Apesar do tapa na cara nem tudo tá dominado!

A ressaca de carnaval nos trouxe a estranha sensação de que nossa goela é depósito de todos os sapos do universo, culturalmente falando
01/03/2001

A ressaca de carnaval nos trouxe a estranha sensação de que nossa goela é depósito de todos os sapos do universo, culturalmente falando. Assistimos no fim de fevereiro à imposição de mais “uma novidade” musical que tomou conta do País de norte a sul: o funk carioca.

Surgiram coisas bizarras, como Bonde do Tigrão e Tapinha, que parecem ter contaminado todos os(as) rádios do mundo. Outra mostra da “criatividade” musical do país tetra-campeão do Grammy foi a música Tapa na cara, obra de um tal de Alexsandro Cerqueira, que gerou grande polêmica por fazer alusão ao prazer dado a uma namorada por meio de um tapa na cara. Para a prefeitura de Salvador, cidade berço de grande parte do lixo musical que a indústria do jabá vende Brasil afora, a “canção” é caso de polícia.

A alternativa para quem quer fugir de letras acéfalas existe, mas poucos terão acesso, já que o mercado fonográfico sufoca qualquer iniciativa de elevar o nível “neuronal” da música brasileira.

É justamente por isso que poetas/letristas estão cada vez mais raros.

O carioca Abel Silva é exceção em meio ao cenário medíocre das “letras musicadas”. É autor de sucesso, compositor consagrado, apesar de escrever bem, de elaborar letras inteligentes e sensíveis.

Entre as letras mais famosas estão as de Festa do Interior e Jura Secreta, de onde foi tirado o título de seu mais recente livro: Só Uma Palavra Me Devora — Poesia Reunida e Inéditos (Record, 252 págs.).  A malandragem carioca está em cada verso, a cidade do Rio, as belas e insinuantes mulheres que desfilam pelas praias, a alegria, o sol. São quase 30 anos de poesia resumidos nos 180 poemas, além de textos publicados em jornais e revistas entre 1973 e 2000, muitos deles ainda inéditos. A trajetória de Abel Silva já lhe rendeu elogios muito qualificados. Carlos Drummond de Andrade disse que a poesia de Abel “se comunica e encontra expressão natural na música”. O cineasta Glauber Rocha referiu-se  a Abel como um “neo-modernista surpreendente de cuca voadora”. As qualidades de poeta-músico são atestadas em inúmeras parcerias de sucesso, como as que colocaram à disposição do grande público ótimas composições, cantadas por Fagner, João Bosco, Sueli Costa, entre outros.

Uma parceria involuntária surpreendeu Abel Silva após a publicação deste livro: Ivan Lins musicou, por conta própria, dois poemas inéditos de Só uma Palavra me Devora e depois comunicou ao poeta. Este que já nos pôs a pensar na vida com um simples verso: “Só uma coisa me entristece/o beijo de amor que não roubei”.

Jura Secreta

Só uma coisa me entristece
o beijo de amor que não roubei
a jura secreta que não fiz
a briga de amor que não causei.

Nada do que posso me alucina
tanto o que não fiz
nada do que quero me suprime
do que por não saber ainda não quis

Só uma palavra me devora
aquela que meu coração não diz
só o que me cega, o que me faz infeliz
é o brilho do olhar que não sofri.
(musicado por Sueli Costa)

Asas

O que este punhal tem de ave
são as asas da imaginação
a dor voa mas volta sempre
e pousa em meu coração.

Voa gaivota breve, voa leve
que o mar tem alma secreta
e guarda a carne dos peixes
e a solidão de poeta.
(musicado por Fagner)

Contemplação

toda vez que o amor me fez chorar de dor
imaginei
que amar é mesmo não conte-se mais dentro de si
é sentir-se como transbordar
é doar querendo possuir
é sentir lágrima correr
e rir

Teu sorriso faz meu coração bater todo feliz
teu olhar no entanto sabe confundir o meu olhar
eu não sei bem certo o que ele diz
se está longe, perto ou por um triz
o amor que eu sempre soube vai chegar

Da janela vejo o Redentor ao sol da tarde azul
e parece que ele quer voar sobre a cidade
e deixar teu posto na amplidão
e pousar quem sabe aqui no chão
ressurgir na condição humana novamente

É que mesmo na tristeza e solidão homem, mulher
toda gente traz guardada em seu peito a ambição
de sonhar e conseguir viver
a suprema luz de merecer
um amor ao menos antes de morrer.
(musicado por Roberto Menescal)

Diálogos poéticos: cimento transformado em éter
O mais recente livro de Francisco Alvim, Elefante (Companhia das Letras, 152 págs.), lançado no fim do ano passado, traz referências explicitadas já no título a dois artífices das letras: Carlos Drummond de Andrade e Dalton Trevisan. Este foi parâmetro para calibrar a elipse precisa, a síntese e o corte abrupto. “Quer ver?/Escuta.” Aquele instigou a tensão do tempo presente com a pesquisa metalingüística (“—A questão é de saber/se uma palavra pode significar tantas coisas. — Não, a questão é de saber/quem manda”), além de pôr em xeque a estética da poesia. “O vôo das sombras/gira em torno de uma coluna/sonora, o poema.”

Alvim transforma Elefante em um poema, no qual o animal é interlocutor calado que descreve os conflitos da obra drummoniana, que são traduzidos em imagens como a do brilho que reverbera ou a de um ar feito de carne. O erótico, o abstrato, as rupturas e as incorporações, às vezes fugidias, tudo isso está no livro. “chove nos edifícios/e também em tua sombra/de bípede que palmilha/esta e mais outra trilha.”

Este livro traz de volta uma voz que é vértebra da espinha dorsal da poesia brasileira contemporânea. Havia 12 anos desde o lançamento de  O Corpo Fora. Com este Elefante, Alvim retoma sua poesia  cética, sobretudo com o seu ofício. Aliás, essa é a essência da própria poesia e está presente desde o primeiro poema do livro, Carnaval. “Sol/Esta água é um deserto/O mundo, uma fantasia/O mar, de olhos abertos engolindo-se azul/Qual o real da poesia?”. É o existir/não existir e esta pergunta incessante que martela: Qual o real da poesia?

Um dos grandes momentos do livro é Escolho:

“Longe tão longe/do humor da ironia/das polimorfas vozes/sibilinas/transtornadas no ouvido/da língua”. É o movimento que divide, é o antilirismo que refrata.

Francisco Alvim molda seu Elefante com a massa da tensão que nunca cessa e que implode a forma, a linguagem e a própria poesia, mas eleva o escritor. Este que se considera “Descartável” e que abre seu maior conflito: excluir o próprio poeta desta jogada chamada poesia. “vontade de me jogar fora.”

Elefante(pág. 69)

O ar da tua carne, ar escuro
Anoitece pedra e vento.
Corre o enorme dentro do teu corpo
o ar externo
de céus atropelados. O firmamento,
incêndio de pilastras,
não está fora — rui por dentro.
Reverbera no escuro o brilho baço
Do túrgido aríete
com que distância e tempo enfureces.

Teu pisar macio, dançarino,
enobrece os ventres frios,
femininos.

A tua volta tudo canta.
Tudo desconhece.

Poema (pág. 70)

A Carlos Drummond de Andrade

Há muitas sombras no mundo
Elas ventam nas nuvens
e no ar
brilham solitárias como topázios —
gotas de luz apagadas

Os astros ventam
A sombra é o vento dos astros

No fundo das águas prisioneiras
de lagos e açudes
há um vento de águas —
sombras

No mar
refratam-se submersas
viageiras
em meio a florestas de alga —
sombra das sombras emersas

São feitas — as sombras — de ar
escuro
Lembram o tudo e o nada

O vôo das sombras
gira em torno de uma coluna
sonora, o poema —
luz de dentro

Fora

Factótum (pág.50)

Pior coisa
é dever um favor a alguém
Olha Virgílio
a mim você não deve nada não
Só sua perna e

“Eu sou o morto da literatura brasileira”
A frase/título desta resenha revela a essência artística, portanto conflituosa, de um escritor conhecido e admirado apenas por “iniciados”, ou seja, pessoas que não se contentam com a lista de best sellers, que guia 90% dos consumidores de livros do País. Aliás, no caso de Sérgio Rubens Sossélla não adiantava nem procurar fora da tal lista, porque os mais de 300 (!) títulos do autor vêm sendo publicados, desde 1966, em edições artesanais e com tiragem mais do que limitada.

A Imprensa Oficial do Paraná, agora coordenada pelo escritor Miguel Sanches Neto, está tentando corrigir essa injustiça lançando uma antologia de poemas curtos de Sérgio Rubens Sossélla: A Linguagem Prometida.

Esta é a primeira vez que o autor tem um livro publicado por uma editora. Com isso, é possível apresentar a um público maior a poesia deste que tem a infância, com seus cheiros e sabores, impregnada no imaginário de poeta. São quase 200 textos curtos, entre hai cais e aforismos, com recordações da família e referências a autores da literatura e do cinema. Nestes textos, Sossélla expõe seu interior de poeta  por completo. O “eu” é a matéria-prima, mas o livro não consegue demonstrar a totalidade da obra deste curitibano, afinal esta antologia, como a maior parte das boas antologias, serve apenas de atalho para a amplidão da obra.

O que fica desta primeira, assim esperamos, publicação acessível do autor é a identificação com a geografia, com o seu habitat. Seja ele em Curitiba, Jacarezinho ou Paranavaí, o poeta está sempre transitando dentro e fora de seu tempo/espaço e não vacila ao colocar seu endereço pessoal como o centro do universo, do seu universo poético que merece ser contemplado por muitos leitores. “A estrada/começa na minha casa/e não tem fim.”

“na minha mão morta
a chave da casa da rua augusto stresser, n 732
do arranha céu”

“o vazio é tudo.
tanto que escrevi e repentinamente me vejo mudo.”

“o poeta é um criador de espaços
próprios para os outros”

“não se considera culpado
aquele que é seu próprio
juiz”

“com a memória de mim
curitiba se apunhala”

“tantas janelas
e uma porta:
o telhado dando risada”

“não fosse a literatura
eu seria assaltante de bancos”

“de tanto rever a minha infância
hoje eu não acredito”

Sérgio Rubens Sossélla
Curitibano, nascido em 27 de fevereiro de 1942, Sossélla concluiu o segundo grau no Colégio Estadual do Paraná e fez carreira no judiciário. Em 66, formou-se em Direito pela Universidade Federal do Paraná e, a partir de 1970, foi juiz nas cidades de Jacarezinho, Pitanga, Assis Chateubriand, até que em 1986, aposentou-se alegando sentir “náusea”. Atualmente, mora em Paranavaí onde dedica todo o seu tempo à poesia. Em 1988, publicou o livro de prosa experimental A Nova Holanda, que deve ser reeditado pela Imprensa Oficial.
Jeferson de Souza
Rascunho