A perda da inocência, ou em busca do paraíso perdido

Há pontos cruciais na vida de todas as pessoas. Os mais marcantes, talvez, são aqueles em que perdemos a inocência, seja em relação ao sexo, seja em relação à violência do mundo moderno
01/03/2001

Há pontos cruciais na vida de todas as pessoas. Os mais marcantes, talvez, são aqueles em que perdemos a inocência, seja em relação ao sexo, seja em relação à violência do mundo moderno. Uma vez perdida, ela jamais será recuperada. E sempre restará na nossa cabeça a vontade de saber porque aquilo aconteceu, qual foi o estopim do fim da inocência, do início da vida adulta, tão sem flores, sonhos e fantasias.

Thomas H. Cook, escritor americano vencedor do prêmio Edgar Allan Poe de literatura de mistério em 1996, descreve esse período de uma forma especial. Misturando o romance policial com mistério e pitadas de romance, Cook tem como marca principal trazer personagens do presente para investigar fatos do passado, que aconteceram com eles ou com outros personagens. Essa revisita ao passado traz à tona nos protagonistas de seus livros detalhes que eles próprios quiseram sufocar debaixo de camadas e camadas de cotidiano, de impessoalidade no trato com as pessoas, de afastamento do convívio humano, mantido ao mínimo possível.

Por motivos que só o mercado editorial brasileiro conhece, o último lançamento de Cook no Brasil é o livro que ganhou o prêmio Poe em 1996, O Caso da Escola Chatham (Lacerda Editores, 328 págs., 2000). Antes dele, já estava no mercado Instrumentos da Noite (Lacerda Editores, 324 págs., 2000), lançado no mercado americano em 1998. Ambos os livros são até certo ponto semelhantes em estilo, o do presente que retorna ao passado para descobrir o momento exato do fim da inocência.

O Caso da Escola Chatham é narrado em primeira pessoa por Henry Griswald, um advogado sessentão, solteiro, que no início de sua adolescência viu o marco da decadência de Chatham, pequena cidade beira-mar do leste americano. Um crime, com algumas mortes, provocado por amor, ciúmes e ira incontroláveis.

Griswald jovem estava no epicentro dos acontecimentos de 1926 na pequena Chatham. Filho do diretor da escola de mesmo nome, ele sonhava com uma vida de liberdade, viagens, paixões arrebatadoras e tudo mais que um aventureiro idílico poderia querer. No entanto, a força das convenções o prendia a uma rotina sem absoluta emoção.

Tudo mudaria em sua vida com a chegada de Elizabeth Channing. Jovem professora, entre seus 20 e 30 anos, ela vem a Cape Cod por indicação de um tio seu, amigo do pai de Henry, para dar aulas de arte na escola. A senhorita Channing vem da África, lugar onde seu pai morreu, depois de ter vivido viajando pelo mundo desde os quatro anos de idade, quando sua mãe morreu. O pai dela decide levá-la a conhecer o mundo como ele é. Henry sente-se atraído pela professora, não fisicamente ou sentimentalmente, mas idealisticamente, no sentido de ter ela feito o que ele tanto gostaria de fazer.

Ao longo do ano, aparecem outras personagens. Sarah, a jovem irlandesa que mora junto com a família de Henry, que sonha ser mais do que uma empregada. Leland Reed, refugiado de guerra que procurava a paz em Chatham, casou-se com uma local, teve uma filha, e que no entanto apaixonou-se por Elizabeth, mesmo sabendo que este era um amor impossível.

Com talento, Cook vai descrevendo o clima da cidade. Uma rua principal, os pequenos armazéns, a vida pacata, lenta, o mar como horizonte infinito, mas que não é explorado pelos habitantes para aventuras, a natureza ao redor. Devagarinho, ele conduz o leitor para dentro da vida de cada pessoa de Chatham, sem no entanto precisar de longas descrições modorrentas. Sabe-se que a vida lá é claustrofóbica, sabemos que os jovens sonham com outras amplitudes, mas que não estão ao alcance.

A narração é um vaivém de Griswald entre o passado e o presente. Tudo começa quando ele é obrigado a rever o Lago Negro, lar da senhorita Channing quando ela morou em Chatham, e do senhor Reed, por conta de um negócio de um cliente seu. A visita forçada o obriga a rever tudo o que aconteceu em 1926, e que transformou o paraíso idílico em uma cidade sem emoção alguma.

Sabemos que houve mortes, mas só descobriremos quantas foram no final do livro. Envolve culpados, mas só saberemos na penúltima página do livro!!, o que é muito bom, pois é uma grande surpresa, insuspeita (mesmo) até aquele momento. E não envolve esoterismos ou que tais sobrenaturais. Tudo o que Griswald/Cook conta poderia realmente ter acontecido na vida real.

Esta talvez seja a maior virtude de Cook. Não há nada irreal nas suas histórias. Isso significa que lemos o livro como se fosse o resultado de uma investigação verdadeira. Em determinado ponto, ficamos com raiva da covardia de Henry Griswald, ou apaixonados pela coragem de Elizabeth Channing. Ficamos com asco da cidade pequena, preconceituosa em não saber fazer coisas por amor.

Apesar de todos os sonhos de juventude, Griswald não consegue escapar do destino de uma vida medíocre. Boa parte de suas decisões de vida, e os porquês dele decidir-se seguir por essa trilha, estão envoltas nos acontecimentos do Lago Negro. A melancolia que permeia sua vida, a lembrança dos desejos juvenis acabam formando uma trama à parte na história de Cook.

Instrumentos da Noite pode ser descrito como um romance policial. No entanto, é de um crime com 50 anos. Faz sentido investigá-lo depois de tanto tempo? Sim, desde que ele tenha deixado pontas soltas o suficiente para levantar dúvidas em todas as pessoas que viveram aquela época, e que não concordaram com as respostas dadas. Mas, como as probabilidades de encontrar o(s) verdadeiro(s) culpado(s) são escassas, também pouco importa quem investiga o caso. É menos relevante ainda o fato de que quem contrata o “detetive” diz de início não ser necessário encontrar um verdadeiro culpado, mas sim criar uma história verossímil para satisfazer a mãe da pessoa assassinada, que apesar do tempo passado não acreditou na polícia da época.

A grosso modo, essa poderia ser a história de Instrumentos da Noite. No livro, Allison Davies é uma rica proprietária de uma cidade do Leste Americano, Riverwood. A senhorita Davies é a única herdeira de uma grande propriedade da região, que nos anos 40 era uma referência em tranqüilidade e prosperidade. Uma região com lagos e montanhas, muito verde, e uma população gentil. Em 1946, no entanto, Faye Harrison, melhor amiga de Allison e que havia sido criada com ela, como se fossem duas irmãs, é encontrada morta. Assassinato é a primeira hipótese.

Na época do crime, o inquérito policial apontou como único culpado Jake Mosley, um marceneiro que trabalhava na propriedade chamada Riverwood naquele verão. Mosley morreu de um suposto ataque cardíaco alguns meses depois da morte de Faye. Tudo estaria resolvido, mas a facilidade com que uma pessoa foi acusada, a maneira trágica como ela morreu e as dúvidas que restaram a ser resolvidas fazem com que a mãe de Faye continuasse a não aceitar a maneira como morreu a filha.

É nesse ponto que entra em cena Paul Graves, escritor de romances policiais. Ele é o escolhido por Allison não para desvendar o crime, mas para criar para a mãe de Faye uma versão nova do que aconteceu, uma em que ela pudesse acreditar. As razões pelas quais Graves é o homem indicado para desvendar isso são várias.

Em primeiro lugar, Graves já escreveu 14 romances, todos usando o mesmo trio de protagonistas, o detetive Slovak, homem íntegro, que caça sem cessar o criminoso Kessler, único inimigo seu em todos os livros, e Sykes, seu ajudante sem vontade própria. Os livros de Graves são todos ambientados na Nova Iorque do início do século, e neles o escritor mergulha nas contradições da alma humana, das razões do crime, como se ele precisasse delas. Como diz Kessler, que apesar de perseguido mantém uma intensa correspondência com Slovak, “não há diferença entre destino e fatalidade”. Kessler não acredita que suas vítimas caiam em suas mãos ao acaso, sem nenhum motivo, por sorte. Elas se tornam suas vítimas, porque se encaixam no plano que tem em mente. Allison acredita que o detetive Slovak é o alter-ego de Graves, e que isso poderia contribuir para esse resolver o mistério da morte de Faye.

O segundo motivo refere-se à vida pessoal de Graves. Logo depois de completar 12 anos, seus pais morrem de maneira trágica em um acidente de carro. E antes do primeiro aniversário desse acontecimento, sua irmã é assassinada da pior maneira possível, violentada e torturada até a morte, tudo testemunhado por um Graves pré-adolescente. Desde esse dia, ele não acredita mais na bondade humana e mergulha em uma eterna mentira, tentando de todas as formas esquecer o horror que presenciou.

Durante a busca pela verdade de Riverwood, Graves tem a companhia de Eleanor Stern, autora teatral, que de certa forma também foi para lá para colaborar na criação de uma história plausível para a mãe de Faye. Eleanor, é claro, também tem um passado de testemunho ao horror. Quando criança, ela quase foi estrangulada por um desconhecido com quem por acaso, encontrou em um bosque. Será Eleanor quem irá guiar Graves dentro do terror de Riverwood, e dentro de seu próprio passado. Isso depois de o escritor conseguir superar as próprias barreiras de isolamento da raça humana, a quem se impôs após o assassinato de sua irmã.

Novamente, Cook recria em Instrumentos da Noite todo o clima da Riverwood antiga. A atmosfera vai envolvendo lentamente o leitor que pode sentir o clima de pureza que havia até a morte de Faye. Riverwood poderia ser descrito como um lugar perfeito, onde tudo funcionava como em um conto de fadas. No entanto, nada disso passava de uma casca, que a morte de Faye, a quem todos amavam (frase repetida por todas as testemunhas da época), parece romper. A vida de Graves e Eleanor, também, há muito deixaram de ser perfeitas, desde quando suas infâncias foram bruscamente interrompidas por um terror que eles imaginavam não existir.

Como um bom policial, a narrativa de Cook é cheia de reviravoltas, até a surpresa final. Graves investiga o crime e, graças a uma mente altamente imaginativa, a toda hora inventa uma nova maneira para como teria acontecido o assassinato de Faye Harrison. E a cada novidade, os suspeitos mais fortes são relegados a um segundo plano, substituídos por novos possíveis culpados. E as idas e vindas das hipóteses acontecem por causa de novos podres, novos pedaços das vidas dos personagens que vão cruzando a mente do escritor-detetive Graves.

Cook sabe como poucos na literatura contemporânea criar ambientes e cenários para seus romances. Uma aura de mistério, dissociada (felizmente) de esoterismos ou soluções fantasmagóricas, que envolve o leitor completamente. Seus livros, no entanto, não chegam a ser obras-primas da literatura. Isso não importa, pois com certeza são sinônimos de boa diversão.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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