Made in Japan

Quando elaborou o plano de ataque ao Japão no final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o general norte-americano Douglas MacArthur deixou apenas uma das grandes cidades do país livre da artilharia de seus comandados
01/11/2000

Quando elaborou o plano de ataque ao Japão no final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o general norte-americano Douglas MacArthur deixou apenas uma das grandes cidades do país livre da artilharia de seus comandados. Muitos dizem até hoje que o alvo não interessava estrategicamente. Outros apostam que MacArthur, homem culto e refinado, decidira poupar o berço cultural do Japão.

Independentemente do motivo, o fato é que Kyoto, ex-capital imperial entre 794 e 1868, escapou incólume aos bombardeios que arrasaram Tóquio e Osaka e culminaram com a destruição de Hiroshima e Nagasaki. Não fosse pela preservação e Kyoto, a maioria das insólitas tradições japonesas sobreviveria apenas na literatura. Paradoxalmente, é novamente uma norte-americana, a escritora Liza Dalby, que  resgata para o mundo, pelo menos para o ocidental, um pouco do cenário do Japão  medieval do século 11.

Em A Lenda de Murasaki (Objetiva, 450 págs.), Liza transporta os leitores para a Kyoto poética do tempo que ainda se chamava Miyako. A leitura de A Lenda de Murasaki é estóica, mas gratificante. É difícil entender o livro de Dalby sem conhecer  o Japão. E é mais complicado ainda entender o Japão sem conhecer Kyoto. Liza Dolby conhece Kyoto e o Japão. Ela morou no país alguns meses e alega ter sido gueixa. Mais que isso, garante ter sido a primeira e única ocidental a ser aceita na impenetrável comunidade das mulheres-artistas que encantam os nipônicos mais poderosos nas luxuosas casas de chá onde as gueixas desfilam seus dons. Liza tentou contar sua aventura de quimono e cara branca no livro Geisha, publicado nos Estados Unidos em 1985 (será lançado pela Objetiva no Brasil no ano que vem).

Em sua primeira empreitada na literatura, ela saiu-se mal. Apesar do relativo sucesso comercial, Geisha é uma obra decepcionante. Liza “tornou-se” gueixa como parte de sua pesquisa para um doutorado em antropologia com especialização em cultura japonesa. Na publicação de Geisha, como escritora Liza não passou de uma razoável antropóloga. Além da chatice de tentar explicar o mundo das gueixas sob o olhar da antropologia, Liza resvalou na vaidade e tentou mostrar que também poderia fazer parte do fetiche oriental que intriga varões pelo mundo afora. A formação de Liza como gueixa é no mínimo suspeita. Michiyo Oishi, dona da Hori Yae, um das casas de chá mais tradicionais de Kyoto, afirma que nunca ouviu falar de qualquer ocidental que tenha virado gueixa. Mais, ela acha a hipótese absolutamente improvável de acontecer.

O mundo das gueixas é fechado a fortes nó no obi, o cinturão que prende o quimono e precisa de um especialista para ser amarrado. Garotas de 15, 16 anos são aceitas como aprendizes somente com indicação de alguém muito influente nas casas de gueixas. Passam até três anos de treinamento muito rígido, com aulas diárias de música, canto, dança e etiqueta gueixa (algo como estar sempre preparada para tornar agradável um ambiente cheio de japoneses poderosos inebriados por doses cavalares de saquê). Os nipônicos parecem insontes, mas não são. Não é à toa que o país é a segunda potência econômica do planeta, mesmo apenas meio século após ter
sido devastado pela guerra.

Se Liza Dalby apareceu disposta a estudar a fundo a comunidade gueixa, e mais disposta ainda a pagar muito por isso, é possível que tenha tido acesso por algum tempo. Mas, dizer que recebeu formação gueixa e tornou-se oficialmente uma delas, é mais inverossímil que um japonês virar quarterback do Miami Dolphins. Em A Lenda de Murasaki, Liza Dalby redimiu-se da prepotência de Geisha.

Deixando a vaidade e a antropologia de lado, ela revelou-se uma escritora talentosa e sensível. O primeiro e grande acerto foi optar por reconstituir pela ficção a vida de Murasaki Shikibu, autora de A Lenda de Genji, clássico japonês considerado o primeiro romance da literatura mundial. Liza leu e releu sobre a vida de Genji e, usando o que restou do diário de sua autora, fez um brilhante trabalho, escrevendo um romance de época. Ela desloca o leitor para um período da vida japonesa em que o principal status para um homem era dominar a caligrafia e a poesia, além de ter uma coleção de mulheres submissas. Murasaki foi uma intrusa neste sistema restrito a
artistas e nobres masculinos. A dedicação de Murasaki à escrita era tamanha que ela quase abdicou da tradição mais imperativa às mulheres na época: casar-se com o homem escolhido pelo pai por interesses cristalinos nos dotes econômicos do rapaz. Na verdade, o grande companheiro de Murasaki foi Genji. Este é um dos atrativos do livro.

Liza mostra com clareza como a construção de um personagem literário influencia e, neste caso, pode até comandar a vida do autor. Murasaki não se interessa por homens, sexo, casamento, ou outra coisa sequer que não escrever seus poemas e os destinos de Genji. Mas, a medida que Genji vai ficando famoso na corte japonesa, a autora começa a perder o controle, sendo constantemente obrigada a ouvir e aceitar sugestões para as aventuras de seu príncipe brilhante. É aí que a vida de Murasaki
começa a ruir. A invasão da privacidade de Genji é um ataque ao coração da autora, que não resiste e cede à tentação do suicídio literário, quando resolve pôr fim à vida de Genji. Liza construiu em Murasaki uma personagem forte, com extrema sensibilidade para a poesia, mas de decisões firmes e rápidas. Ela executou Genji sem
pestanejar, pois a morte foi uma constante em sua vida, com as perdas da mãe, irmão, pai, amigas e da prima querida Ruri, companheira de infância.

A imaginação de Murasaki de como teria ocorrido o suicídio de Ruri, aliás, é uma das passagens mais marcantes do livro: “Tudo o que ela tinha a fazer era dar um passo. No escuro, as túnicas devem ter se enrolado em suas pernas e ondulado como uma camélia arrancada do galho. Mas uma flor flutuaria. As túnicas e o cabelo de Ruri devem tê-la arrastado para o fundo. E os pescadores teriam encontrado a flor destruída entrelaçada com algas do rio, pálida, esverdeada e encharcada. Talvez apenas
alguém como Ruri poderia ter escolhido as selvagens águas turbulentas para afastá-la da miséria”. O texto de personalidade forte de Liza é suavizado freqüentemente pelos
poemas originais encontrados nos diários da escritora japonesa, tão venerada no país que existe até uma Sociedade de Apreciadores de Murasaki Shikibu de Kyoto. Mais uma vez Liza mostrou habilidade ao intercalar os poemas entre os diálogos de seus personagens, hábito comum na velha Miyako.

Com o lançamento de A Lenda…, Liza comprova que perdeu tempo ao tentar ser a heroína de Geisha. Com um amadurecimento literário surpreendente, ela está agora muito mais para escritora do que para protagonista de histórias japonesas. Até porque, em se tratando de gueixas, já há uma obra definitiva. Memórias de uma Gueixa (Imago, 1998, 300 págs.), romance de Arthur Golden, outro americano que se aventurou com sucesso (merecido) pelas tradições nipônicas, é fruto de nove anos de pesquisas e é insuperável na descrição da vida das moçoilas prediletas de Kyoto. Liza Dalby superou-se com Murasaki, mas mesmo assim não vai conquistar de imediato os leitores. É preciso predisposição para apreciar a metódica Murasaki e a intricada cultura medieval do Japão, que só deixou resquícios significativos em Kyoto. Um bom aperitivo para iniciar-se nos relatos de cunho oriental é a gueixa de Golden. Outro é fazer como os americanos e conhecer Kyoto e seus dois mil templos que, graças ao general MacArthur, sobreviveram à guerra.

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho