“Você enxerga a cor da minha aura?”

Com sensibilidade, Luciana Hidalgo desbrava a vida do “louco-artista” Arthur Bispo do Rosário
01/12/2000

É possível escrever um livro sobre a abissalidade da mente de maneira simples? É. Aliás, tudo é possível neste mundo movediço. Mas não é esse o ponto. O ponto é que a jornalista Luciana Hidalgo conseguiu uma proeza ao escrever Arthur Bispo do Rosário — O Senhor do Labirinto (Rocco, 204 págs.), livro que aborda um dos personagens mais fascinantes da História, o esquizofrênico-paranóico-profeta-artista Arthur Bispo. Não é uma obra-prima para a estante dos séculos — é, simplesmente, um livro simpático, coisa rara no mercado editorial brasileiro.

Não é preciso muito esforço para ver no Bispo da Colônia Juliano Moreira um fantástico personagem literário. Se pertencesse à ficção, talvez fosse uma figura forçada, inacreditável. Maravilhosamente, existiu e deixou pistas de um universo misterioso, envolvente, doente, santo — que, desgraçadamente ou não, subjaz à mente de todo ser humano.

Você gostaria de se comunicar diretamente, profundamente, com os arquétipos? Ser o filho unigênito de Deus, ver coisas que ninguém vê, estar investido da missão de aprontar o mundo para o Dia do Juízo? Resposta complicada. Na sua loucura, Arthur foi ao ponto e fez tudo isso. Criou, com o vigor digno de um grande pai fecundador, obras de arte fantásticas, coisas como os “mantos de apresentação” e estandartes ricamente bordados com os nomes dos “escolhidos”, assemblages e até uma “cama-nave” que o levaria aos céus.

Antes de voltar à análise do livro, é preciso observar apenas que o termo “obras de arte”, usado acima, se refere ao olhar dos homens comuns e não ao do próprio Bispo, para quem as peças eram uma necessidade, produto de sua relação consciente-inconsciente com a mente e com o mundo (essa definição parece esdrúxula, mas é o ponto-limite a que chega minha própria mente. Como entender a loucura? E a normalidade?)

Para tentar explicar o “senhor do labirinto”, Luciana Hidalgo voltou ao início, à cidade natal do profeta, Japaratuba (Sergipe), ao contato natural com os costumes, o folclore e a tradição do bordado naquela área do Nordeste. Acompanhou sua juventude e a vida de marinheiro — elemento recorrente em suas manifestações — as incursões pelo pugilismo, a chegada à cidade e o episódio de ruptura, a revelação da santidade e da loucura.

Aliás, acertadamente, é neste momento que o livro começa. O ano era 1938. “Dopado por um exército angelical, entre visões e quimeras, Bispo saiu pela rua deserta, no dia 22 de dezembro. Peregrino da solidão, estava acostumado a caminhar sem paradas obrigatórias, madrugada adentro, naquele Rio da década de 30. (…) Ao patrão, o advogado Humberto Magalhães Leone, disse apenas que iria se apresentar na Igreja da Candelária. (…) Depois de peregrinar pela cidade, ele entrou no templo do Centro e anunciou à confraria de padres: — Vim julgar os vivos e os mortos. Silêncio apostólico. Perdido no vácuo entre o fato e a ficção, Bispo entendeu que os frades do Mosteiro o reconheciam.” Perfeito.

A partir daí, a obra envereda pelos 50 anos de permanência de Bispo na Colônia Juliano Moreira, bem como por suas idas e vindas pelos mundos. Ordeiro, tranqüilo apesar da postura espartana diante do pecado, ganhou status de “ser diferenciado” (para não dizer “santo”, termo renegado pela psiquiatria) entre os internos do sanatório. Navegou, Ulisses, pelas águas turbulentas da fase crítica da ciência, quando os transtornos mentais eram solucionados por choques elétricos e bisturis lobotômicos. E, nas profundezas de seu quarto, criou um mundo. O mundo.

Junto com as revelações de seu universo — coisas como, por exemplo, a relação do profeta com as imagens das misses, identificadas com o arquétipo da mulher primordial — a autora mostra o estranhamento e o maravilhamento das pessoas comuns face ao “umbral da porta” Bispo do Rosário. Um movimento que começou simples, caseiro, e que, por fim, arrastou uma multidão de “gênios artistas” à cela da Colônia Juliano Moreira.

Desde então, as obras deixaram apenas de ser curiosas e se transformaram em representações artísticas comparáveis, por exemplo, às de Marcel Duchamp. O profeta, porém, continuava o mesmo. A pergunta-chave “Você enxerga a cor da minha aura?” determinava a entrada de qualquer pessoa ao seu templo, dos outros internos aos maiores artistas. Para a resposta certa — “azul” — porta aberta; para as erradas, o vazio.

E é neste esquema, mas de forma subversiva, que entra em cena a estagiária de psicologia Rosângela Gomy — personagem que inaugura um capítulo importante do livro. Ao ver o Bispo como um paciente e não como louco ou artista, abriu uma nova perspectiva de análise do personagem. Para o profeta, foi um elemento novo, que, com o tempo, viria a se tornar um importante centro de atenção. “ROSANGALA MARIA — DIRETORA DE TUDO — EU TENHO”, frase bordada em uma das peças, dá a medida do quanto.

O tempo passou, vieram as exposições e o reconhecimento internacional (suas obras foram expostas no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e na Bienal de Veneza). A morte, no dia 5 de julho de 1989, fechou (pelo menos até a manifestação de outro profeta) a porta do labirinto e abriu uma perspectiva, entre homens retos e tortos, de sonho. A obra de Luciana Hidalgo é um belo exemplo disso.

Pincelada final – Depois de ler o livro, talvez seja possível responder à pergunta inicial desta resenha. É possível subverter a abissalidade da mente riscando o verniz da história, como fez Luciana Hidalgo. Ela poderia, se quisesse, ter mergulhado muito mais fundo no “canopo maia” espiritual do Bispo — algo que, talvez, ainda possa ser feito por um autor mais calibroso ou por um especialista. Optou, porém, por uma análise diferente, mais distante da mente e mais próxima da interação entre o indivíduo e o mundo. Uma visão que pode vir a ser considerada superficial pelos “sumos-sacerdotes” de nossas letras. Livros, porém — ainda credito nisto — são para homens comuns como eu ou você.

Rodrigo Wolff Apolloni
Rascunho