Fascinante mundo em decomposição

Vivemos um momento literário caracterizado pela diversidade. Se atualmente cada poeta e prosador segue — ou imagina estar trilhando —  um caminho particular, em épocas passadas a situação era exatamente oposta
01/12/2000

Vivemos um momento literário caracterizado pela diversidade. Se atualmente cada poeta e prosador segue — ou imagina estar trilhando —  um caminho particular, em épocas passadas a situação era exatamente oposta. Os artistas barrocos tinham necessariamente de usar uma linguagem rebuscada, da mesma maneira que os romancistas românticos produziam textos para ser digeridos pelas mulheres da alta sociedade — atitude adotada até por Machado de Assis em suas primeiras obras.

No passado, uma das táticas para um estreante conseguir espaço era filiar-se a um movimento literário, mesmo que o autor não fosse adepto da ideologia do grupo. Obviamente, há uma enorme diferença entre seguir a boiada e deixar uma obra capaz de entrar para a história. No início do século 20, quando os praticantes de uma literatura definida como “sorriso da sociedade” declamavam sonetos açucarados em saraus no Rio de Janeiro, surgiu a voz dissonante de um poeta paraibano chamado Augusto dos Anjos.

Ao invés de estar apenas contra a maré e ser simplesmente um sujeito “a favor do contra” — expressão do bibliófilo paranaense Jeovharley de Souza —, Augusto dos Anjos tinha a necessidade, talvez até biológica, de expressar suas idéias por meio da escrita, tendo adotado a poesia e, mais especificamente, o soneto, como formato ideal para veicular sua mensagem. Inventor de um universo único e inconfundível, em seus poemas, escritos em primeira pessoa, o “eu” poético percebe que a existência humana é um absurdo. Afinal, se o destino final do homem é servir de comida aos vermes, então por que viver?

Muito já se especulou sobre qual seria a relação entre a obra e a vida de Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, que nasceu no dia 20 de abril de 1884 na Paraíba do Norte, e que até os 24 anos viveu no Engenho Pau-d’Arco, propriedade de sua família. Insinua-se que a amargura da voz poética seja um reflexo da trajetória do autor, e A Ilha de Cipango pode confirmar a tese. No longo poema, o “eu” revela ter vivido em uma ilha — talvez uma metáfora para a sua infância —, tendo conhecido por um breve período a felicidade. Mas, uma vez tocado pela tristeza, tornou-se triste para sempre.

Assim como nunca freqüentou grupos poéticos, durante o curso de direito não se envolveu com o movimento estudantil. Longe de atividades coletivas, começou a publicar seus primeiros poemas no jornal paraibano O Comércio, passando a ser conhecido como “Doutor Tristeza”. Apesar de ter obtido o diploma de advogado, o poeta encontraria seu ganha-pão na atividade de professor. Lecionou literatura no Liceu Paraibano até 1910, ano em que se mudou com a mulher, grávida de três meses, para o Rio de Janeiro. Augusto dos Anjos esperava encontrar na então capital federal as condições ideais para a sua realização artística, mas acabou se deparando com situações adversas. Além de dar expediente no Ginásio Nacional, tinha de ministrar aulas particulares em variados bairros para suprir as despesas domésticas. Como se não bastasse a dificuldade financeira, seu filho recém-nascido morreu, e o incidente transformou-se em um soneto, incluído em seu primeiro e único livro.

Nenhum editor se entusiasmou com a poesia de Augusto dos Anjos, e foi o irmão do poeta, Odilon dos Anjos, quem financiou a publicação de sua estréia definitiva na literatura. O livro Eu, com 56 poemas, entrou em circulação em 1912, mas os jornais e a crítica sequer tomaram conhecimento da obra. Naquele momento, a inteligência fluminense estava mais interessada na “genialidade” de autores como Olavo Bilac, Coelho Neto, Alberto de Oliveira, Paulo Barreto, entre outros.

Apesar da literatura oficial recusar, os leitores populares sentiam-se — e ainda sentem-se —  atraídos pela poesia de Augusto dos Anjos. Nem mesmo o fato de ele utilizar vocabulário incomum repele o público. Pelo contrário. Em seus poemas encontramos palavras como azêmola, mavórtica, cinocéfalos, obnóxia, malacopterígios, entre outras. Surpreendentemente, mesmo sem conhecer tais expressões, a leitura segue fluente, devido à sinceridade do autor, que imprimiu ritmo contagiante em seus versos, construídos com a perícia que é peculiar apenas aos grandes poetas.

Imaginário inconfundível
A morte foi um tema constante do mais ilustre poeta paraibano. No entanto, ao invés de mera obsessão macabra, os poemas sugerem que Augusto dos Anjos tinha a sensação de que iria morrer a qualquer momento. O assunto é apresentado das mais variadas maneiras, seja sob a forma de um símbolo (em O Caixão Fantástico),  no título de um soneto (em Vozes da Morte), na escolha de um animal relacionado ao mau agouro (em Asa de Corvo), e até quando o “eu” poético se rebela contra a Indesejada das Gentes no Poema Negro: “É a Morte — esta carnívora assanhada —/Serpente má de língua envenenada/Que tudo que acha no caminho, come…/— Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,/Sai para assassinar o mundo inteiro,/E o mundo inteiro não lhe mata a fome!”

O fato de Augusto dos Anjos ter abordado a morte ajuda a entender o porquê de sua poesia exercer tanto fascínio nos leitores jovens. Morrer, necessariamente, não faz parte do repertório de preocupações daqueles que se encontram na faixa etária dos 20 a 30 anos. Por isto, moços e moças, que teoricamente têm a vida toda pela frente, são seduzidos por um tema que imediatamente não os afeta. Por outro lado, não se pode descartar a hipótese de que o poeta pressentisse que sua existência chegaria ao fim rapidamente. Em 1914, ele deixa o Rio de Janeiro com a finalidade de assumir o cargo de diretor do grupo escolar da cidade de Leopoldina (MG), e, devido a problemas respiratórios, falece no dia 12 de novembro, com apenas 30 anos.

Se não foi devidamente reconhecido em vida, a cada ano aumenta o interesse por sua poesia. Seis anos depois de sua morte, a Imprensa Oficial do Estado da Paraíba lançou a segunda edição, com o acréscimo de 46 poemas, publicados em revistas e jornais. Em 1928, em sua terceira edição, o livro ganhou o título definitivo, Eu e Outras Poesias, nome pelo qual é conhecido até hoje.

É impressionante como apenas um único livro tenha gerado tamanha repercussão. O imaginário do poeta, que apresenta um mundo em decomposição, sem esperança no amor e repleto de sofrimento, sempre foi difícil de ser catalogado, não se encaixando nos rótulos que poderiam classificar as manifestações artísticas do final do século passado e início deste. Nem parnasiano, nem simbolista, muito menos romântico. Na realidade, Augusto dos Anjos tinha plena convicção daquilo que escrevia, e os poemas mais longos denunciam que ele poderia até ter utilizado a prosa, se fosse o caso, para dar vazão àquilo em que pensava e sentia, e em que tinha fé. Mas, como era um poeta, a poesia foi a sua religião.

Além da atenção dos leitores, sua obra despertou o interesse de psiquiatras, tendo sido objeto de estudos acadêmicos, e atualmente o livro Eu é estudado em cursos de letras, sendo tema de teses de mestrado e doutorado. Augusto dos Anjos também influenciou artistas da música popular brasileira. Na década de 80, o roqueiro carioca Cazuza, considerado um letrista poético, prestou homenagem ao mestre paraibano na canção Por que a gente é assim?: “Canibais de nós mesmos/Antes que a terra nos coma.” O multimídia Arnaldo Antunes, depois de abandonar a banda Titãs em 1992, também revelou ter bebido na mesma fonte. Em seu segundo álbum individual, Ninguém, lançado em 1995, Antunes usou a linguagem do rock and roll para musicar Budismo Moderno, soneto que revela uma “grata aceitação” em servir de banquete a possíveis vermes.

Até mesmo aqueles que não admiram a obra de Augusto dos Anjos reconhecem o poeta por ele ter escrito Versos Íntimos, soneto que sintetiza toda a sua visão de mundo, e que merece ser reproduzido neste espaço: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável/Enterro de tua última quimera./Somente a Ingratidão — esta pantera —/Foi tua companheira inseparável!//Acostuma-te à lama que te espera!/O Homem, que, nesta terra miserável,/Mora, entre feras, sente inevitável/Necessidade de também ser fera.//Toma um fósforo. Acende teu cigarro!/O beijo, amigo, é a véspera do escarro,/A mão que afaga é a mesma que apedreja.//Se a alguém causa inda pena a tua chaga,/Apedreja essa mãe vil que te afaga,/Escarra nessa boca que te beija!”. Brilhante, original, sem usar o fajuto argumento de que estaria dialogando com outros autores — desculpa que os acadêmicos encontraram para justificar o plágio e a incompetência —, Augusto dos Anjos deixou registrada sua passagem pelo mundo, contra tudo e contra todos.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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