Inacabadas perfeições

Sempre cultivei uma paixão — borgiana — pelos escritores laterais
01/04/2001

Sempre cultivei uma paixão — borgiana — pelos escritores laterais. Lá estão eles, aqueles nomes meio na sombra de uma inquietação que nunca se acomodou entre as luzes da glória (às vezes desprezada), nem tomou o rumo do completo anonimato no qual, suponho, talvez vivam alguns escritores daquela estirpe ignorada: a dos que morrerão sem publicar nada, sem haver dado sequer um passo para garantir (?) a “imortalidade” duvidosa da literatura.

Podemos falar, no entanto, somente dos que se deram a conhecer de algum modo, e não dos completos desconhecidos (esses Ets sem sombra, sem rosto) que recusaram até isso: a vulgaridade de motivar a crítica, mais tarde ou mais cedo. Só dos que foram publicados, em vida ou postumamente, é possível dizer-se alguma coisa, a favor ou contra. São, assim mesmo, nomes afundados no poço da escrita — embora mais amados, às vezes, do que muitos que respiram o ar de ouro, lá em cima. Há esse francês raramente lembrado — Victor Segalen — que não trocou por nada a independência dos párias das ilhas, assim como há outro gaulês, abonado na vida, Valéry Larbaud, cuja fortuna crítica aumenta dia a dia… Exatamente como no caso daquele americano à margem — Damon Runyon —, amigo de Al Capone e apostador em cavalos, escritor “lateral” apanhado na tempestade do seu orgulho para crescer, secretamente, acima de muitos dos “grandes” que caminham para ser esquecidos.

Borges tinha a sua lista dos laterais da sua admiração. Cada um, talvez, tenha a própria. Eu tenho a minha, também, e ela começa por Malcolm Lowry, autor de Under the Volcano — obra considerada de “obra-prima” a “falsidade prolixa”, entre admiradores e detratores (não pode haver unanimidade em torno desses solitários). Prometi ao editor Rogério Pereira que trataria de alguns desses escritores que correm “por fora”, pisando em terra dura e não sobre os tapetes vermelhos postos para os Joyces, os Thomas Mann, os Prousts, os Eliots da Grande Avenida da Literatura. Não é uma rima nem é uma solução. Mas serve para comemorar um ano de Rascunho — porque as obras dos bons “laterais” sempre parecem algumas inacabadas perfeições (como Under the Volcano)…

Minha tarefa será esboçar um perfil — sempre que possível — de cada um deles. No caso de Lowry, me inspiro no que Arthur Calder-Marshall fez, em outubro de 1967, para The Listener: um retrato-montagem do seu amigo escritor, assinalando os dez anos da morte (1957) do romancista cujo livro-cult está completando 55 anos do lançamento por Jonathan Cape (editor — e dor de cabeça — de Lowry, que teve, na relação com Cape e com o Leitor de Cape, boas razões para permanecer bêbado). Tal “retrato” foi montado com base em impressões e depoimentos, do mesmo modo fragmentário e impressivo que tentamos reproduzir aqui, com trechos & textos do sóbrio Stuart Lowry (irmão de Malcolm), de Conrad Aiken e outros — sem esquecer até mesmo a insuspeita Mrs. Mason, senhoria do escritor que teve mais casas incendiadas em toda a literatura de língua inglesa…

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Stuart Lowry: Meu irmão Malcolm às vezes usava de uma lógica irrespondível. Seu desempenho na escola nunca foi bom, mas nosso pai não teve o que dizer quando ele explicou que iria ser marinheiro porque, se não era um aluno de primeira classe, poderia pelo menos chegar a ser um marinheiro de segunda classe.

FM: Malcolm Lowry se engajou na marinha realmente e, ainda muito jovem, viajou a Shangai, Hong-Kong, Yokohama, Cingapura, Vladivostok, Haiti, Sicília…

Conrad Aiken: Ele desembarcou com uma mala pequena — em mau estado — numa mão, e na outra um ukulelê.

FM: Para quem quer saber o que é um ukulelê: é o instrumento de corda — parecido com um cavaquinho — que Marilyn Monroe toca em “Quanto mais quente melhor”.

Conrad Aiken: A mala não tinha quase nada, além dos cadernos onde ele andava escrevendo Ultramarine. Nós dois falávamos a mesma linguagem — o que intuímos de imediato. Na verdade, fomos logo festejar, tomando uns copos e lutando um pouco de boxe. Malcolm era um sujeito robusto, muito robusto, e me acertou em cheio: eu cai de costas, contra uma chaminé, e parti a cabeça. Foi um belo começo de amizade.

FM: Já não se começa amizades tão boas — e tão impactantes — como antigamente.

Ralph Case: O que nos unia era o amor pelo jazz. Malcolm tocava ukelelê — que a gente, na época, chamava taro-patch. Ele conhecia alguma coisa do jazz moderno. O seu ídolo era Bix Beirderbecke. Eu tocava ao piano e ele ia atrás — e, às vezes, ia na frente — mas estávamos no mesmo comprimento de onda, basicamente. Nunca hei de esquecer a viagem que fizemos a Londres… Eu suponho que seu pai financiava as despesas — Malcolm ia para Cambridge — e sem reclamações, contanto que o filho ficasse num hotel “sem álcool”. Malcolm não se importava muito com a restrição, porque havia um pub mesmo do lado… Às sete e meia do dia seguinte, a gente se levantava e, ainda nu, ele bebia um grande copo de uísque. Aquilo me parecia exagerado — mas eu não tinha porque agir como uma babá, com ele.

FM: Quando o Consul Firmin, em Under the Volcano, na falta de bebida, experimenta tomar loção de barba (e não acha tão ruim), já se vê que não era só um borrachón amador de literatura…

John Davenport: O pai lhe dava uma boa pensão, verdade seja dita. Malcolm tinha apenas que ir buscá-la, sóbrio, no escritório de um agente de negócios londrino.

FM: Quando seu pai mudou de agente, dizem que Malcolm contratou um colega de Cambridge (que era abstêmio convicto), para ir buscar o dinheiro, passando-se por ele.

Robert Pocock: Ele tinha uma obsessão, naquela época: achava que a sua família o vigiava em tudo que era lugar, através de detetives e enfermeiros. Uma manhã, me confidenciou que fora nadar bem cedo, em Tobay, e disse que não havia avançado nem cinco quilômetros quando voltou-se de costas e viu um sujeito nadando atrás dele, de óculos de mergulhar, aparecendo e desaparecendo…

FM: Talvez se tratasse de algum esportista também chateado — por achar que havia sempre alguém na sua frente, mesmo de manhã muito cedo.

John Sommerfield: Uma noite, fomos passear em Fitzroy Street. De repente, Malcolm exclamou: “Meu Deus, veja aquilo!” Eu olho e vejo dois elefantes enormes, bem na esquina de Charlotte Street. Malcolm era um lógico acima de tudo, e me olhou dizendo: “Uma vez que nós dois os vemos é porque são de verdade.” Mas ele estava preocupado e correu até a esquina, quando os elefantes desapareceram. Não vimos nem rastro deles, mas havia — felizmente — um monte de bosta quente que contemplamos, satisfeitos.”

FM: Acho extraordinário o efeito do detalhe “fumegante”, no relato do Sr. Sommerfield.

Arthur Calder-Marshall: Depois de uma temporada em Hollywood com John Davenport, os Lowry (Malcolm e a sua primeira mulher, Jan) partiram para o México, onde se podia viver com pouco dinheiro. Foi então que ele escreveu o primeiro esboço de Under the Volcano

FM: Quantos tiveram o privilégio de testemunhar o nascimento de uma obra-prima?

Sra. Calder-Marshall: Fomos visitá-los e tomamos café no pátio da casa deles, com um jardim luxuriante, em declive que descia para a barranca. Ao longe, levantavam-se os vulcões, com uma coroa de neve. Há várias semanas que os Lowry não bebiam uma gota. “Estamos numa abstinência magnífica”, Malcolm garantiu, sorridente. Um pouco mais tarde, porém, quando foram ter à plaza conosco, tomaram um copo. Só um, é verdade. Mas não sabíamos que, a noite, ele continuaria tomando só um, de cada vez, e nos dias seguintes, sem parar. Jan nos telefonou: “Ajudem-me a encontrar Malcolm.” Ela havia escondido a bebida e o dinheiro da casa, mas ele tinha levado o despertador do quarto, para vender e comprar bebida, certamente. Quando afinal o encontramos, Jan perguntou, meio histérica, pelo despertador do quarto deles. Malcolm, muito orgulhoso, vasculhou nos bolsos do impermeável, tirou uma garrafa de tequila do bolso e apareceu com o maior despertador que eu já vira. Jan não pôde deixar de sorrir: “Que bom, você afinal não o vendeu!” E ele: “Vender? Eu não trouxe para vender, amor. Eu trouxe para saber as horas. Para que mais serve um despertador?”

Depois de Jan abandoná-lo em Cuernavaca, foi que surgiu o Malcolm realmente transtornado, de coração ferido e capaz de escrever Under the Volcano, que é um livro que relata todo o seu sofrimento pessoal naquela altura…

Conrad Aiken: É uma das obras mais esplêndidas que se escreveram neste século. Não me parece que seja um grande romance, devido ao final melodramático. Mas, até chegar lá, é único na força e na beleza própria dos poemas.

FM: Anthony Burgess tem uma opinião curiosa sobre o romance de Lowry: o autor de Laranja Mecânica diz que o livro só funciona se for lido como um The Wast Land em prosa. Para ele, se Under the Volcano for lido “na tradição de Henry James — do qual é tributário — o livro apresenta defeitos demais, como obra de imaginação, para que se possa considerá-lo uma verdadeira obra-prima”.

Sra. Mason: Julgo que foram muito felizes aqui — tão felizes quanto poderiam sê-lo, tendo em vista o estado de saúde do gentil Sr. Malcolm.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho