Equívoco

Desculpem-nos, leitores, mas tudo isto trata-se, na verdade e com toda a certeza, de um grande [ocovíuqe]
Sem o apoio de figurinhas, a “literatura” de Valêncio não passa de um texto primário
01/05/2001

Por Paulo Polzonoff Jr. e Rogério Pereira

Desculpem-nos, leitores, mas tudo isto trata-se, na verdade e com toda a certeza, de um grande [ocovíuqe]. O livro registrado na Biblioteca Nacional sob o ISBN 85-359-0100-0 deveria estar sendo vendido em outra seção que não na qual os senhores estão acostumados a comprar seus livros. Na verdade, fosse outro o mérito de catalogação, tal livro nem deveria existir como tal.

Trata-se, sem dúvida, de um objeto parecido com os que enfeitam as mesas de café ou as estantes das casas mais chiques da cidade. Tem um palmo de altura e quase o mesmo tanto de largura. Sua capa é preta e dura e as folhas estão muito bem costuradas. O papel pólen bold da Companhia Suzano é agradável ao toque. Em suas 224 páginas, há letras dispersas que se misturam a figurinhas instigantes, tais como anúncios antigos, desenhos técnicos de vaginas e fotografias curiosas. Tudo leva a crer que é um livro quando, na verdade, Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido (Companhia das Letras), de Valêncio Xavier Niculitcheff, 68 anos, é tão-somente um [ocovíuqe] literário.

Nada que nos faça estremecer, claro. Equívocos literários têm-se tornado cada vez mais freqüentes neste fim/início de século, quando se instaurou a ditadura da multiculturalidade, com seus video-makers, poetas concretos, performers e drag-queens. Era uma questão de tempo para que o caos do baixo-modernismo chegasse com toda a força à prosa — e chegou pelas mãos do escritor paulista, radicado em Curitiba, Valêncio Xavier Niculitcheff.

O [ocovíuqe] deste Minha Mãe… é antigo e tem precedentes. No início da década de oitenta, Xavier editou, em brochura, O Mez da Grippe, aquela que seria considerada, mais tarde, por Décio Pignatari, um ícone da semiologia brasileira, um dos mais importantes romances brasileiros do século. Idiossincrasias à parte, o volume lá estava e com ele as características gerais da obra do senhor Niculitcheff: a predileção pela imagem em detrimento da palavra. E aqui vale o cuidado para não cairmos no purismo de achar que um vale mais que o outro. O que nos preocupa, nesta relação, é a promiscuidade imbuída de um pensamento semiológico que torna a literatura algo infestado de uma série de signos externos, que transformam o leitor figura excluída do processo de criação.

É possível que os mais equivocados (ou apressados) podem sair em defesa de Xavier Niculitcheff, citando o exemplo — bom exemplo — do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) que no Livro de Manuel (1973), utiliza imagens para interagir, de maneira oportuna, com a obra. O problema (ou solução, como queiram) é que tal mecanismo nunca menospreza as palavras. Em Cortázar, a literatura — a verdadeira literatura — nunca considera as imagens mais importantes do que a própria literatura. Isso não acontece com o multimidiático Valêncio Xavier Niculitcheff. Enquanto este utiliza recortes de jornais para tecer um livro frágil sobre a gripe espanhola que assolou Curitiba no início do século passado, Cortázar insere imagens de periódicos apenas — e não mais do que isso — para reafirmar o sentido/significado das palavras. Em Xavier Niculitcheff, isso não acontece, pois as imagens, simples recortes (mas não podemos deixar de louvar a paciência, e tão-somente isso, de recolher ou inventar de maneira beirando a infantilidade tais informações, principalmente ao conceber o livro O Mez da Grippe e Outros Livros (Companhia das Letras, 1998, 324 págs.)), não conseguem sustentar o enredo, devido à fragilidade das palavras utilizadas pelo autor.

Em O Mez Da Grippe… ([ocovíuqe] registrado no ISBN sob número 85-7164-810-7), Valêncio tenta recriar uma Curitiba quase vila, em cujo cotidiano sempre provinciano misturam-se a histeria da gripe espanhola — que naquela época atingiu a cidade —, pequenos casos de amor e demência próprios do cotidiano e alheios à epidemia. Para tanto, o autor usou recortes de jornal (verídicos ou não? De que importa?), anúncios antigos, ilustrações a nanquim e tudo o mais que excluísse as formas tradicionais de narrativa. Queria o autor abolir a sintaxe camoniana que norteia nosso português desde antanho. A ordem vigente era outra: imagética. O livro foi, a princípio, um fracasso, até, como já dissemos, ser descoberto por um “semiota”.

Nem mesmo a ironia (ou não seria esta a intenção?) impregnada em outros textos como Maciste no Inferno, considerado pelo autor, como raconto — num ímpeto para dosar sua obra com pitadas de “intelectualidade” — é capaz de convencer, pois no embate (em Xavier Niculitcheff, muito desigual), imagens/palavras não passam de uma colagem. Somente um pouco mais sutis do que aquelas feitas nas aulas de educação artística no falecido ginasial. Nada mais. Por incrível que pareça — e talvez para desgosto do multimídia Niculitcheff —, a sua obra ganha um certo alento quando desprovida de imagens ou, ainda, quando as imagens cumprem um papel secundário. Os exemplos estão nos contos O Mistério da Prostituta Japonesa, O Mistério da Porta Aberta, Os Fantasmas do Fundo de Quintal, Mistério do Menino Morto e O Misterioso Homem Macaco.

Sem dúvida, a melhor coisa já escrita por Valêncio Xavier é o conto O Mistério da Sonâmbula — com forte influência de Dalton Trevisan —, no qual o escritor (?!) mescla ironia tétrica com, como preconiza o título, uma boa dose de mistério. Já Um Mistério no Trem-Fantasma, em que as imagens do falecido Parque Alvorada, em Curitiba, não têm a menor importância, é um divertido passeio pelo mistério do desaparecimento da jovem Jucélia Ramos, de 16 anos. Mais um vez, Xavier mescla ficção e realidade, ao citar jornais como Diário do Paraná e O Estado do Paraná. Ao fugir das “elucubrações”, o autor consegue convencer como contista. Pena que isso seja tão ínfimo e raro em carreira tão longa.

O que parece, entretanto, ser o reconciliamento com a literatura em O Mez da Grippe e Outros Livros — principalmente motivado pelos contos — acaba descambando para uma escatologia abjeta (ao contrário do que faz agora Rubem Fonseca no conto Copromancia, do excelente Secreções, excreções e desatinos  (Companhia das Letras, 144 págs.), em que o personagem tem a capacidade de prever o futuro apenas analisando as fezes) em O Mistério dos Sinais da Passagem dele pela Cidade de Curitiba, pois ao recorrer (mais uma vez) às imagens — nesse caso, a um bolo fecal, ao lado de um pedaço de jornal —, tira o sabor (sem trocadilhos) do texto que diz: “[…] com dez centímetros de grossura e cerca de trinta de comprimento desde a ponta arredondada até a outra ponta no alto, onde se afina como uma cauda onde foi cortada pela contração do ânus. […]Tem ELE o estômago em bom funcionamento, ou pelo menos não sofre de diarréia.” É necessária a bisonha foto?

Já com Minha Mãe…, Valêncio Xavier Niculitcheff não faz senão reafirmar seus valores literários pós-pós-modernos. A palavra é relegada a segundo plano. Mais vale a figura da mãe nua instigando o leitor a um sub-freudianismo do que uma narrativa construída com os tijolos de sempre da literatura. Há quem veja nisso inventividade. E é por isso que aqui vale a pena perdermos o medo do pedantismo involuntário e invocar o nome de João Guimarães Rosa.

Sim, porque Rosa foi o maior inventor da língua portuguesa sem jamais precisar de recursos extralingüísticos. A obra-prima Grande Sertão: Veredas é um grande mosaico de signos, significantes e significados (para usar um jargão técnico de que os “semiotas” adoram) compostos apenas pela estrutura básica da língua, ou seja, a palavra.

Sem o apoio de suas figurinhas, a “literatura” (um milhão de aspas, por favor) de Valêncio Xavier Niculitcheff não passa de um texto primário (com raras exceções, já citadas aqui), galgado na valorização do mais patético dos recursos literários, se usados inapropriadamente, que é a tentativa de se reconstruir uma memória infantil a partir de um olhar velho ou, como preferirem, maduro.

Concebido como três novelas, Minha Mãe… traz uma figura masculina obcecada pela figura feminina não só da própria mãe, como também de mitos do cinema, parentes e tudo o mais que tenha um órgão reprodutor feminino. Nada de errado com isso, até mesmo porque, em nenhum momento, o narrador se mostra um maníaco sexual ou coisa que o valha; é somente um púbere descobrindo os valores e dissabores do sexo.

E que nos desculpe o leitor mais exigente, mas isto é tudo o que temos para falar sobre as três novelas que compõem o [ocovíuqe] a que se dá, erroneamente, o nome de livro. O parágrafo acima resume prolixamente as 224 páginas de Minha Mãe

Australopitecus — E o homem — que ainda não era sapiens (alguns não o são ainda hoje, bem sabemos) — começou a pintar em cavernas. Com materiais diversos — e até mesmo em papel pólen bold —, começaram a narrar suas aventuras por este mundo. Coisas simples: caçadas, fenômenos da natureza, esboços da vida. E o homem então fez-se, pela primeira vez, artista. Com o passar do tempo, a arte tornou-se mais e mais elaborada. Nasceram reproduções fiéis da vida, foram criadas formas de se fixar no papel os fonemas: era parida a escrita. Por mais que se queira, é impossível dissociar uma da outra, até mesmo porque a tipografia que os leitores por ora decifram como sendo uma crítica negativa ao [ocovíuqe] de Valêncio Xavier é uma expressão gráfica do pensamento.

Um dos maiores prodígios da Humanidade, contudo, foi justamente criar duas formas diferentes de expressão: uma que demonstrasse o pensamento, ao que se deu o nome de escrita, e da qual fizeram uso gente como Shakespeare, Goethe, enfim, aqueles nomes todos que estamos sempre repetindo como símbolo do que temos de melhor em se tratando de pensamento e criação; a outra era uma forma que reproduzisse o meio em que vivemos de modo a criar uma imagem externa anterior à interna. Em outras palavras: a literatura cria uma imagem na imaginação; a pintura cria uma imagem — neste caso, a imaginação é algo não necessariamente associado a ela.

E conviveram assim, separadas e felizes, as ditas artes, por muito tempo. Vez ou outra juntam-se e formam produtos interessantes. Num jornal, por exemplo, a figura do cartum ao lado da notícia dá-lhe um sabor de picardia que a palavra, muitas vezes, não tem. Em livros infantis, as ilustrações enriquecem a imaginação do pequeno leitor, ainda pouco acostumado ao pensamento abstrato. Em obras maduras, viveram de modo independente, como na simbiose entre Caribé e Gabriel García Márquez.

Desconcertamento — Escuta-se aqui e ali que Valêncio Xavier, com suas histórias em quadrinhos que se pretendem a canônicas, causa um desconcertamento na literatura atual, tirando-a da mesmice narrativa que se instalou depois do furacão concreto e práxis. Não é nossa pretensão dar um tom profético a este texto que amanhã estará embrulhando um belo bagre, mas algo assim já foi dito de outros grandes mitos, sem que a literatura fugisse daquilo a que ela está presa, não como grilhões, mas como ex-voto de uma promessa feita nos tempos imemoriais: a palavra. E nada melhor, para terminar um texto assim, do que com as palavras que completam aquelas que servem de epígrafe a este texto, tiradas do Livro dos Profetas, ou Eclesiastes: O que foi, isto é o que há de ser; e o que se fez, isto se tornará a fazer: de modo que nada há de novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam; e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, nos que hão de vir depois.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho