Um espelho, um pântano

Não tenho receio de dizer: sou um ingênuo. Sou um ingênuo, sou um ingênuo, eu repito diante do espelho, o rosto ainda encoberto pela espuma de barbear
01/05/2001

Não tenho receio de dizer: sou um ingênuo. Sou um ingênuo, sou um ingênuo, eu repito diante do espelho, o rosto ainda encoberto pela espuma de barbear, o nariz chamuscado, as fissuras sob os olhos mal camufladas pelo mercúrio cromo. Sou um ingênuo, sou um ingênuo, sou um ingênuo, vou repetindo em voz alta, mas isso não me consola, só me irrita, porque ingênuo é a última coisa que sou. Idalina acredita que somos aquilo que dizemos que somos. (Temos um gravador dentro da cabeça. Ali foram registradas as falas de nossos pais. A fita não pára de girar e, por fim, nos transformamos naquilo que esse gravador diz. Repetimos o que esse gravador diz. Assim pensa Idalina.) Apesar de seu nariz oblíquo, de seu busto de ferro, de seu delicado pomo de adão, Idalina gosta de dizer: — Estou me sentindo linda. Não percebe, não pode perceber, que tudo se estraga com a escolha do verbo sentir, pobre Idalina, ingênua Idalina, ingênua como eu, que ingênuo não sou, mas digo que sou.

Escondo minhas tolices sob o mito da inocência; Idalina esconde sua feiúra (mas eu a amo mesmo assim, feia, horrorosa) sob o mito da beleza; vivemos escondidos sob mitos e mais mitos, somos mitômanos, é isso o que somos, é isso o que sou, tudo, menos ingênuo. Concentro-me na barba e repito: sou um ingênuo. Foi por isso que apanhei de Schnaider, foi só por isso que ele se sentiu no direito de desferir uma ou duas bofetadas em meu rosto de pedagogo. E agora, como vou encarar meus alunos? Talvez eu deva falar de um deslize doméstico, de um acidente de automóvel sem importância, de um ferimento no jardim; usar ataduras e evocar uma pequena cirurgia, uma verruga, um furúnculo, uma ferida superficial qualquer. Eu sou mesmo ingênuo — eles jamais acreditarão em mim. Mas eu não sou um ingênuo, então tudo isso é uma tolice, então eu sou um tolo, tolo que sou.

Ah, por que continuar a falar sozinho, em vez de ficar quieto e me concentrar na espuma? Preciso ter cuidado ao passar o barbeador sobre essa parte mais sensível, que fica logo abaixo dos olhos, eu, descuidado que sou, ah, isso sou. Um palerma, um palerma, um palerma, é o que sou. Mas não: por que me trato assim, por que faço isso comigo, por que logo comigo, e não com Idalina que, feia, muito feia, horrível, passa a maquiagem bem ali, do outro lado da porta, em sua penteadeira de mulher feia? (Mas que eu a amo, amo; mas que sinto enorme desejo por ela, ah, isso sinto. Dez anos de casamento não abrandaram o que sinto. Ao contrário, exacerbaram o que sinto. Mas de que serve o que sinto?)

Schnaider não suportou que eu lhe dissesse a verdade, foi por isso que reagiu de modo tão bruto e desproporcional. Ele não suporta a verdade quando a dizemos sem meias palavras, ainda mais quando ela envolve questões profissionais, ou objetivas. Schnaider, o diretor, acha que os alunos não podem beber álcool nos bares que ficam na vizinhança da escola; eu não acho nem que os alunos devam beber álcool, nem que os alunos não devam beber álcool; simplesmente penso que, fora dos muros da escola, isso é algo que não temos o direito de controlar, e mesmo que tivéssemos o direito, não poderíamos controlar. Schnaider acha que, está sempre achando que; mas o que interessa o que Schnaider acha? A ninguém interessa o que Schnaider acha, isso só interessa ao próprio Schnaider, então por que desperdiço meu tempo com ele? Ora, tanto perdi meu tempo com ele que ganhei esse soco bem no meio da cara e agora, porque caí num amontoado de latas e caixotes, tenho o rosto ferido, como se tivesse levado navalhadas, ou uma lâmina muito afiada (como essa com que me barbeio) tivesse me ferido. Ora, ora. Isso tudo é uma bobagem; mas se isso tudo é uma bobagem, é porque sou um bobo, um tolo, sou um tolo. Por que não paro de me dizer isso — que sou um tolo? Por que não acabo com essa tolice? (Mas se é uma tolice… Logo, sou um tolo, sou um tolo, sou um tolo. Não tenho como escapar.)

Preciso lavar o rosto e descer para o café, a mesa deve estar posta, meu iogurte de ameixas, meus cereais, meu suco de laranja; exijo sempre de Idalina certa solenidade no café da manhã, isso ajuda a sustentar a monotonia de mais um dia em comum. Mas, para descer para o café da manhã, preciso passar pelo quarto, e para passar pelo quarto preciso passar por Idalina, e, ao passar por Idalina, estarei me defrontando com o que tenho de pior. Minha mulher é impiedosa, não tem freios na língua, nem nos pensamentos, fala tudo o que pensa, e pensa qualquer coisa que lhe vem à cabeça, aceita qualquer provocação de sua massa cerebral. Somos todos assim, sujeitos afogados num pântano de palavras e idéias desconexas e pensamentos sujos, ainda mais nos primeiros minutos da manhã, quando acabamos de acordar; mas, porque somos assim, cultivamos certos mecanismos de repressão, breques, obstáculos que venham a conter esse pântano que somos. Diques, barreiras, muralhas mentais. Isso é a civilização, eu me digo, logo eu que desprezo a civilização, logo eu que não me importo com as coisas civilizadas. (Mas lá vêm as idéias de novo se meter no que desejo pensar, lá vêm elas fora de meu controle, lá vêm elas cavalgando sobre meu pobre cérebro de pedagogo. Além do que, gosto de vinhos caros, de charutos e de Wagner, como posso desprezar a civilização?) Bem, isso é a pedagogia: ordenar, delimitar, discernir, escolher, camuflar. É assim, como um pedagogo, e não como um tolo, que devo me comportar. Considerar os vários lados, ponderar, medir, conjeturar, concluir. Sobretudo: concluir. O bom pedagogo é feito de boas conclusões.

Não quero descer porque não quero passar pelo quarto, não quero passar pelo quarto porque não quero passar por Idalina, não quero passar por Idalina porque não quero passar por suas admoestações, não quero passar por suas admoestações porque não quero passar por mim. E, no entanto, aqui estou, diante de minha horrível imagem fixada no espelho, aqui estou diante de mim, na intimidade de meu banheiro; sem Idalina, sem os pensamentos de Idalina, sem o café da manhã de Idalina, sem os cereais e o suco de laranja e o iogurte de ameixas, tudo acessório, tudo lixo, lixo, lixo — a vida é um lixo, começo a me dizer e, trocando de objeto, continuo: você é um lixo, você é um lixo! Mas por que me digo isso — que eu sou um lixo — por que me digo, por que me destruo assim?

Vou esperar que Idalina desça, que tome seu café apressado (ela o toma de pé, uma xícara de café preto, dois biscoitos salgados, no máximo meia maçã; toma enquanto folheia os relatórios da firma de cosméticos — os mesmos cosméticos que leva expostos na cara, sua cara de vitrine, sua cara folheto, sua cara de propaganda). Vou esperar que desça, que tome seu café, que saia, e só então vou descer. É o mais seguro. É o que faço sempre. Enquanto isso, porque nada mais tenho a fazer, vou arregaçar as calças e me sentar no vaso sanitário e folhear uma revista. Deixar que os pensamentos se evaporem, entregar-me a notícias velhas, inoperantes, inócuas, dedicar-me ao passado, porque meu presente é Idalina que se lambuza de maquiagem do outro lado da porta. E eu não quero vê-la. Não agora. (Ela dirá que sou tolo, dirá que sou ingênuo, dirá que não presto; duplicará meu sofrimento, em vez de serená-lo.) Não agora que tenho a cara marcada pelo soco que levei de Schnaider, uma besteira, Idalina diz, uma bobagem de homem, ela pensa, mas não é bobagem de homem, embora eu seja um bobo, eu seja um bobo, eu seja um bobo. Suponho que isso seja melhor, suponho que assim estarei mais protegido. Só isso. Nem é que não goste mais de Idalina, é só que não a suporto, em certas horas não a suporto, e isso me basta. Não suportá-la, às vezes, é viver. Além do que, não preciso de argumentos para me convencer de minhas próprias atitudes. Basta-me agir, e só, não devo explicações a ninguém, eu penso, mas me cobro continuamente explicações, sou uma espécie de vigia, um balconista de reclamações interiores, um juiz de direito. (E, além de tudo, sou o tribunal, sou a lei que me massacra, sou o martelo.) Isso é assim, mas isso Idalina não me diz, ela diz que sou muito passivo e que sempre me submeto — e, quando Idalina diz isso, ela me submete, então me torno mais passivo ainda. E se não me submeto para não me tornar mais passivo ainda, de certa forma (muito sutil, mas forte) eu a satisfaço; então é ainda a passividade que me caracteriza. Uma mulher, minha mulher, que me prende. Ela, Idalina. Ainda uma vez e não posso escapar.

Até que ouço a porta bater. Idalina desceu para o café. Arregaço as calças e me ergo diante do espelho. Sou um ingênuo, eu me digo, sou um ingênuo, um sujeito quase inocente, me comporto como uma criança. Por isso não sei o que fazer com as marcas do soco que Schnaider desferiu em meu rosto. Talvez sejam marcas de uma luta, de uma reação corajosa, ou de uma derrota, sim — mas uma derrota assinada com sangue. Talvez possam ser valorizadas e venham a representar algo nobre, uma atitude, uma atitude qualquer, ainda que uma reação quase infantil, ou patética — mas, pelo menos, algo vivo. Não essa apatia, não esse sujeito imóvel que vejo do outro lado do espelho, esse pulha que, apesar de ser um patife, daqui a pouco estará na sala de aula ensinando às crianças o que é negativo e o que é positivo. Ingênuo que sou, estúpido que sou, pois bem que podia reagir, deixar Idalina com sua feiúra, e vingar-me de Schnaider (talvez com um soco, talvez com uma risada) para, enfim, ensinar algo que preste a alguém. Ainda que esse alguém seja eu. Ainda que esse aluno seja eu mesmo, aluno e professor, discípulo e pedagogo, tudo dentro de mim.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho