Alguns pedidos, como ao Menino Jesus de Praga, só podem ser feitos ao Loyola. Não sei o motivo. Ou os motivos. Talvez seja seu nome de santo ou seu rosto enigmático, mas doce, atento e, de repente, fechado. Ou, quem sabe, o difícil riso. A verdade é que as pessoas pedem coisas ao Loyola, ao Inácio e também a Ignácio de Loyola Brandão. Pedem e são atendidas. Ele tem grande dificuldade de dizer não a quem quer que seja. Como pode ser assim, eis um de seus mistérios.
Loyola — durante muito tempo, por sugestão de pessoa que lhe é querida, tentei chamá-lo de Inácio, mas de vez em quando vacilo, como agora — consolidou seu nome no cânone literário brasileiro. Um dicionário ou livro de estudos de literatura que omita seu nome e sua obra revela falha terrível do autor e desacredita a bibliografia. Com efeito, este paulista de Araraquara, que nasceu ali em 1936, desde que estreou em 1963 tem escrito em tempo integral e dedicação exclusiva, exercendo seu ofício de dublê de escritor e jornalista.
Comecemos de trás para frente, é melhor. Foram sete livros nos últimos cinco anos. Evidentemente que o romance é seu carro-chefe e aí estão O anjo do adeus (1995) e Veia Bailarina (1997), um documento ficcional em que, como dizia Orson Wells, “é tudo verdade”. Com medo da cirurgia, mas sem medo dos leitores, Loyola revelou nas colunas dominicais de O Estado de São Paulo, (hoje, saem às sextas-feiras), um jornal de mais de meio milhão de exemplares, que estava com medo porque os médicos iam abrir sua cabeça e lá dentro conjurar os males de um aneurisma recentemente identificado. Como nos contos de fada, houve um final feliz depois de algumas peripécias. E ele continua escrevendo. Livros, a coluna semanal em O Estado de São Paulo, artigos avulsos e todos os escritos exigidos pelo cargo que ocupa há anos: o de diretor de redação da revista Vogue.
Há um Ignácio ainda desconhecido do grande público que ele soube conquistar com romances, contos e colunas. É o Loyola autor de projetos especiais, entre os quais se destacam narrativas em que soube conciliar o rigor da pesquisa com o sabor do modo de revelá-las ao leitor. Alguns são perfis, como os do armador Aristótelis Onassis, do inventor Thomas Edison, do banqueiro paranaense Avelino Vieira e de seu homônimo, o santo. Sim, Ignácio de Loyola, o santo, por Ignácio de Loyola, o leigo, o iconoclasta. Bem, será que não me repito informando aos leitores que ele se chama Ignácio porque sua mãe, católica fervorosa, encheu a casa de santos? Foram três filhos, três santos: Ignácio de Loyola, João Bosco, Luís Gonzaga.
Há sutis complexidades no nome de uma pessoa. Ignácio comandante militar, ferido no campo de batalha, recupera-se num hospital, sai dali e funda a maior multinacional católica do mundo, a fabulosa Companhia de Jesus. E Ignácio comandando redações, comandando mesas de debates, comandando legiões de personagens. Sob suas ordens ficcionais, quantos já foram mandados para o meio de nós? Lembremo-nos de José, vagando de cárcere em cárcere pela América Latíndia (neologismo dele) em Zero. Não podemos esquecer os civiltares (mais uma das muitas palavras que ele inventou) de Não verás país nenhum, furiosos, proféticos, cumprindo e impondo ordens, sem a mínima chance de se perguntarem ou sequer permitirem qualquer questionamento, por menor que seja.
Seus livros correm o mundo. Estão em cerca de dez línguas. No momento, tenho diante de mim um volume em que as únicas palavras que decifro são as que compõem seu nome. Nem o título posso imaginar. É um de nossos escritores mais premiados. No Brasil e no exterior. Paradoxalmente, um dos mais perseguidos também. A censura carimbou-lhe o passaporte que alguns círculos elegantes lhe negavam. E tem sido, sobretudo, muito lido. Arrombou o cânone. Entrou com exércitos de famintos, de decepcionados, de frustrados, de esperançosos, de apaixonados, de ternas criaturas perdidas neste mundo e sem esperança de salvação. Deu-lhes voz, medo, fantasias. E principalmente tem sabido mostrar-nos que eles existem e que às vezes são nossos vizinhos, conhecidos, amigos, parentes. E aquele outro ali, às páginas tais do livro tal, que parecido comigo aquele cara, meu Deus!
Não posso, felizmente, concluir nada sobre o meu querido amigo. Ou melhor: posso concluir que ele continua escrevendo. Para seu próprio bem e para o de seus leitores. Continuam pedindo coisas ao Loyola. Principalmente, livros, vez que todos são incessantemente reeditados. Autor, obra, público. Estas são as três companhias indispensáveis à solidão dos escritores no sétimo céu em que habitam. Todo o resto lhes será dado por acréscimo.
Para conhecer um pouco da vida de Ignácio de Loyola Brandão, cuja obra A Global está reeditando, Rascunho convidou escritores e jornalistas para entrevistá-lo: Sonia Coutinho, Rodrigo de Souza Leão, Evandro Affonso Ferreira (Rio de Janeiro), Fabrício Carpinejar (São Leopoldo), Menalton Braff (Ribeirão Preto), Paulo Polzonoff Jr. e Rogério Pereira (Curitiba).
Sonia Coutinho
• Inácio, vejo hoje na literatura brasileira uma tendência para se aproximar dos gêneros ditos “de massa”. O romance policial, o romance histórico. Parece que a preocupação central é conquistar um público mais amplo, deixando de lado, de modo geral, a linha ética, a visão social e de protesto que norteava os escritores dos anos 60/70. Você vê alguma perspectiva de que esse quadro mude? Acha que poderemos ter, ou já temos, uma nova “literatura política”?
Parece-me que cada tempo tem sua própria literatura, exigida pelas circunstâncias. Não quer dizer que os autores façam uma literatura circunstancial. Podem até fazer, mas sabe-se que esse tipo de literatura não resiste. A visão social e política, a literatura ética que norteava os escritores dos anos 60/70 era determinada pela necessidade de situar o homem brasileiro dentro do contexto em que vivíamos. Era uma forma de resistência. No fundo, não estávamos preocupados em fazer “literatura social”, empenhada. Queríamos refletir o país, como as gerações anteriores tinham feito. O Brasil dos anos 60/70 foi um país violento, oprimido, escuro, difícil. Numa época em que se pregava a liberdade sexual, a permissividade, o swing, o fazer o amor e não a guerra. Vivemos dentro de conflitos enormes, internos e externos. Escrever naquele clima obrigava, necessariamente, a nos transformarmos em espelho do que víamos e vivíamos. Todos nós sabíamos (e sabemos) do perigo de se fazer literatura empenhada, engajada. Portanto datada. Os escritores consideravam que deviam ter uma atitude ética diante do homem brasileiro. Chegamos até a acreditar que poderíamos mudar as cabeças, fazer revolução através da literatura. Naquele tempo, a única atitude ética era o protesto, a conscientização. Não vejo esse tipo de literatura hoje, porque o panorama mudou. O protesto hoje seria contra a corrupção, contra a canalhice estabelecida na política e no empresariado (e permeada entre as pessoas em geral), contra a acomodação, o monetarismo, a superficialidade, o vazio, o medo da violência. Contra os falsos valores, a necessidade de status, de grifes. Podemos até gostar de uma bela bunda, mas esse culto do bundão, da mulher calipigia acaba cansando, estressando. E os seios siliconados? E essa trip de todo mundo querendo ser famoso, célebre, ser poderoso? A ética hoje é ser contra o espertismo. Provavelmente surgirá na nova literatura uma ética que “denuncie” este mundo geléia amorfa, confusa. No meu entender, cada um faz a literatura que quiser fazer. Cada um mostra sua visão de mundo, de realidade. Só tem uma coisa. Existe uma grande ânsia de sucesso. Escritores que desejam lançar livros e entrar para as listas de mais vendidos. Serem best-sellers. Vender muito antes mesmo de escrever. Assim, se faz literatura popular (e o que é isso), ou de massa (e o que é isso?), se faz romance policial (com um atraso de 60 anos em relação aos EUA), se faz romance histórico (mas sempre se fez romance histórico, uma coisa agradável de ser lida, mesmo quando se falseia a história.) Se podemos ter uma nova literatura política? Não sei. Sei que se tiver não pode ser chata. Literatura política é fio de navalha. Um perigo! Quebra-se a cara!
• Zero é um livro radicalmente experimental. Mas foi proibido por motivos políticos. Deveu-se à sua atuação pessoal, como figura de intelectual que se rebelava contra a ditadura militar? Ou teria algo a ver com a novidade formal do próprio livro? O que pensa você sobre essa questão de experimentação formal e literatura política?
Zero foi proibido por motivos políticos. Um romance que falava de ditadura e ditadores, de tortura, esquadrão da morte, ausência de liberdade, censura, esperava o quê? Livros não são proibidos pela estrutura formal. Os censores são burros para entenderem de estruturas formais, de experimentação. Não, o formalismo é inatingível para eles. A censura proibia pelo aspecto tacanho, rasteiro: ofende a moral, é subversivo.
• Como é que você acha que a mulher aparece em sua literatura? Você tem algum personagem feminino que considere “forte” ou as mulheres vêm sempre como parceira sexual da figura masculina, num universo em que os homens são os únicos agentes ativos, em que eles mandam?
Acho que meus melhores personagens são femininos: Bebel (Bebel que a Cidade Comeu), Ana Maria (Túmulo de Vidro), Camila (Camila Numa Semana), Rosa (Zero), Nancy (Dentes Ao Sol), Adelaide (Não Verás País Nenhum), Manuela (O Anjo do Adeus) e principalmente Ana, em O Beijo Não Vem da Boca. Ana talvez seja o melhor personagem de todos os meus livros. Mulher de 40 anos, aberta, esclarecida (sem ser feminista), questiona o tempo inteiro o babaquismo de Breno, um homem que se debate entre o machismo e o desejo de mudar, ser um novo homem. Acho que mostro esse universo dos “agentes ativos” como você chama (adorei a definição) em sua degradação, sua ruína, com os homens se debatendo, confusos, inquietos, neuróticos, fracos, meros “comedores” de mulheres, sem conseguir o prazer real de um ato de amor feito com amor, de sexo feito com emoção e não apenas para gozar. Ao menos, pretendi fazer assim!
Fabricio Carpinejar
• Em Veia bailarina, há uma forte carga de saúde memorativa, uma espécie de Em busca do tempo perdido, pura celebração da vida. Não estás se lamentando mesmo após o fato de ter sido escrito logo depois do baque do aneurisma? É como se o fato de contar uma — tua — história mantivesse a surpresa de estar vivo?
Veia Bailarina. Ah, Veia Bailarina. Adorei escrever. Porque se tivesse morrido, não teria escrito. Poderia, no máximo, tê-lo psicografado. Mas gosto da vida, dessa vida, com todas as chatices, angústias, preocupações. Em nenhum momento lamento o fato de estar vivo. Em Veia Bailarina realizei parte do meu Sonho 8 1/2. O que quer dizer isso? Um homem faz uma espécie de balanço, traz memórias, vive fantasias, sonha. Quem garante que, exceção feita a própria cirurgia, real, autêntica, concreta, eu não tenha inventado o resto e composto um romance? A literatura foi feita para iludir. É um jogo, nela somos nós, o que gostaríamos de ser, de fazer. Mentimos, mesmo quando estamos escrevendo uma autobiografia. Ou principalmente.
• Teus romances confirmam o antídoto receitado por Gramsci: “otimismo da vontade, pessimismo da inteligência”. Os protagonistas desenvolvem uma consciência absurda da realidade, excessiva, nem por isso se conformam a ela?
Exatamente por desenvolver uma consciência absurda da realidade é que meus personagens não se conformam com ela. Aliás, eles não desenvolvem essa consciência. Eles apenas vivem o absurdo. O juiz Lalau fazer o que fez, o Luis Estevão livre, o ACM mandando no país, a plataforma da Petrobrás afundando, as pessoas vivendo atrás de grades nas portas e janelas, os presos comandando o tráfico e as rebeliões e obrigando a polícia a negociar com eles dentro da cadeia (entre outras). O que é isso? Normalidade? O êxito de Luciana Gimenez comandando um programa de tevê dentro do mais absoluto analfabetismo representa o quê?
• Voltando ao quesito consciência, os problemas parecem sempre maiores para quem está os vivendo. O homem que odiava segunda-feira é o exemplo de que queremos tudo solucionado e nem sempre aceitamos a vida em aberto?
Não queremos nos chatear. Não queremos nos esforçar. Não queremos sofrer. Não queremos ter problemas. Queremos uma vida amena, suave, rica, feliz, plana, tola. Deus me livre! Tédio. Como se aposentar. Dia desses, fui com minha mulher para Araraquara, onde nasci. Estava andando pelo centro quando um grupo de homens me chamou. Vieram as indagações: Já se aposentou? Como ainda está trabalhando? Ficou louco? Ainda vai todos os dias à redação, aos 64 anos? Vangloriavam-se. Um estava aposentado havia 15 anos. Outro havia 20. Não fazem nada. Sentam-se ali em frente ao clube, conversam, comentam fofocas, jogam na Sena, Mega Sena acumulada (outro sonho brasileiro; e os romances sobre isso?), fazem projetos para o prêmio, olham as mulheres, falam delas, sabem que jamais as comerão. Acabada a conversa, saímos e Márcia, minha mulher, perguntou: Quem são esses velhinhos babacas? Tão acabadinhos! Umas múmias! Respondi: São meus companheiros de colégio, de científico. Temos a mesma idade. Olhando para trás, me assustei. Se eu tivesse parado, estaria como eles. Morto na vida. Mumificado. Vida em aberto, caro Carpinejar. Bela expressão. Vida em aberto é tudo: preocupar-se, ter problemas, sonhos, projetos, fracassos, sonhos, ilusões, amores, chateações, é brocharmos, é vivermos noites gloriosas de amor, é as mulheres amarem belos homens (ou feios), amarmos belas mulheres (ou feias), é termos medo, nos embriagarmos, nos drogarmos, viajarmos, é tudo. Essa porra balbúrdia que é a vida. Solucionar o quê? A vida não tem solução. Ela é a solução; e não é. Meu novo livro começa com um jornalista entrevistando um homem famoso, rico, fodidão, ambicioso.
— Qual foi o pior dia de sua vida?
— O dia em que nasci.
• Trabalhas com um filão do anonimato. Na narrativa Anjo do Adeus, o personagem diz que pretendia ser famoso anonimamente. Teu maior interesse é buscar a fama de quem não teve fama? Num período em que as revistas promovem o estrelato instantâneo, nunca sabemos o que aconteceu depois das rápidas aparições. O escritor gostaria de resgatar justamente o momento esquecido pelo jornalista?
Os anônimos célebres me fascinam. Aqueles que estão nas fotos históricas e ninguém sabe o nome deles, a história não registrou. Um drama, uma dor. Este é o tema do meu novo livro que começo, paro, recomeço, me perco. Ando preguiçoso, desleixado, estou perdendo a disciplina. Esta ânsia de nossa época pela celebridade me encanta. Como me encanta o momento seguinte. Fama hoje, anonimato amanhã. E a cabeça como fica? A neura? A depressão? O mundo de amanhã será constituído por um bando de anônimos deprimidos. E haja Prozac, Lexotan, terapeutas!
• Revendo teus livros que estão sendo relançados — Zero, Não verás país nenhum e O Verde que violentou o Muro, entre outros — temos a nítida impressão que neles a solidão é coletiva, uma solidão de cidade, de época, geográfica e cultural. Por pior que seja a solidão, ela era real e podia ser repartida. Havia a contrapartida da solidariedade. Hoje a solidão é quase um artigo impessoal, ninguém mais se preocupa com a solidão do outro. Essa é a chave da atualidade e importância das narrativas reeditadas?
Solidão. Haja solidão. Estamos todos sós. Condenados. Juntos e sós. Sós no casamento, nas relações, nas cidades, nos edifícios em que moramos e desconhecemos nossos vizinhos, nunca falamos com eles. Sós. Mudos. Não falamos com ninguém, não nos abrimos. Vivemos o êxtase da solidão, o orgasmo. Acho que você encontrou uma chave que eu procurava ao rever estes livros que têm 20 anos (e continuam a vender, e a serem lidos por jovens. Por quê? O que há neles? Um autor não sabe de nada). É isso. Solidão, artigo impessoal. Ninguém se preocupa com a solidão dos outros. Eu diria que nem com a própria. Para isso, existem medicamentos aos montes.
• Se fosse possível “pesar” sua sombra na nova geração, onde a encontraria? Como a herança — os caminhos que foram abertos — da geração de 60/70 está sendo gerida pelos novos autores?
Minha sombra sobre as novas gerações? Não sei responder. Algum teórico talvez possa. Eles estudam para isso. Será que não sou aquele personagem de meu livro O Homem que Odiava a Segunda-feira? Aquele que perdeu a própria sombra?
Paulo Polzonoff Jr.
• Qual a atualidade de Não Verás País Nenhum e quais as relações do livro com similares como 1984, Admirável Mundo Novo e Nós.
Se você der um pulo em São Paulo e vir a cidade gradeada, os bairros ricos, os condomínios fechados, a ausência de árvores, a periferia estrangulando a cidade, a violência, os gigantescos congestionamentos. Se você olhar para o Brasil e sentir a corrupção, o poder, os ACMs e Barbalhos, vai sentir que Não Verás continua uma metáfora válida, mais atual do que nunca, hoje. Enquanto 1984 e Admirável Mundo Novo falam de supercivilizações, supertecnologias, países avançados, meu livro fala de numa civilização lumpem, fodida, destruída. Não considero Zero ou Não Verás livros datados. Veja quantos livros de 20 anos atrás continuam em circulação, continuam a ser adotados e lidos. Poucos. E esses dois continuam, o que me gratifica. Zero é intemporal. Fala da violência e ela continua acontecendo, sob novos ângulos, prismas. Havia uma ditadura militar-política? Hoje há uma ditadura econômica que oprime igualmente os não favorecidos. Recentemente, um grupo de jovens entre 20 e 27 anos se reuniu, leu e discutiu Zero por um ano e está agora roteirizando para filme. Já fizeram um curta-metragem a partir dele. Zero é São Paulo em sua desumanidade, sujeira, impiedade, solidão, caos, ruína. Talvez Zero e Não Verás possam parecer engajados. Por causa do assunto. Mas foram livros escritos com raiva. Bebel é um romance que mostra, como poucos, como éramos nos anos 60. Dentes Ao Sol nada tem de política, de engajamento. É sobre a solidão e o desespero. O Beijo então? É sobre o amor, a busca, a tentativa de entendimento, o vazio, a evolução das relações sexuais e amorosas no Brasil. Talvez seja meu livro mais lírico, poético, aberto, exposto. Pode ser que ele signifique um momento de passagem. Um momento em que desejei que meus livros tivessem final feliz. Eu quero que minha vida tenha um final feliz.
Menalton Braff
• Qual é a cara da literatura atual? Existe uma corrente predominante a que se deva dedicar maior atenção?
Você é a cara da literatura atual. Seriedade, empenho, trabalho, esforço e um puta de um talento. Você não mistifica, não corteja a mídia, não inventa artifícios de marketing para ficar em evidência, não anuncia que vai abandonar a literatura. Existe a literatura. Se ela é boa, será sempre atual. Correntes? Que se fodam as correntes. A gente tem que decidir o destino do nosso barco e colocá-lo contra a corrente. Está todo mundo fazendo livros sobre auto-estima? E daí? Escrevendo romances policiais? Que escrevam! Corrente dominante é a nossa, particular, privada, aquela em que apostamos tudo. Literatura é liberdade!
• Alguns autores passaram pela experiência de construir seus tempos on line, com internautas curiosos acompanhando a construção de cada frase. Você aceitaria participar desse tipo de experiência?
Não! Na hora de escrever sou eu comigo mesmo. Detesto até minha família me interrompendo. Imagine um saco de um internauta me acompanhando e perguntando, e comentando! Demoro muito, às vezes, para fazer uma frase. O internauta ficaria ali me olhando e eu me deixando olhar? Internautas são voyeurs da literatura. Eu não! Gosto de silêncio, de sossego, da minha musiquinha, do barulho do teclado. Escrever é como ir ao banheiro, um ato privado (sem trocadilho). Intrometidos, não!
• Afirma-se que o escritor é a expressão de seu tempo. Mas o jornalista também o é. O que os distingue?
O escritor escreve para hoje e para o futuro. A literatura é (deve ser) intemporal. O jornalismo é factual, circunstancial, datado. Em geral, morre amanhã. Fica como matéria de pesquisa para o historiador, quando é bom jornalismo. O escritor é (idealismo) imortal. Claro que tem uns que morrem de vez. Alguns morrem, ressuscitam. Só tenho medo do purgatório do escritor, aquele momento em que penetramos numa área nebulosa, mortal, corrosiva.
• Desde Não verás país nenhum, na sua opinião, melhoramos ou pioramos?
Melhoramos e pioramos. O paradoxo é verdadeiro. Mas não me peça uma listagem do melhor e do pior. Tenho medo do pior compor uma lista maior. Acho que a imprensa (livre) melhorou, ainda que ruim. Acho que há uma certa consciência de que devemos agir como cidadãos, exigindo nossos direitos. Há denúncias, há CPIs (que dão em nada, mas assustam um pouco os filhodaputas), há inquéritos, tem gente presa, tem gente desmascarada. Pioramos em futebol, em televisão, em qualidade de vida nas cidades, em medos, em saúde (ainda tem dengue, ainda tem febre amarela, porra!), em rodovias esburacadas, em planos para energia elétrica (racionamento? Porra!), em segurança… em privatizações de telefones…
• É lícito atribuir alguma missão à literatura?
Missão? Que missão? Co-missão? Que nada. Temos de escrever. Só isso. O resto é com o leitor, sua cabeça, sua mente, entendimento.
Rogério Pereira
• Quando do lançamento de O Homem que Odiava a Segunda-feira, escrevi que “a angústia de ter de fincar a cara no travesseiro amarfanhado e deparar no dia seguinte com os olhos escancarados da segunda-feira aflora no livro”. O tédio da existência é necessário para a felicidade?
O tédio da existência é necessário para a felicidade? A frase é linda. Mas a felicidade depende de como nos vemos no mundo. O que esperamos do mundo. Da nossa liberdade. De não pensarmos que ser feliz é ter dinheiro, relógio Rolex, carro importado, viajar de primeira. A felicidade depende de como estruturamos nosso interior. De qualquer modo, ninguém é feliz o tempo inteiro. Senão seria um chato, imbecil. Uma certa infelicidade faz o tempero da vida, o germe da criação. Se eu fosse feliz não escreveria. Sou infeliz? Também não. Às vezes, sou. Outras não. A propósito, o que é felicidade?
• Ainda em O Homem que… encontramos boas doses de realismo fantástico (assim como em J. J. Veiga). Já em seus romances, não encontramos tais traços. Seus romances e contos caracterizam-se pelo antagonismo entre si?
Sempre temo pelas entrevistas por causa das respostas que não sei dar. Principalmente sobre minha obra. Escrevo meus livros. Não sei muito falar deles. Pronto. Escrevo desse jeito, porque é desse jeito que eles saem. Outro dia me perguntei: fui realista em tantos livros! Porque me tornei absurdo em Cadeiras Proibidas ou O Homem que Odiava a Segunda-feira? Há dentro de Dentes Ao Sol, um livro realista, momentos inteiramente fantásticos. Se eu me compreendesse, seria tão bom. Não sei dar resposta. De qualquer modo, já disse em outra resposta que o mundo em torno de mim me parece maluco, incoerente, paradoxal.
• Quais benefícios o jornalismo traz à literatura?
O jornalismo, no meu caso, me foi útil trazendo temas, me levando a viajar e a conhecer o Brasil por dentro, a procurar o que existe nos bastidores das situações, o que há dentro das pessoas. Aprendi no jornal a entrevistar e a tirar das pessoas coisas que elas não queriam dizer. Aprendi a contar as coisas com poucas palavras. A tentar agarrar o leitor nas primeiras linhas (lead).
• Depois do aneurisma, o que mudou em sua obra?
Depois do aneurisma… Depois só publiquei O Homem que Odiava a Segunda Feira. Livro cheio de ironia. Divertido. Sarcástico. Acho que ainda é cedo, mas talvez eu seja menos pessimista e goste mais da vida, e das pessoas, e do mundo, e das flores, e dos vinhos, e da água pura, e do sorriso das pessoas, e dos sorvetes, e dos bons livros, e das viagens, e do encanto que posso encontrar em tudo.
Evandro Affonso Pereira
• Escrever vale a pena?
Escrever vale a pena. Me diverte, me dá prazer, me provoca orgasmo, me alivia, é minha terapia, ocupação, angústia, necessidade, farra, orgia, droga, bebedeira, loucura, insanidade. Escrever para mim tem o mesmo significado que aqueles mantos tinham para o Bispo, o mais genial de todos artistas loucos do mundo.
Rodrigo Souza Leão
• O senhor consegue ver algum país hoje em dia? O Brasil tem jeito?
O Brasil tem jeito. Não sei em quanto tempo. Mas tem. O brasileiro é um sujeito fodido, criativo, inventivo, bem-humorado, mal-humorado, improvisador, dono de um engenho e arte que nenhum governo aprendeu a manobrar (no bom sentido). Daqui a quantos anos? Pode ser pouco, pode ser muito tempo. Tudo hoje anda rápido e somos imitadores e copiadores…
Breves notas, interrogações, curiosidades. E o mundinho intelectual.
Por Ignácio de Loyola Brandão
Três casamentos. Com Bia que me deu os filhos Daniel (28 anos) e André (26 anos). Com Angela, sem filhos. E agora com Márcia (16 anos juntos) que trouxe a Maria Rita (18 anos) que eu criei e que pretende ser cantora (por enquanto estuda História na PUC). Puta mensalidade cara, meu deus!
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Sou matutino, levanto-me às 6 horas (às vezes, mais cedo), gosto de ver o dia nascendo, a cidade tomando forma. Meus melhores textos saem pela manhã. Sou rápido. Depois de 17 horas, fico burro. Faço o café, preciso de um xícara, logo que desperto. Demoro para ler um jornal, as notícias me deprimem, de maneira que só vou saber o que acontece lá pelo meio do dia.
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Gosto de ter tudo arrumado em meu estúdio. Hoje em dia se diz estúdio, antigamente era escritório. Ou biblioteca. Mas as revistas de decoração, (essas que endeusam os arquitetos de interiores (antigamente eram decoradores), essa gente que fica rica dizendo aos ricos como devem ser as casas deles, e o que devem colocar dentro) adotaram agora o termo estúdio, dá mais status. Preciso de tudo organizado à minha volta. Conforme trabalho, vou desorganizando, fica uma papelada, anotações, rabiscos, desenhos.
Escrevo e tiro uma print. Antigamente se dizia imprimir.Agora,é printar, deletar etc. A língua vai traduzindo da informática. Quem sabe a informática vai ser uma espécie de esperanto? Trabalho com caneta tinteiro em cima da print. Adoro ver as frases, palavras riscadas, a bagunça que fica. Acho que a origem disso está numa visita que fiz à casa do Balzac em Paris, perto do bairro de Passy, uma casa linda. Lá estavam alguns originais emendados por ele. Os gráficos deviam ficar loucos (putos), porque ele reescrevia o livro nas provas. Essa casa me impressionou tanto que estou colocando-a no meu novo romance, O Anônimo, se é que esse romance vai sair. Vai competir com O Cheiro de Deus, do Roberto Drummond, que já está para ser lançado há quatro anos… Ao menos, estamos escrevendo, adiando, demorando, e não ficamos anunciando nossa retirada para criar coelhos, e dizendo que descobrimos na gaveta um conto ali esquecido…
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Falando em casa tenho mania de colecionar livros sobre casas de escritores. Tenho alguns belíssimos que me fazem sonhar. A casa de Malaparte sobre rochedos, na Itália, é impressionante, deslumbrante. Ah, como os livros podem tornar fascinante a vida de uma pessoa. Ela pode ganhar bem, morar bem. Ou simplesmente ter o prazer de escrever e sonhar. Parece que só no Brasil os livros não dão. Mas se é assim, vivamos assim. Fazer o quê? Trabalhamos todos, temos ocupações que pagam aluguel, escola de filhos, o jantar fora, a viagem, o vinho (às vezes, a gente cansa do Miolo — um brasileiro de primeira linha — e quer um Barolo).
Por falar em bebidas, tomo Margaritas. A melhor de São Paulo está no Café Armani, na loja do Armani nos Jardins. Mas é cara para caralho. Outros bares têm boas Margaritas, principalmente as frozen no verão. Tive a fase do rum, do Jerez, do Campari. Depois da comida uma boa grapa perfumada. E pensar que tive três hepatites e fiquei 10 anos sem colocar um pingo de álcool na boca.
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Eu e a imprensa. O jornalista que havia em mim está desiludido. Ou cansado. Trabalho em jornal desde 1952, quando tinha 16 anos. São portanto 48, quase 49 anos. Sem possibilidades de parar. E nem quero. Acontece também que a imprensa hoje está virando manual de serviços. Jornais e revistas indicam os locais para se comprar roupas, sapatos, jóias, calcinhas, cuecas, meias, perfumes, casas, terrenos, sítios, carros, barcos, bicicletas, patins, skates, bolinhas de gude. A insegurança é geral. Tudo tem de ter marca. Tem gente que anda com as etiquetas de fora nas roupas. Minha mãe diria: ih, aquela ali colocou a blusa ao contrário. Não é isso, a cabeça é que virou ao contrário. Os manuais indicam onde rezar, comer e beber e o que comer e beber. Indicam os melhores lugares para viajar, os hotéis, os preços, os quilômetros de estradas para chegar lá. Ninguém vive sem guias, sem manuais para combater a depressão, a baixa estima, organizar o trabalho, administrar a empresa, engraxar o sapato. Ninguém ousa sem ter orientação. Os pioneiros estão acabando?
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O país está cheio de temas para a literatura, mas a literatura se afasta do país. O cinema e a literatura americanas cresceram olhando para os Estados Unidos. Estão aí os far-wests, os policiais, a corrida do ouro, o gangsterismo, a lei seca, e etc. E nós. Quem escreveu ou fez filme sobre…?
O nascimento de Brasília
A serra pelada
A festa do peão boiadeiro
Os concursos de miss
Os desfiles das escolas de samba
O futebol
A fórmula 1
Os anos Collor
As loterias
A prostituição infantil
O desmatamento do país (filmes como Iracema, do Bodansky, por exemplo)
A saga do café em São Paulo e no Paraná
Por que O tempo e o Vento se tornou uma saga isolada? Só o Rio Grande do Sul oferecia assunto para um livro daquele portento?
E os bordéis de Londrina, Maringá etc? Quantos sabem que houve um grande time de pólo, jogo de grã-finos e nobres, em Maringá? Fundado em 1955, o time de pólo era servido por criados de libré. Sei disso, escrevi a História do Pólo no Brasil, o único livro que existe sobre o assunto em nosso país. Viram cada coisa que já fiz? E adorei.
Do chá no Paraná (Sempre me impressionou a casa dos Leão em Curitiba; ninguém nunca escreveu ou filmou ali algo que lembrasse E O vento Levou brasileiro…?)
A epopéia dos grandes bancos (Escrevi a história do Bamerindus até a morte do seu criador, Avelino Vieira; daria um filme sobre o interior, a iniciativa privada, as mudanças econômicas do Brasil, a política financeira, a aventura. Falando nisso, tenho saudades de minha amiga Maria Cristina Vieira), das bolsas de valores.
A epopéia do aço e do petróleo.
As histórias de Silvio Santos, Roberto Marinho, Gugu etc. Quem pode se esquecer de Os Insaciáveis, de Harold Robbins, baseado em Howard Hugues? O livro e o filme. Dois mega sucessos. No Brasil, todos querem escrever grandes livros, todos são compelidos a ser Guimarães Rosa, a produzir o grande romance brasileiro. A ambição desmedida, o gigantesco da tarefa acabam inibindo. Será que Rosa, um monumento, não acabou fazendo mal à literatura (ih, o pessoal vai gritar)? Poucos gostariam de escrever histórias boas para serem lidas, digeridas rapidamente. Não existe no Brasil a literatura do entretenimento (como diz a Luciana Gimenez: “adoro entertenir vocês”), objeto de um grande estudo de José Paulo Paes. Aquela literatura que conquista o leitor com uma história, dramática ou bem humorada, com começo, meio e fim. E com emoções.
O subdesenvolvimento (desculpem, a expressão politicamente correta é: o fato de sermos país emergente…) traz a vergonha. Temos de fazer literatura européia ou americana ou alemã. Para o Nobel. Como os grandes povos. Alta literatura que agrade aos deuses da cultura, aos que detêm o poder: o mundo acadêmico e universitário. Todos se preocupam em “conquistar” os críticos, os catedráticos, os ensaístas. Ninguém se preocupa em conquistar o público, o leitor, formá-lo, educá-lo, dando bons livros que tragam prazer e provoquem a vontade de ler outros livros.
O romance sobre o sexo no Brasil. O homem conquistador, a mulher bunduda, a dona de casa que tem fantasias.
E as crianças que são levadas pelas mães para fazer sucesso na TV?
E a história da Xaxa, uma boneca automática que fala, anda, ri, come como se fosse criança de verdade?
O romance que conte como todos querem ter sucesso, ter dinheiro, ter carro, aparecer na Caras, na Quem, na IstoÉ Gente.
O sucesso de quem fez dinheiro inventando pão de queijo, quibe e esfihas a preços populares, pizza rodízio.
E os sem-teto, os sem-terra (lembrar As Vinhas da Ira, de Steinbeck. Livro e filme), os que vivem nas ruas de São Paulo, morando debaixo de marquises e viadutos.
E o crack? As crianças de rua?
O tráfico? As rebeliões de presídios?
E o celular? A loucura que tomou conta de tudo. No futuro, vamos nascer com um celular implantado no rosto. Mutação genética. Dá uma, duas, vinte comédias com centenas de situações. Tiazinha. A Feiticeira. A música sertaneja.
Os esportes radicais. Quem não se lembra dos famosos filmes de praias, classe B, que rendiam os tubos em Hollywood? Os imigrantes.Terra Nostra não teve sucesso por acaso! A geração clubber, do ecstasy, dos DJs, das raves que duram dias?
Dos grandes funerais dos ídolos: Elis Regina, Tancredo Neves, Ayrton Senna, Mário Covas. Um romance (filme) que se desenrolasse inteiro durante o enterro que comove uma cidade.
A corrida de São Silvestre. A saga dos poloneses, dos russos ucranianos no Paraná. A construção da Ópera de Arame. E um personagem como Rafael Greca, sorridente, megalomaníaco, ambicioso, pintando tudo de verde e amarelo? (Não temos tantos personagens? Maluf, Pitta, Ciro Gomes e sua estrelinha de tevê, o João Alves que ganhou 200 vezes na Sena, o Ratinho etc.) E os bingos que proliferam como cupins. Os índios fazendo reféns em suas reservas. Os massacres provocados pela Polícia Militar (Carandiru, Pará etc.). O bumbá de Parintins. A farra do boi em Santa Catarina. A loucura do verão, dos corpos bronzeados, da malhação, do jet-ski, lanchas, do silicone no peito, na bunda, dos botós, os spas, o mundo de dietas e regimes, as bebidas light (odiosas).
O mundo dos vídeo-games. As boates gays, o mundo GLS. A proliferação de helicópteros nas grandes cidades, como gafanhotos, pragas, congestionando os céus. As gerações que nasceram e cresceram em condomínios milionários fechados
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O que estamos fazendo? Que país estamos refletindo nos livros? Estamos a escrever policiais e auto-ajuda, minha gente. A fazer romances existenciais à la nouveau roman, à la Sartre (A Náusea). Pode? A televisão no futuro cooptará os escritores? Será nosso meio de expressão?
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Acho que o Loyola cronista está matando o romancista e contista. Gosto de fazer crônicas, da maneira que faço hoje. Nada de flores e passarinhos, mulheres bonitas que passam pela praia. Minha crônica é de costumes, comportamento. Mostra como vivem as pessoas em uma cidade como São Paulo. Como agem e falam, como suportam a violência, que tipo de violência é praticada, os recursos que cada um encontra para sobreviver, as transformações que a cidade sofre. Cinema hoje, igreja alternativa amanhã. Depósito que vira supermercado. Padaria de uma porta que abre logo duas, três e em alguns anos é rede. Se algum dia alguém levantar a história da cidade via encontrar em meus textos um bom apoio, dados sobre o cotidiano. Gosto de fazer crônicas, gosto do desafio de chegar o prazo e estar sem assunto e me recusar a escrever sobre a falta de assunto. Jamais me faltou o tema. Também nunca escrevi sobre meus combates com o computador. Muitas crônicas se tornaram contos. Capítulos do livro O homem que odiava a segunda-feira foi publicado em O Tempo, de Belo Horizonte. Como se fosse um folhetim. Mas a editora do jornal não gostou da experiência. Depois de algum tempo, tive de sair. Pouco importa. Há precedentes honrosos na história do jornalismo. O Jornal do Brasil não demitiu Clarice Lispector, alegando que ela não era contista? No fundo, levanta-se a questão: o que é crônica? Qual o seu formato? Tem textos que são crônicas e não são contos. São o quê? Existe um outro gênero literário? Por que o preconceito contra a crônica? A crônica para mim é diversão, desabafo, protesto, coluna do consumidor, laboratório. O número de leitores de crônicas é imenso. Sinto as reações Cartas, e-mails, fax, telefonemas. E gente que me pára na rua. A crônica é passageira? Como, então, gente que me encontra e cita textos de quatro, cinco anos atrás? Na semana passada (dia 29 de março), estava autografando o livro Dutra 50 anos, quando um empresário chegou e recontou uma crônica inteira sobre um gato que caiu do 13º andar. O gato morreu há seis anos. Depois, citou uma sobre uma velha que ia ficar no ponto de ônibus epserando a passagem da Rua Hungria. Tem quatro anos esse texto. Há coisas que permanecem. Há responsabilidade na crônica. E se de repente as crônicas ficam e os romances e contos não? O escritor vive num fio de navalha, sempre inseguro em relação ao que faz, por mais certeza que tenha.
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Tem uma coisa engraçada. A crítica e a universidade elegem alguns mitos, de tempos em tempos. E só eles contam. Como tudo funciona num processo de exclusão, se você não é daquele segmento, daquele grupo, está fora. Esses leitores gostam muito, principalmente, de escritor de poucos livros. Se possível, apenas dois, digamos. Aí são gênios, escreveram duas obras monumentais, perto das quais, todas as outras se apagam. E se vivessem no tempo de Balzac? Balzac tava fodido! E o Eça de Queiroz? O Camilo Castelo Branco…
São Paulo, 29. 3. 2001