Nas nossas mãos

Inês Pedrosa faz parte de um inesgotável grupo de escritores portugueses que, por motivos nebulosos, ainda continua desconhecido do público brasileiro
01/01/2001

Inês Pedrosa faz parte de um inesgotável grupo de escritores portugueses que, por motivos nebulosos, ainda continua desconhecido do público brasileiro. Enquanto aqui impera a força de José Saramago, António Lobo Antunes, Cardoso Pires e Miguel Torga — para citar apenas alguns excelentes exemplos —, outros, como Inês, Jacinto Lucas Pires e José Riço Direitinho, são figuras inéditas e distantes por estas bandas.

A força da literatura de Inês Pedrosa está plenamente representada no romance Nas tuas Mãos (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997), pois elevando a importância da forma com que o discurso é tecido na obra, a limpidez parece ser uma possibilidade para o encontro do público com Jenny, Camila e Natália. Aliás, na revista Colóquio Letras 147/148 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, janeiro — junho de 1998), há uma recensão crítica do romance da autoria de Urbano Tavares Rodrigues em que ele rende tributos justamente à “riqueza de processos narrativos” (pág.353) e à “plasticidade da linguagem” (pág.353), além de afirmar que Inês “tem o condão de tocar com uma varinha mágica situações que poderiam ser chagas e se tornam flores” (pág.353). Apesar disso, sua limpidez não é única via de encontro com o leitor porque, quando abrimos o romance, adentramos delicados espaços de intimidade: um diário, um álbum de fotografias e um maço de cartas. Cada um desses lugares guarda o espaço da interlocução, do outro para quem as narradoras dirigem o discurso e que, pela via da leitura, identifica-se com o próprio leitor.

A economia do romance revela que, apesar de dividido em três partes de dez capítulos cada, o seu desenvolvimento rasura a perfeição matemática. Tanto a primeira quanto a última parte, “O Diário de Jenny” e “As Cartas de Natália”, são maiores que o intermediário “O Álbum de Camila”. Este dado sutil ganha significado à medida que as relações afetivas e os destinos se problematizam. A experiência da maternidade começou para Jenny pela via da infidelidade, não a sua ou de seu marido, mas por meio do amante dele. Assim, Camila foi confiada ao pai, que a entregou ao amante, que a entregou à mulher que era a dele por direito. Já Natália nasceu do encontro de Camila e Xavier, um guerrilheiro da Frelimo com quem ela se relacionara em Moçambique. As cartas de Natália para Jenny, parte escritas depois da morte da avó, revelam um vínculo ímpar, jamais estabelecido com a própria mãe. É emblemático o encontro amoroso de Natália e Álvaro, documentado na última carta da obra, que realiza a possibilidade que Antônio negou a Jenny entre “dentadas e lágrimas” (pág.18), logo na primeira parte do seu diário. Esse encontro se dá na Casa do Xadrez de Jenny, Antônio e Pedro, tornada habitável novamente por Natália depois da morte dos três.

A vida começa a se agitar no romance a partir do momento em que Jenny e Antônio se conhecem no verão de 1935 e termina com a última carta de Natália para a avó em outubro de 1994. Sessenta anos são suficientes para marcar a diferença, mas não para inviabilizar relações. Assim, o romance pode ser lido no diálogo entre contexto e perfis femininos: Jenny, “eu pertenço a uma geração de raparigas poupadas ao flagelo de ganhar a vida” (pág.21); Camila: “Hoje sei que sou crescida: não tenho fé nem alegria nem confiança em nada no mundo” (pág.128) e Natália: “sei que não vou desistir do sabor violento e vagaroso da paixão” (pág.209). Em meio às guerras, a Salazar, à guerra colonial, à Revolução dos Cravos e à incerteza do presente, três mulheres assinalam diferentes faces do universo feminino que se cruzam em cada esquina do texto.

O romance tem uma epígrafe diferente para cada parte que o compõe e este pequeno texto estabelece vinculações extremamente significativas com cada narradora-protagonista. Essas não são apenas da ordem do significado, mas também do significante. A epígrafe que abre o “Diário de Jenny” realça a importância dos sentimentos que preenchem a vida. Não se pode menosprezar o fato de a epígrafe estar em inglês. O elemento estrangeiro se confirma no nome da própria narradora, herdeira atualizada da heroína do romance A Família Inglesa, de Júlio Dinis. Dela, Jenny guarda não só o nome, mas também certos traços da personalidade tais como a beleza, a natureza conciliatória e salvadora dos homens perdidos pelos clamores da noite e do jogo. A Jenny de Inês conseguia subverter a ordem natural do tempo e ficava mais jovem a cada dia, porque a sua juventude era alimentada pelo amor que foi a sua própria razão de ser. Segundo Camila, Jenny só perdeu a vontade de ser bela depois da morte de Antônio.

A epígrafe que abre o “Álbum de Camila” realça no francês da mãe judia e biológica a construção da felicidade pela via das aflições. Camila cresceu acreditando que era o resultado de uma paixão frívola sem saber do ardor que se agitava a sua volta, flertou com a tragédia quando foi presa pela polícia política e quando perdeu os dois grandes homens da sua vida. Essas experiências contribuíram para o abandono das crenças. Pelo discurso do diário-herança de Jenny, que, antes de chegar até as mãos da filha, nós, leitores, tivemos acesso, Camila recupera a imagem do pai que sempre fez questão de manter a distância. É ela também quem nos apresenta os contornos mais firmes do mundo a sua volta. Não bastasse o fato de ser ela uma fotógrafa, jamais se poupou ao encontro com o mundo. Só no último parágrafo da narração de seu “Álbum”, Camila recupera a si mesma pela via da auto-contemplação: “Caí na fraqueza da paixão, mas nunca cheguei a cair no pecado mortal de me apaixonar por mim. Tinha boas defesas” (pág.149).

Para abrir o maço de cartas de Natália, Vergílio Ferreira antecipa em bom português a intensidade que ela herdou dos seus. O idioma que lhe revela a essência também descortina um traço formal da identidade híbrida de tantos filhos de África: uma mãe que tinha a “doença da Europa, (…) do pensamento” (pág.109) e um pai tão grande quanto Moçambique (p.220). Natália sintetiza o aproveitamento significativo de seus traços de herança e o seu olhar de arquiteta constrói de certa forma tanto a imagem da África quanto do Portugal de hoje. O funeral de Jenny também lhe dá forças para desacreditar da racionalização do amor — “Parece que a Jenny ancorou em definitivo sobre o meu coração, que o escolheu como caixa de ressonância da sua alma” (pág.224). A reconstrução da Casa do Xadrez só podia ser mesmo feita por Natália. Com a realização do projeto, fecha-se o jogo ficcional que subverte a voracidade do tempo.

O romance também encena a história de grandes amizades alicerçadas tanto no puro quanto no fero amor, para roubar a metáfora a Camões. Atravessando três gerações de histórias de amizade intensas, mesmo quando dramaticamente interrompidas, um nome permanece fiel, o de Manuel Almada, por exemplo. É com a sua ajuda que Natália reconstrói a casa.

“Olha o sol e a lua” (pág. 16), diziam todos quando os amigos apareciam nos salões apinhados de moças que não entendiam a natureza da relação de Jenny, Antônio e Pedro. Começando pelos dois, a amizade era o rótulo público da sua relação apaixonada. Nessa via, Jenny era o brinquedo e o equilíbrio de ambos, por Antônio não desprezava os laços e as tranças que a faziam menina para sempre e pela abertura sutil na parede do quarto clamava que Pedro perdoasse os arroubos de Antônio e fizesse o favor de amá-lo para ela. Jenny jamais conseguiu construir uma relação de amizade que fosse independente dos dois, nem mesmo com Josefa Nascimento de quem ela até cuidou, a sua cumplicidade para com os dois inviabilizava outras opções.

Camila herdou do marido de Jenny a tolerância para com os Velleno, Glória talvez fosse para ela o que Delfim Velleno era para Antônio. Ambos se compadeciam das demonstrações públicas de covardia do pai e da filha. Nas duas situações emblemáticas da paixão dos Velleno pela sua própria pele, Camila foi a maior prejudicada, ora com a sua prisão e tortura ora com a sua demissão. A metáfora utilizada para dar conta da relação de Camila e Glória era análoga à de Pedro e Antônio, “o dia e a noite” (pág. 97) e só quando a desistência da segunda foi maior que a própria defesa da amiga: “Gosto muito de ti, Camila. Sabes isso. Eu não posso ser metida em coisas dessas. E acho que não adianta nada. O mundo é assim.” (pág. 126) é que a filha de Pedro desistiu também. Apesar disso, Camila fazia questão de guardar uma foto antiga das duas que garantia a permanência da mágoa e, portanto, de um vínculo.

A relação de Natália e Leonor guardava afinidades com as anteriores que o romance dá a conhecer, insistência e cumplicidade, por exemplo: “Entre mim e a Leonor basta o rascunho de um gesto” (pág. 179) ou “O que eu vejo nela (…) é um somatório de minúcias que tende para o infinito” (pág. 203). Na verdade, esta amizade tanto quanto guardava com a de Camila e Glória os traços do afeto dedicado, da insistência incompreendida com que duas pessoas de princípios éticos tão opostos se procurassem e da cumplicidade, também atualizava a paixão homossexual de Antônio e Pedro. Em um arroubo, Leonor revela a uma surpresa Natália a natureza do seu amor e confirma o princípio que Jenny julgou ser o seu maior legado a Camila: “Os factos, minha querida Camila, não existem, são peças de loto que inventamos e encadeamos para nos sentirmos vitoriosos ou, pelo menos, seguros. Cada ser tem o seu segredo, cada amor o seu código intransmissível” (pág. 20).

Nas tuas Mãos também pode provocar uma reflexão a respeito dos espaços, sobretudo da casa como metáfora de nosso canto do mundo: “a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade.” (Bachelard, Gaston. Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 242 págs. (pág.36)). Jenny, Antônio e Pedro construíram a sua Casa do Xadrez sobre a antiga Casa das Camélias que abrigara a família nuclear da primeira. Para além da subversão do espaço, está a inauguração de um outro universo habitado por novas imagens de uma casa ideal. O labirinto do xadrez botânico, a pele de leopardo em frente à lareira, o quadro incestuoso no alto da escada, a antiga sala de jantar rebatizada de “museu vivo dos contrastes” (pág. 48), era o espaço que reunia as condições de estabilidade para que Pedro e Antônio voltassem depois de desperdiçar os aparelhos de jantar de Jenny nos cassinos da sua perdição; era onde Jenny conseguia tê-los e amá-los cada um a seu modo; era onde os três recebiam os amigos que transformavam a casa em um corpo frenético.

Depois da morte de Antônio, Pedro deixou a Casa do Xadrez para morrer, mas Jenny jamais conseguiu deixar aquele universo dos três: “As pessoas que morrem entranham-se nas paredes da casa e nas copas das árvores do jardim” (pág.65). As ameaças de internamento entrevistas por Jenny na expressão de Camila, quando esta ia visitá-la, eram as únicas forças que conseguiam apaziguá-la em momentos de crise. Na verdade, Jenny continuou ouvindo as vozes e risadas de Pedro e Antônio durante muito tempo e, quando elas começaram a sumir, levaram junto a sua beleza e a sua razão. A Casa do Xadrez era o espaço privilegiado de proteção do núcleo do “Diário”, o Portugal onde as guerras eram temas para debates acalorados, Salazar, o protagonista de controvérsias domésticas e nada mais. Apesar disso, ela não conseguiu proteger Camila que já não estava satisfeita com seus limites.

Camila sai de casa, do país, encontra África e volta, mas não fica na Casa do Xadrez, procura um outro espaço em que possa se defrontar com as exigências de seu modo de viver e pensar. Na narração de seu álbum, encontramos a visão de Portugal como “uma casa esconsa, sem livros nem música nem outra cor que a das andorinhas nos beirais, chilreando ensurdecedoramente, boiando no vazio do céu.” (pág. 119). Essa imagem de casa dificilmente corresponderia à imagem de uma casa ideal, ela não tem os elementos que o sujeito do discurso parece dar importância, daí a insatisfação. O olhar de Camila revela a insatisfação frente ao triste Portugal de 1968, cheio da repressão da qual ela outrora havia sido vítima frontal.

Novamente os traços de permanência se acentuam em Natália. Um pouco antes de seu casamento com Rui, ela insiste em alugar um apartamento com uma pequena vista para o Tejo, tal qual a Casa do Xadrez tinha. Depois de sua separação, a casa em que o casal morara tornou-se impossível para ambos, porque o “amor de ontem merece mais que o conforto dos hábitos e o conformismo da complementaridade” (pág.210). Nas duas últimas cartas que Natália escreve à sua Jenny, já morta, ela revela a sua procura por si mesma, pelos valores que rechaçou, mas nos quais está disposta a investir. Quando a porta da Casa do Xadrez se abriu revelando em espaço de ruínas, Manuel Almada pediu apenas a Natália que não mudasse nada na casa. Assim ela fez no essencial, mudou apenas as instalações elétricas e hidráulicas e escolheu aquele lugar para a materialização da sua casa ideal.

Só depois da experiência na África, Natália realiza o plano de rever a Casa do Xadrez. Só depois da intervenção na terra que abrigava o cadáver de seu pai, Natália volta para Portugal com o propósito de refazer o espaço dos seus para torná-lo definitivamente seu. Seu gesto simboliza a capacidade de rever o passado, aproveitar dele os alicerces, beneficiar-se do presente e sondar o futuro por meio de gestos de coragem, como acreditar na possibilidade da realização amorosa. A leitura do espaço através da experiência dos personagens pode significar a releitura do país, que se faz no presente por Natália, neta de uma paixão contrária aos valores do tempo, filha de uma mãe que não se escondeu das experiências do presente e de um pai cuja cabeça fincada à frente da escola Feitor Praça apontava inequívoca para futuro diferente para a sua pátria.

Nas tuas Mãos convida o leitor a ser o verdadeiro interlocutor do discurso e a partilhar de segredos revelados em espaços de profunda intimidade, um diário, um álbum de fotografias e um maço de cartas. Quando o texto se encerra no convite aceito de Álvaro, estamos sós novamente, mas subversivos como nunca: “Descobri consigo [Jenny] que ficar só é um privilégio de amante” (pág.226).

Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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