Vida e morte do Jornalismo em Mino Carta

O objetivo de uma resenha literária é, até segunda ordem jamais vista por este autor, criticar (em um sentido menos “acadêmico” do que já fora conhecido) a obra literária, e, em última instância, seu autor
Mino Carta: texto cheio de rococós e firulas de linguagem
01/01/2001

O objetivo de uma resenha literária é, até segunda ordem jamais vista por este autor, criticar (em um sentido menos “acadêmico” do que já fora conhecido) a obra literária, e, em última instância, seu autor. Não buscando o julgamento sobre os valores de sua vida particular, claro, mas sempre o contexto de como aquele “trecho” (o livro em questão) se encaixa em sua obra integral.

Isto posto, é de se duvidar que algum resenhista resolva criticar, ao invés da obra e/ou seu autor, o público a quem ela se destina. Entretanto, como a ousadia sempre pareceu ser um tempero excitante ao ser humano, aqui vamos nós.

O Castelo de Âmbar (Record, 400 p.), primeiro romance (por definição) do jornalista Mino Carta, é um livro destinado a jornalistas. Não obstante, foi figura fácil nos presentes de fim de ano distribuído aos colegas de redações. Se você conhece um jornalista, pergunte a ele sobre O Castelo de Âmbar. Certamente, se ele ainda não tiver o lido, estará para o fazer em breve, muito breve.

Acontece que, infelizmente, por mais honrosa que seja a profissão deste resenhista e de tantos outros colegas de Rascunho, a tendência dos profissionais do Jornalismo é sempre se segmentar aos demais. Generalizo, é verdade. O que pode ser um erro. Mas prefiro arriscar. Jornalistas gostam de conviver com outros jornalistas para falar sobre o Jornalismo em geral. Hábito ruim? Não entra em questão. O fato é que jornalistas costumam fazer isso. E livros escritos por jornalistas que falem sobre o Jornalismo, não demoram a cair no gosto da classe.

Tomado pela expectativa criada pelos colegas é que recebi com ânimo O Castelo de Âmbar, do renomado Mino Carta. Sem dúvida, um dos criadores do modelo de funcionamento da imprensa brasileira hoje, embora crítico mordaz da mesma. Um jornalista que merece ter sua vida, ao lado de nomes como Samuel Wainer e Cláudio Abramo, catalogada como História do Brasil, ainda que tenha nascido na Itália.

Só para traçar um panorama rápido, Mino começou no Jornalismo na idade de 15 anos, cobrindo justamente a Copa do Mundo no Brasil, em 1950. Desde então, trabalhou em vários jornais e revistas brasileiros e italianos. Foi o fundador de veículos como as revistas “Quatro Rodas” e “Veja” (ambas da Editora Abril) e diretor de redação do “Jornal da Tarde” (pertencente ao grupo O Estado de S. Paulo). Sua última mudança foi em 1993, quando deixou o comando da “IstoÉ” e fundou a “CartaCapital”, onde trabalha até hoje em sua velha máquina de escrever.

Em O Castelo de Âmbar, romance por definição, repito, Mino Carta faz um apanhado de memórias e as transforma em relatos de um personagem de ficção, nomeado Mercúcio Parla. Parla é o “alter-ego” de Mino, também imigrante italiano, autodidata, filho e neto de jornalistas. Ao longo do texto, não é difícil perceber as alusões do autor à sua própria vida, muito embora alguns fatos tenham sido propositadamente romanceados, como alega o autor, ditando aí os argumentos que colocam O Castelo na categoria de romance. Mas voltaremos ao conteúdo do livro em breve.

Um livro escrito por um jornalista, que fale sobre o Jornalismo e seja voltado aos próprios jornalistas tem inúmeras razões de ser. O problema é que a obra, dentro desse panorama, diminui em sua universalidade, porque dificilmente agradaria ao leitor comum que não estivesse interessado no misto das memórias de Mino Carta e da história do Jornalismo brasileiro. Agrada, claro, aos coleguinhas (o diminutivo sempre causa aspecto de ironia, o que não é exatamente a intenção, aqui), porque têm mais uma oportunidade de lerem e pensarem sua profissão, seus colegas, seus patrões, seu mundo, enfim, para se encerrarem dentro de seu universo.

E assim não se faz literatura.

A mim, sobrou o ranço de me entregar à “moda” (saudável, diga-se) de ler o livro do momento entre os convivas, e constatar: pelo bem geral das letras neste país, espero que demore a ser lançado outro livro para jornalistas. Em 99 foi Notícias do Planalto, de Mário Sérgio Conti. Agora foi a vez de Mino Carta. Espero, para o bem de todos, que seja dada uma trégua nos lançamentos jornalísticos. Mesmo porque, um espaço para reflexão sempre faz o conteúdo literário render mais do que algumas horas de leitura.

Agora, um pouco de literatura

Injustiça utilizar um espaço destinado a uma obra literária para falar apenas sobre seu público. O Castelo de Âmbar não merece isso. Independente do frisson causado em seu público-alvo, é uma obra muito bem composta e válida, exatamente por se tratar de um livro completo sobre a vida de um personagem tão importante quanto Mino Carta foi, é e será dentro da história contemporânea brasileira.

O livro é dividido em duas partes, a primeira “O aprendiz do bosque”, e a segunda, “As sombras minguantes”. Entre as partes está uma preciosidade: “Um conto, apenas”, que alerta, em seguida, que “qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas, é mera coincidência”. Ironicamente, é quando o autor se desveste de seu personagem Mercúcio e, em terceira pessoa, narra os acontecimentos que levaram à saída do então diretor de redação da revista “Veja”, Mino Carta.

É, em certa medida (porque ao mesmo tempo confuso) interessante confrontar a parte “ficcional” do texto com sua correlação realista. Carta se utiliza de um sem-número de metáforas visuais e lingüísticas para redesenhar os acontecimentos de sua vida. E aí entra o “castelo de âmbar”, figura lúdica presente nos vislumbres do personagem Mercúcio, que é o inalcançável, o intangível. É, ao mesmo tempo, Céu e Inferno, culpa e redenção.

Todos os personagens das memórias de Mercúcio parecem ser relacionados com as pessoas presentes no desenvolvimento da vida de Mino. Alguns são bastante óbvios, como Aldo Walder, a alcunha de Vlado Herzog, jornalista morto durante sessão de tortura por agentes do governo militar da época. Outros, não arriscaria, como o “cara-de-fuinha”, que parece ser Roberto Civita, herdeiro do legado de Victor Civita na Editora Abril. Assim como a maioria dos personagens “criados” remetem a algum estudo etimológico, ou baseados em mitologia ou literatura. Espero que algum estudioso possa lançar luzes sobre este detalhe. Eu fui incapaz.

No entanto, o que é mais agradável no livro, e que dá um maior ar de leveza à narrativa, são as inserções de trechos que quebram a linearidade da história, como as “anotações para um artigo” ou as “cartas a Cassius”, este, um destinatário confidente de Mercúcio. Nestes enxertos estão contidas as maiores preciosidades da obra, porque o autor se utiliza de um gênero mais agradável ao seu estilo de texto, que é a crônica. O texto de Mino Carta é bastante rebuscado, ora com excessos de adjetivos e outras palavras menos comuns. O que, claro, é sempre uma contribuição à língua, mas que, ao mesmo tempo, pode emperrar a leitura.

O Castelo de Âmbar é uma lição de vida e de jornalismo, à medida que o verdadeiro profissional do jornalismo é aquele que dedica a vida a ela. Em tempos que a dúvida ética é colocada em discussão (em um improvável “vale a pena ser ético?”), a postura do jornalista e escritor Mino Carta é louvável, a quem quer que seja. Não sei se é possível apontar um erro de gênero, mas, ora essa, deixemos as convenções de lado. Acima de tudo, está o exemplo do que significa nesta profissão e na vida, postura, ideologia, conhecimento e prática.

Trecho:

“O cara-de-fuinha”

Entre os troncos faíscas as lentes grossas do cara-de-fuinha, cogito da emanação miasmática dos humores do víscido tapete do bosque, onde se empastam devaneios, quimeras e pesadelos. Caminha na minha direção, em ziguezague e ritmo intermitente, torcido em atitude obsequiosa, me apresso a fazê-lo mudar de rumo, fúria nos olhos, punhos crispados, estaca em átimo de incerteza, logo gira sobre os calcanhares e corre em retirada, não o imaginava capaz de tamanha leveza e agilidade nas ralas frestas entre as árvores densas, milagrosamente divisadas em meio à folhagem intensa e plúmbea.

E um pouco de Jornalismo

Não há como fugir. A obra de Mino Carta não pode ser simplesmente analisada do ponto de vista literário, porque sua obra está fundida ao jornalismo, que poderia ser uma espécie de literatura diária, mas está muito longe disso.

No melhor estilo de relato jornalístico está “Um conto, apenas”, que mostra a visão do próprio autor em relação a um acontecimento que modificou sua vida. Chegou a declarar Mino Carta que “jamais perdoará” Roberto Civita, pelo que lhe causou quando de sua saída da Editora Abril. Resumo da ópera: depois de comandar a redação de “Quatro Rodas”, de criar a editoria de esportes do “Estadão” e dirigir o “Jornal da Tarde”, os Civita, imigrantes judeus com alguns pés nos Estados Unidos, chamaram Mino Carta para comandar aquela que seria sua menina-dos-olhos, a revista “Veja”.

A “Veja” se destacou no começo de sua existência por tratar de temas polêmicos, dificilmente encontrados em outros veículos durante os anos de repressão à liberdade de imprensa. Inspirada nas newsmagazines americanas (tais como a “Time” e a “Newsweek”), não demorou muito para a “Veja” começar a incomodar o governo militar, que estabelecia censura prévia aos veículos da imprensa. Mino Carta conta que sua permanência era vista como a principal dificuldade para os gerentes da Abril conseguirem um empréstimo junto à então Caixa Econômica Federal que saldaria as dívidas da empresa no exterior. O Ministro da Justiça, Armando Falcão, não liberaria o dito empréstimo enquanto Mino não deixasse a direção da revista.

Deu-se que Mino teve entreveros com a cúpula da Abril, da qual, até então, ele fazia parte do board de conselheiros. E acabou saindo. Ou sendo saído. Em seguida, o dito empréstimo foi liberado e, desde então, a Editora Abril é uma das gigantes editoriais no mercado brasileiro.

O exemplo próprio trazido por Mino sugere em que termos os “barões da imprensa” se consolidaram no Brasil. Hoje, já não se tem mais idéia de como e quanto são capazes de influir os grupos dos Civita, dos Marinho, dos Frias, dos Mesquita, e assim por diante na política brasileira. A força de seus impérios, a maioria estruturados durante a ditadura militar, sugere como é relativa a ilusão da liberdade de imprensa. Citando o autor: “a nossa imprensa serve ao poder porque o integra compactamente, mesmo quando, no dia-a-dia, toma posições contra o governo ou contra um ou outro poderoso. As conveniências de todos aqueles que têm direito a assento à mesa do poder entrelaçam-se indissoluvelmente”.

Ricardo Sabbag
Rascunho