As muitas vozes da crítica

O preço do comodismo é a ignorância
Daniel Piza: releitura da obra de Machado de Assis.
01/12/2000

Colaborou Paulo Polzonoff Jr.

Daniel Piza é um jornalista como poucos ainda o são no Brasil. Editor do “Caderno 2” do jornal O Estado de S. Paulo, seu trabalho mais visível é a coluna dominical “Sinopse”, em que Piza trata, literalmente, da arte ao futebol, da ciência à culinária.

Discípulo fiel de Paulo Francis, embora prefira se dizer mais “didático” que o mestre, Piza é hoje um dos poucos jornalistas que se assume como crítico da cultura brasileira, vestindo a carapuça e, claro, sofrendo as conseqüências cabíveis.

Uma grande amostra do seu trabalho, publicado tanto na Gazeta Mercantil (no caderno “Fim de Semana”) e também nas revistas Bravo! e República, foi reunido pela editora Record em “Questão de Gosto” (390 págs). O livro traz ensaios e resenhas do jornalistas que versam sobre os mais variados temas da cultura brasileira e também da cultura que se impregna como brasileira. Palavras da contracapa: “A verdadeira contracultura. O mal do cubismo. Sexo, política, dinheiro. A literatura de Shakespeare a João Cabral. A pintura de Velázquez a Volpi. As interpretações do Brasil. Os ‘aforismos sem juízo’. Ronaldo e a convulsão da mídia nacional. Hitchcock. A música, inveja de todas as artes. Afinal, o que é civilização?” Ainda pela definição do livro, a proposta é discutir o “mal atual”: a passividade no que o autor chama de “era da dispersão”.

Os textos foram selecionados pelo próprio autor e estão divididos em nove seções: Costumes, Interpretações do Brasil, Literatura brasileira e portuguesa, Literatura internacional, Artes visuais brasileiras, Artes visuais internacionais, Crítica e jornalismo, Miscelânea e os Aforismos sem juízo, coleção de frases cunhadas pelo autor as quais ele costuma fechar suas colunas no jornalismo diário.

“Questão de Gosto” é, além de uma amostra da variada gama de trabalho do crítico/jornalista, um panorama sobre as diferentes vertentes da cultura brasileira e internacional. A “didática” apontada por Piza em comparação com a crítica de Paulo Francis (conhecida por sua acidez, virulência, ironia e erudição) possivelmente se refere ao sem número de referências que o autor faz em tom professoral, como se recomendasse ao leitor determinados autores que podem ampliar seu universo de referências culturais. Um dos maiores exemplos são as freqüentes citações aos textos do crítico australiano radicado nos EUA, Robert Hughes, ou ao “trio” que revolucionou a crítica internacional: Bernard Shaw, H.L. Mencken e Edmund Wilson. Os textos de Piza, aos interessados na discussão literária, artística ou estilística, são quase um guia para se descobrir as letras “verdadeiramente necessárias” em um mundo que abundam referências sem pé nem cabeça.

A vastidão de assuntos varrida por Piza é suficiente para precisar o quando o crítico cultural não se atém a um determinado prisma da criação artística humana. A precisão em postular sobre os mais variados assuntos dão mostra do que o autor considera como a verdadeira inteligência do homem. Emprestando as palavras de Machado: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu.”

Uma das maiores preocupações do autor é explicar o papel do crítico na sociedade, qual sua importância e, também, quais os maiores “pecados” cometidos pela classe. Talvez por se tratar de uma área em que o Brasil carece de expoentes no momento, as idéias do autor sobre essa atividade obscura, a crítica, sejam a maior contribuição do livro ao panorama literário brasileiro. O texto de Daniel Piza é claro, procura ser o mais inteligível possível, reunindo referências o suficiente para situar o mais desatento dos leitores no assunto abordado. O jornalista já havia escrito um livro ficcional, chamado “As senhoritas de Nova York”, voltado ao público infanto-juvenil, acerca das descobertas da obra de Pablo Picasso.

Mas, além da crítica, a variedade literária discutida por Piza é, também, outra grande contribuição do autor. A discussão da obra de Shakespeare, Joyce, Mann, Swift, Nabokov e também de Machado, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Clarice Lispector resulta em opiniões lúcidas e bem colocadas sobre um universo que está mais perto do leitor comum do que se imagina. A crítica de Piza não serve para apontar “quem é bom e quem é mau” no universo cultural do homem, mas é, acima de tudo, uma opinião sólida de quem sabe do que está falando e entende que uma sociedade que se diga pluralista deva estar apta a absorver esse tipo de comentário.

TRECHO: “O valor da crítica”
É uma luta inglória, quem sabe perdida a de defender a crítica e, especialmente, os críticos. No Brasil – onde o medo de emitir opinião é tão arraigado que só deixa espaço para o silêncio ou o achismo –, o posicionamento a esse respeito é ainda mais temerário. Mesmo porque os críticos, quase sempre, têm sido apenas sujeitos que confundem lanterna com farol mas continuam perdidos. Não espanta que sejam tão pouco encorajados. No entanto, a crítica é muito importante, vital, para qualquer outra cultura, e há uma série de lugares-comuns sobre ela que precisam ser combatidos com urgência.

A arte na crítica
Um dos maiores desafios da obra de Piza – e aqui, o conceito de obra extravasa ao “Questão de Gosto” e abarca todo o trabalho do autor/jornalista, invadindo as tarefas cotidianas que a profissão exige – é conceituar o Brasil, País tão rico e cheio de contrastes e os desafios de se construir dia após dia uma sociedade civilizada. A idéia de civilização, para Piza, está ligada ao que normalmente se diria “refinamento”: poemas de Ezra Pound, Joyce no original, Michael Feinstein interpretando canções de Cole Porter e George Gershwin ou passear pela Toscana e pela Provença.

Claro que, no universo civilizado de Piza também se encontram o fácil acesso a serviços públicos de qualidade, uma relação educada entre cliente e garçon e até a conversa com os amigos sem a preocupação com o horário no dia seguinte. Mas Piza não quer se sentir culpado por apreciar um estilo de vida que não condiz com a realidade que cerca o brasileiro, e encoraja seu leitor a assumir seu (do leitor) gosto “elitista” (desde que se desconte o ranço qual a palavra carrega consigo), afinal, no Brasil a elite precisa se conscientizar do seu papel – e esse talvez seja um dos maiores males que afligem o país hoje.

O mundo cheio de referências artísticas apresentado por Piza não deveria satisfazer apenas aqueles que já simpatizam por aquilo que, no inglês, convencionou-se chamar de fine art (já que a simples art compreende desde Sandy & Júnior a Paulo Coelho, ou seus revés americanos Britney Spears e Richard Bach). Esse universo deveria compreender desde os jovens em idade de descobrir a grande literatura escondida nas prateleiras empoeiradas das bibliotecas quanto aos mais velhos que continuam se dando a desculpa do “não tenho tempo” para fazer mais nada que não seja trabalhar, comer e ver televisão, como mergulho no ostracismo.

Hoje a preocupação de Piza parece ser a de orientar os jovens na experiência da descoberta artística. Já escreveu um livro a respeito, tem no site “O Especialista” (www.oespecialista.com.br) uma lista comentada de livros de grandes escritores que despertam a atenção do jovem para a literatura, e ainda colabora com o Maga-Zine, do site Estadão.com, dissecando a fórmula do sucesso dos ídolos pop da atualidade.

As multifaces do jornalista, crítico e escritor parecem convergir para um projeto ideológico um tanto lírico, às vezes utópico, de “mudar o mundo”, como que se continuasse a alimentar um sonho de menino. Sem depositar julgamentos sobre essa atitude, o que Daniel Piza parece mostrar é que o mundo talvez não precise ser mudado, pois já existe um transformado ao nosso redor. (R.S.)

 

AFORISMOS SEM JUÍZO:

“A inteligência consiste em ser seletivo sem ser discriminatório”

“Se você diz o que pensa, assume seus erros e faz valer seus méritos, prepare-se: sempre haverá alguém para quem você não fez nada atacando-o”

“O mundo é uma instalação. Mas que a criou estava longe de ser um artista”

“O pós-modernismo é o maneirismo do modernismo”

“A melancolia é a cólica da alma”

“O cinismo é o ceticismo dos neuróticos”

“Ética sem dúvida é corpo sem sangue”

“O preço do comodismo é a ignorância”

“O inimigo mais poderoso do caráter não é a tentação. É a credulidade”

“Viver já é acreditar em viver”

Ricardo Sabbag
Rascunho