Clarice no olho do ciclone

Clarice Lispector, escritora marginal? A afirmação parece, a princípio, descabida
01/04/2001

Clarice Lispector, escritora marginal? A afirmação parece, a princípio, descabida. Basta pensar na imensa comitiva de leitores que, mais de vinte anos depois de sua morte, ainda freqüenta seus livros; na adoção de seus romances em escolas e provas de vestibular; no número de teses de mestrado e doutorado e também de ensaios críticos já produzidos, e cada vez em ritmo mais intenso, a respeito de sua obra; enfim, nas prestigiosas traduções de suas ficções no exterior.

Clarice parece ser uma escritora consagrada, uma “grande escritora”, como se diz. Mas não são estes índices de sucesso, de visibilidade que lhe conferem, ou lhe garantem tal posição. A marginalidade, no caso de Clarice, não vem dos números apresentados pelo mercado, das apreciações favoráveis feitas pela crítica, da diversidade de leituras que sua obra suscita, do número de edições. “Eu não escrevo para fora, escrevo para dentro”, Clarice dizia. É também no dentro, isto é, no interior da obra, e não em seus efeitos externos, que devemos procurar sua face marginal.

Já no primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, nela identificaram ressonâncias de Joyce, ou de Virginia Woolf, escritores que ela nunca tinha lido. São assim os críticos: confiantes e submetidos aos cânones da modernidade, tratam de atribuir ascendências, de identificar filiações, de detectar sinais desses mesmos cânones nas obras que têm diante de si. O passado não se constrói de trás para a frente, mas de frente para trás. Em todo caso, não se pode negar que Clarice adota, mas também rompe com os padrões da literatura modernista. Teve uma relação ambígua com eles, de acatamento e recusa, de aceitação paradoxal, de adesão e desprezo. De deslocamento. Ocupou um lugar desviante.

A escrita de Clarice contorce a língua — e eis aqui algo que parece estar bem ao agrado dos modernistas. Contudo, enquanto os modernistas retorcem a língua para fora — e o exemplo mais escandaloso, o mais belo, entre nós, é o de Rosa — Clarice, ao contrário, a contorce para dentro. Recusa os malabarismos lingüísticos, repudia os jogos de palavras, os neologismos, as linguagens “inventivas”, as elipses e os chistes modernos; sua luta com a língua é de outra ordem, está no nível do referente, do conteúdo, daquilo que a língua pode (e especialmente do que ela não pode) conectar. “Eu quero o que está atrás de detrás do pensamento”, Clarice disse; não se interessava pelos recursos e pela técnica (a linguagem burilada, inovadora, engraçadinha, inventiva), mas pelo que a língua esconde e, mais ainda, pelo que lhe escapa. Estranha escritora: uma escritora que, de muitas formas, despreza a língua. Que procura aquilo que sobra depois que a ultrapassamos — se é que isso é possível. E, com este desdém, com esta atitude de negação, construiu uma obra monumental.

A marginalidade de Clarice, portanto, vem não de um deslocamento externo em relação às normas letradas, mas de uma fratura interna, de sua posição marginal em relação não ao sistema literário, mas à própria escrita: não uma posição teórica, ou estratégica, ou política; mas um lugar silencioso, exercido na intimidade, hiato que separa a mulher do papel, algo que se passa só entre ela e o livro. “Quando eu era menina, eu acreditava que livros nasciam em árvores”, Clarice disse. “Mas, quando descobri que, ao contrário, eram escritos, decidi: eu também quero”. É o retorno a este estado natural, a essa brutalidade guardada em cada livro, a este resto do real que cada ficção carrega que Clarice persegue. Perfurando as palavras, para além delas, está aquilo que a interessa. As palavras voltam a ser veículos, mas isso não significa que voltem a ter, como no século 19 ou entre os iluministas, conteúdos nítidos, ou correspondentes fixos. Ao contrário, depois de perfurada, uma palavra leva só a um grande turbilhão, revolta de sentidos e de idéias, conduz, enfim, a isso que, por falta de expressão melhor, chamamos, ainda hoje, e muito a contragosto, de humano.

Humano não no sentido que lhe deu o humanismo, mas algo da ordem daquilo que Nietzsche (que Clarice também não leu) chamava de explosão, algo sem peso e que, no entanto, nos governa. Um furo, que a todos sustenta — um quase nada, ou nada mesmo. Clarice escrevia para usar a linguagem como faca e, com ela, ter acesso a um terreno impensável — o daquelas coisas mudas, mas ainda assim vivas, que dão suporte ao pensamento. Por isso GH, seu mais célebre personagem ao lado de Macabea, prova da barata. A barata pode ser nomeada, mas não pode ser dita; podemos dizer “Isto é uma barata” mas, agindo assim, em nada mais tocamos que na ordem de classificação dos insetos, no corpo da zoologia — não no corpo duro da barata. Para além (para dentro da barata), há algo que continua a escapar — e GH se fixa na gosma que espirra do interior das baratas quando as pisamos; é dessa gosma nojenta que ela prova — desse isso. Mas ainda permanece diante de um símbolo, a gosma ainda não é o isso, e por esta razão o mistério se conserva — até porque, se fosse revelado, deixaria de ser mistério.

Clarice é marginal porque escreve à margem da língua, porque busca os conteúdos inacessíveis, ou aqueles que a língua carrega à sua revelia, a ela anexados como vírus. Busca o inalcançável (e por isso muitos a vêem como uma obsessiva, ou uma paranóica), aquele vazio que afinal nos constitui sem que nele possamos tocar — como o nada em torno do qual circulam, e que constitui a alma, dos ciclones. Sua escrita é ciclônica, tem o formato da roda, gira em velocidades cada vez mais tensas, desloca-se numa translação enlouquecida; mas no coração carrega um nada — e só por isso continua a rodar. Marginal em relação a este furo, a isso que nunca se pode ter acesso, que às vezes ela (exausta, mais que crédula) confunde com deus; mas na maior parte das vezes consegue sustentar que é apenas aquele oco que, por ser oco, define o humano. O que somos senão ossos, vísceras, pele e água, elementos dispostos numa certa posição? Uma posição dita, e aceita como, humana. Clarice, contudo, não se contenta com essa fachada. Ela quer mais — e, como quer mais, muitos a tomam como mística. Chegou a ser chamada de bruxa — e, doce, aceitou este clichê. Quando queria apenas espatifar as palavras (como as crianças que quebram as bonecas para descobrir o que há dentro delas) e chegar ao interior da língua.

Escritora do Eu, numa época de desprezo (modernista) pelo Eu, Clarice destoa, mais uma vez, de seu tempo. Eu? É estranho o modo como Clarice se confessa sem falar de si. Não fala de um Eu, a rigor, mas de um Isso, algo impessoal, autônomo, quase animal, que a habita e a define — que a iguala a todos nós, que faz de nós, borra. Fala de si, sim, mas não para falar do Eu (não para se confessar, ou se exprimir); ao contrário, se distancia de si para chegar ao Isso que carrega (e que a carrega), este instinto que vem definir, no silêncio, a condição humana. E que está na borra da barata, aquilo que constitui a barata sem que possamos enxergar, sem que a própria barata possa sentir ou que possa definir; o seu conteúdo anônimo, selvagem (não é por outro motivo que queria chegar perto do coração selvagem), naquele destino guardado na anatomia ao qual a mente não tem, ou raramente tem, acesso. Anatomia? Não pensava em braços, pernas, ventres, cabeças, órgãos; pensava, ao contrário, numa energia, uma força vital (mas força humana, nada divinizada) que movimenta o ser, que o faz emergir entre os entes da natureza, erguer-se para andar e falar, para desejar, impulso que o eletrifica.

Resta a pensar quê caminhos Clarice teria escolhido se não tivesse morrido tão abruptamente. Leia-se A Hora da Estrela, seu romance de despedida, a rigor seu único romance palatável aos gostos mais rasteiros, aos críticos de algibeira. Gostam dele porque ali imaginam ver, iludidos, um reencontro com certo realismo. Gostam de pensar que, com ele, Clarice se domestica. (E lamentam que tenha morrido na hora da “maturidade”.) Quando, na Macabea que recita a Rádio Relógio, é algo muito além da realidade que se revela. Macabea é uma mulher não só exilada da língua, à qual tem um acesso precário e turbulento, mas, sobretudo, do mundo de significados que ela carrega atrás de si. E exilada ainda do que está depois destes conteúdos (atrás de detrás do pensamento, Clarice diria), energias soltas, submersas, dispersas, indomadas, que governam nossa existência. Como Macabea, Clarice toma consciência deste deslocamento, desta posição marginal de todo sujeito; e escreve sua obra a partir deste abismo. Está posta à beira de um desfiladeiro. Debruça-se, encara o abismo, nele se mira, mas não se joga. Em vez de se jogar, enquanto as palavras continuam a girar loucas em torno de si, ela escreve.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho