamente
e vozes das vítimas do nazismo pediam
que eu perseguisse clodar e clachet
por causa dos plágios nos desenhos figurados
uma florzinha incompleta nos riscos da menininha um dia incompleta
afinal, a correção evidenciou: a cópia não era cópia
e sim um equívoco de sonoridade puxa-
-puxando o clichê

de santinhos

coisas muito e totalmente co-moventes costumam ser guardadas
numa primeira gaveta ou numa caixa de sapatos ou em sonhos lembra-
das cenas dos melhores filmes pessoais
meu pai, um estranho (70) nesta feita
e os filhos podem ouvir a mesma expressão
rimando o plastificado vocábulo papae na altura da mão direita
e fotografias amarelecidas e o nome inicial e um bichinho
a hibernar na primavera no verão no outono inverno de cobre
é nesses lugares onde os outros escondem pedras preciosas títulos,
ou dinheiro
que escondemos o tesouro de nós
e achádegos – pobres medalhas dando exemplo –
de cujos donos a memória lateja: nobres e dobres
medalhões retângulos medalhinhas
santos orações e santinhas
(de alumínio
de papel de ouro
de prata)
santinhos e moedas, antes fossem, meus, minhas.
agora vão dormir os seus espantos (de papelão ou de cartolina)
e rezam com deus me deito e com deus me levanto

opus opus

cédula bancária de vinte milhões de marcos
1923 e os bancos amarrotados

1938: a alemanha podre
e seus (dos outros) mil milhões de marcos:
– miquerinos, quéfren e quéops estão no papo dessas lombrigas

1945: urge comprar os campos concentracionários
com aqueles mil milhões de marcos
e outras duas coisas excelentes: fazer criação de moscas e tomar no cu

cheirando repolho estragado se deslumbram:
– os porcarias, nem pagamos o que devemos e só saímos lucrando
em casa própria à vontade
é mentira sermos falidos espirituais

agora !vamos tomar todas as cervejas do mundo!
e passar o resto da vida arrotando

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho