Ulisses singraria oceanos virtuais?

No artigo intitulado Paraíso Perdido, publicado no final do milênio passado no Correio Braziliense, a professora de literatura da UnB, Regina Dalcastagnè, faz o balanço do recente casamento do escritor iniciante com a Internet
Regina Dalcastagnè, autora de “O prego e o rinoceronte”
01/02/2001

No artigo intitulado Paraíso Perdido, publicado no final do milênio passado (dia 24 de dezembro) no Correio Braziliense, a professora de literatura da UnB, Regina Dalcastagnè, faz o balanço do recente casamento do escritor iniciante com a Internet. Provocadora, a articulista propõe que “imaginemos um escritor iniciante imaginando o paraíso. Seria um lugar onde todos pudessem publicar, sem depender da aprovação de editoras e sem o investimento de grandes quantias; um lugar de onde cada texto alcançasse, potencialmente, o mundo todo. Está claro: o paraíso já existe. O paraíso do escritor iniciante é a Internet”. Mas depois de circular um pouco pelo paraíso, a dura constatação: a avalanche de textos que se publica na Internet é, na opinião de Dalcastagnè, tão ruim, que “o paraíso dos escritores é também o inferno dos leitores”. Da minha parte, gostaria de jogar mais lenha nessa fogueira (mudando temporariamente de assunto).

Por mais que os críticos literários e os próprios ficcionistas da atualidade sejam aversos às ruminações dos filósofos, estes têm lá sua utilidade. Logo no início de um texto bastante inspirado, batizado de Dialética do Iluminismo, a dupla Adorno-Horkheimer lança certa luz materialista sobre o impasse que o canto das sereias provocou no desencantado Ulisses. Para os teóricos alemães, ao evocar o passado do herói a fim de seduzi-lo, as sereias ameaçaram, com a irresistível promessa do reencontro com Penélope, os dias futuros de Ulisses.

“Se as sereias sabem de tudo o que se passou, elas exigem o futuro como preço disso, e a promessa do feliz retorno é o engano pelo qual o passado captura o saudoso. Ulisses foi prevenido por Circe, divindade que transforma os homens em animais; ele lhe soube resistir e, em compensação, ela lhe deu a força de resistir a outros poderes de dissolução. Mas a sedução das sereias é assim mesmo forte demais. (…) Inimigo tanto da própria morte quanto da própria felicidade, o pensamento de Ulisses sabe disso. Ele conhece apenas duas saídas possíveis. Uma ele prescreve a seus companheiros. Ele lhes tapa as orelhas com cera e manda-os remar com toda a força que puderem. Quem quiser subsistir não deverá dar ouvidos à tentação do irresistível e isso só poderá ser evitado caso não lhe seja possível escutá-la. Disso a sociedade sempre cuidou. Viçosos e concentrados, os trabalhadores devem olhar para a frente e deixar de lado o que estiver ao largo. Eles devem sublimar o impulso que os pressiona ao desvio, aferrando-se ao esforço suplementar. Assim eles se tornam práticos. A outra saída é a que é escolhida pelo próprio Ulisses, o senhor das terras, que faz os outros trabalharem para si. Ele escuta, porém privado de forças, atado ao mastro, e, quanto maior se torna a tentação, mais fortemente ele se faz acorrentar, da mesma maneira que, em épocas posteriores, os burgueses recusarão a felicidade para si mesmos, com tanto maior obstinação quanto mais a tenham ao seu alcance, com o crescimento do seu poder. O que está sendo escutado não tem conseqüências para ele, que pode apenas acenar com a cabeça para que o soltem, porém tarde demais: os companheiros, que não podem escutar nada, sabem apenas do perigo do canto, não da sua beleza, e deixam-no atado ao mastro para salvar a ele e a si próprios.”

A Internet é, para o escritor que deseja se aventurar, não só o oceano que lhe servirá de túmulo, mas também o canto das sereias que o fará naufragar. Pelo menos assim a define a parcela da crítica literária que, vendo-se obrigada a conviver primeiro com o computador — organismo “estúpido” por excelência — e agora com a sua alma, a Rede, sentindo-se acuada por ferramentas confusas que não consegue dominar, tapa logo os ouvidos com cera. Uma vez que, ainda de acordo com a dupla de Frankfurt, “confusão” (o animismo, o mito, a arte) e “prática” (o iluminismo, o capitalismo, a produção de bens) são inimigas mortais, a conclusão óbvia só poderia ser: se por mais de trinta séculos a literatura prescindiu de ferramentas eletrônicas, porque justamente nós é que teremos de nos haver com elas?

Mas a Internet (como as sereias) por si só não representa avanço algum: é o “mesmo” repetido. Nisso a crítica está certa. Sereias e remadores com cera nos ouvidos têm como objetivo a preservação do mundo como ele é. Afora o desejo de conservar intocado o passado — Ulisses quer a todo o custo se libertar das correntes e se entregar às sereias, pois são elas que lhe oferecem a Ítaca de sua juventude —, existe aqui o rancor típico dos impotentes.

A realidade se refaz a cada dia, com ou sem o consentimento dos homens. A Internet, a globalização e o pós-modernismo — três entidades fantasmagóricas a assombrar os nobres e justos — são o terremoto, a avalanche, o maremoto contra o qual afirmações do tipo: “O cataclismo é anti-democrático! É tirânico! É desumano!”, soam ingênuas e ridículas. Durante um dilúvio o que importa é sobreviver a ele, ajudar a salvar outras vidas, tirar partido de sua energia irracional. Cartazes com os dizeres: “Déspota! Opressor!”, não diminuirão seu instinto assassino nem o número de mortos.

Regina Dalcastagné está certa, quando afirma que “o paraíso dos escritores é também o inferno dos leitores”. No entanto, por mais que o livro de papel ainda esteja dando de goleada no e-book — por mais que, segundo a articulista, Gutenberg esteja vencendo todos os rounds contra a imprensa virtual — não creio que haverá, nos próximos anos, a menor chance de sobrevivência do livro como o conhecemos. A Internet e todas as facilidades que ela traz para a literatura — baixo custo de produção, facilidade de edição e de distribuição etc.— é o cataclismo natural e sobrenatural que irá soterrar estantes e bibliotecas, com ou sem o consentimento de seus donos. Nossa geração cresceu e foi educada unicamente ao sabor do livro de papel, por isso a resistência diante do canto da sereias. Nossos filhos, em contrapartida, estão crescendo e sendo educados de maneira diferente. Para eles, o livro de papel não é o fetiche com o qual nós estamos acostumados, nem o computador é a máquina repulsiva que era para nós, quinze anos atrás. No futuro, nossos netos se entregarão ao canto das sereias, ao paraíso literário, sem a menor cerimônia, e, por conta disso, nossos bisnetos irão visitar nos museus o livro de papel, que gozará de merecido descanso ao lado da tábua de argila, do papiro e do pergaminho.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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