Segredos de Cuba

Você, que lê livros, carrega segredos. Você chega de manhã no escritório, dá bom dia ao chefe mal-humorado
01/05/2001

Você, que lê livros, carrega segredos. Você chega de manhã no escritório, dá bom dia ao chefe mal-humorado, senta-se ao computador e tenta concentrar-se no trabalho, mas é difícil tirar da cabeça os personagens que invadiram sua vida há alguns dias por meio daquele romance.

Você entra naquelas intermináveis reuniões improdutivas de trabalho e, enquanto aquelas pessoas modorrentas desfiam um rosário de teorias impraticáveis, pergunta-se: será que algum deles imagina que nesta noite o agente russo Arkady Renko (Havana; Martin Cruz Smith; Record; 416 págs.) está prestes a invadir o cativeiro de sua amante Ofélia Osório sem saber que o raptor, o sargento cubano Luna, o aguarda com um afiado machete.

Não. É pouco provável. Primeiro, já é difícil encontrar numa mesma mesa mais que duas pessoas com o hábito da boa leitura (eu disse, da boa). Um estudo qualquer (mais um) afirma que o brasileiro lê, em média, dois livros por ano. Mas, se eu leio quarenta, há, pelo menos, 19 compatriotas figurando de gaiato na pesquisa.

Voltando à reunião, raramente teríamos nela dois leitores. Se isto acontecesse, dificilmente estariam saboreando o mesmo livro (você já calhou de encontrar alguém lendo o mesmo livro que você?). E se as duas improbabilidades acima ocorressem, seria o cúmulo da possibilidade os dois leitores terem fechado os livros na mesma página antes de dormir.

Resumindo, a leitura é um prazer solitário, onanista (ou egoísta?). É diferente de qualquer outra forma de lazer. O cinema, teatro, música e artes plásticas permitem, e exigem, o compartilhamento daqueles momentos de prazer (nem sempre). A leitura não. Mesmo que quisesse, você não encontraria alguém para discutir aquelas páginas recém-lidas. Melhor assim. A leitura é a arte que esconde segredos. Este é o seu maior prazer. Por detrás de um pacato caixa de banco, com seus velhos óculos e ar inexpressivo, pode estar um apreciador dos lascivos e nojentos relatos do cubano Pedro Juan Gutiérrez em O Rei de Havana (Companhia das Letras; 226 págs.).

Um bom autor transforma o leitor em cúmplice, portador inconsciente dos segredos que ele torna públicos individualmente. Reynaldo, o rei de Havana, é o destino trágico que teria qualquer cubano que sofresse os traumas que permeiam a decadente Cuba dos anos noventas. Passados cinqüenta anos da revolução, os livros de Gutiérrez mostram que as únicas coisas que melhoraram na ilha foram os discursos de Fidel Castro (para os ouvidos apenas, pois diminuíram de 12 para sete horas de duração).

A literatura de Gutiérrez é como Cuba: suja, nojenta, promíscua, mas encanta e aprisiona. Não é apenas porque ele escreve bem, com frases perfeitamente construídas, poucos adjetivos, verbos simples e diretos. Como Cuba, o texto de Gutiérrez tem um algo a mais, difícil de explicar. Arrisco-me a dizer que ele surpreende pela sinceridade, a ausência do falso pudor que invade grande parte da literatura (?), invade a mídia, esconde-se entre as pessoas, invade-nos a vida. Cuba não tem pudor. Não tem vergonha das filas para receber porções miseráveis de comida fornecida pelo Estado em estado deplorável. Não tem vergonha de comprar e vender no mercado paralelo o mantimento essencial do país, o rum. Havana não oculta, ao contrário, orgulha-se de ter uma das maiores (e mais arcaicas) redes de prostituição do planeta, importante item do turismo oficial, que é o carro-chefe da economia. O ponto das jineteras são as tradicionais esquinas. A área de serviço, quando o cliente não tem nem pro hotelzinho imundo, é ali mesmo atrás do muro. Gutiérrez é uma jinetera das letras. Para ele, programa completo é pau no cu, complemento manual é punheta e sexo oral é uma chupada. Você pode odiar ou amar a literatura de Gutiérrez, mas é impossível ficar indiferente a ela. Mais difícil ainda é largar o livro antes do final, nem que seja para ter certeza de que ele é mesmo nojento.

Cuba parece simples nos textos de Gutiérrez, mas essa não é uma imagem fácil de se colocar no papel, principalmente se o autor não for cubano. Com o espião Renko em Havana, o americano Martin Cruz Smith fez um bom trabalho, mas que parece mais uma história de cinema quando comparado a Rei de Havana. A rainha de Havana de Smith é a policial Osório, um misto de mãe, anjo da guarda, esposa e amante do agente russo.

Smith trafega por caminhos mais suaves que os da Havana de Gutiérrez. Há a pobreza, a falta de comida, a prostituição, mas apenas como pano de fundo do cenário. Osório e seus amigos parecem passear incólumes pelas desgraças cubanas. Até se alimentam de algumas migalhas de glamour dos áulicos, que vivem como carrapatos nas barbas do Velho Comandante. O Havana de Smith está mais para a Cuba idolatrada pelos pseudo-intelectuais embasbacados pelo simples fato de que Hemingway morou lá 22 anos, como se isto fosse atestado de agradabilidade geográfica.

De qualquer forma, a comparação com Gutiérrez é uma injustiça a Smith. Inverosimilhanças à parte, Havana é um contagiante romance policial. Mesmo num enredo à James Bond, o livro consegue mostrar o principal legado da Guerra Fria: Cuba era uma dona de casa com dependência total da Rússia. Quando foi abandonada, transformou-se numa viúva desnorteada buscando forças sabe-se lá de onde para sobreviver.

Naturalmente, não falta em Havana o sarcasmo americano do autor, que tenta transformar em blague local a velha piada ianque sobre as obras sociais de Fidel: “Quais são as três realizações da revolução? Saúde, educação e esporte. Quais são os três fracassos? Café da manhã, almoço e jantar.”

Autor de Parque Gorki e Praça Vermelha, Cruz Smith criou o herói perfeito na pele de Arkady Renko. O detetive reúne a frieza russa, a perspicácia americana, e nos deixa livres da soberba do agente 007. Além de não conquistar todas as mulheres bonitas e gostosas do mundo (Osório é feia como o nome, apesar de encantar Renko).

Se Smith transformou Arkady Renko num substituto à altura para James Bond, o Reynaldo, de Gutiérrez, é o perfeito anti-herói da revolução. Ele é herdeiro das errâncias do próprio Gutiérrez, que já havia perambulado em primeira pessoa pelos becos cubanos descritos pelo autor em Trilogia Suja de Havana, lançado em 1999 também pela Companhia das Letras (358 págs.).

Assim como em Trilogia, o tema predominante em O Rei de Havana é o sexo, de todas as formas e posições. Pode-se duvidar da capacidade física do ser humano em manter o ritmo frenético imposto por Gutiérrez a seus personagens, mas não há como não admirar sua criatividade. Escrever sobre sexo já é arriscado, relatá-lo em excesso beira ao suicídio. O brasileiro João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, deu um tiro no pé ao aceitar a encomenda da editora Objetiva para escrever o romance sobre a luxúria da coleção Plenos Pecados. Ribeiro transformou A Casa dos Budas Ditosos em sua pior obra, apesar do sucesso nas vendas.

A diferença é que a luxúria de Gutiérrez não é entediante como a do escritor brasileiro. Pode ser nojenta, mas nos faz descobrir que o nojo é um tímido sexto sentido que precisa ser despertado de quando em vez.

Pedro Juan Gutiérrez afirma que ao cubano só resta o rum, a salsa e o sexo. É, basicamente, o que restou ao adolescente Reynaldo, que no começo do livro assiste às trágicas mortes seqüenciais da mãe, da avó e do irmão. Não se impressionou? Reformulo a descrição: numa briga com a mãe, que o flagrou masturbando-se de olho na vizinha, o irmão de Reynaldo empurra a velha contra um cabo de aço que se crava em sua nuca. O irmão, desesperado com a morte da mãe, se atira da cobertura do prédio onde moram e arrebenta o crânio no asfalto:

“A avozinha viu tudo aquilo sem se mexer de seu lugar, sentada num caixote de madeira podre. Sem fazer nenhum gesto, fechou os olhos. Não podia viver mais. O coração parou. Caiu para trás e ficou recostada na parede, impávida como uma múmia.”

Reynaldo, preso como suspeito da tripla morte, tem a observação mais pertinente às desgraças que o cercam. “Para que a gente nasce? Para morrer depois? Se não tem nada para fazer. Não entendo para que passar por todo esse trabalho. Viver, disputar com os outros pra não foderem você, e no fim de tudo a merda.”

O texto de Gutiérrez é forte e empolgante. Só depois de algumas reflexões sobre seus livros é que percebe-se como ele é exagerado. Inverossímil não, mas exagerado, reunindo todas as desgraças do mundo numa ilha, em torno de uma só pessoa. E, além de tudo, muito cruel. Gutiérrez não concede a Reynaldo mais que 24 horas seguidas de felicidade. O final do livro é ainda mais triste e tão trágico que se a obra tivesse o título O Rato Roeu o Rei de Havana, estaria longe de ser figura de linguagem. Mas não vou contar como é. Leia. E mantenha em segredo.

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho