Contos de Sérgio Kleinsorge

Dois contos de Sérgio Kleinsorge
01/05/2001

À beira do dia

O senhor tem sangue? O quê? O senhor tem sangue? Estiquei o braço riscado de azul, as veias inchadas amarrando os ossos. Esticou o pescoço para olhar o meu. Que carótida mais saliente, deve estar recheada, o senhor é RH+, não é? Na sua preferência, só um tipo evitava: o sangue mensal. Tirei um cigarro, espetei na boca, soltei a fumaça pelos ouvidos. O senhor faz isso como, hein? Hein? Fiz de novo pra fazer inveja. Fumei o branco do cigarro e o filtro, a chaminé nos ouvidos. Em seus olhos, o branco pálido, pardo, amarelou. O senhor tem no braço riachos muito apetitosos, fico com a boca cheia d’água. A saliva ia mesmo até os lábios, quase escorria, os caninos pontiagudos brilhavam de ouro. Então, o senhor deixa? Pedia de fome, os olhos no entanto mais fundos que o estômago. Deixa? Caninos de ouro maciço, por que esmolar o alheio sangue? O dia não podendo mais ser adiado, o sol iminente, a pupila crescia nos olhos escuros. Abri a boca pra balbuciar, mas ele já tinha sumido na esquina, fugindo da claridade, mais um segundo na luz e a pupila estourava. Logo agora que eu ia dizer sim. Tão cheio de fome e pressa.

Mim

Toca o galo urbano, dou-lhe um tapa, só assim se cala. Ainda não é dia, eis aquela hora entre sangue e leite que Drummond pintou: sobre a cabeceira, os óculos, cigarros e ele, A Rosa do Povo. Fecho os olhos para resgatar os sonhos, nem o sono, vou ao banheiro, não me assusta a minha imagem matinal porque é minha. Estico os braços, a língua, faço aaaahhhh, uma careta, duas, exibo os dentes. Aos poucos me aproximo do espelho e me beijo na boca, o nariz põe moldura embaçada na marca entreaberta dos lábios. Com uma expressão diferente da minha, a imagem parece assustada, cabisbaixa procura-me a sombra, as duas conspiram. Faces da mesma moeda que sai rolando, para onde? Estico outra vez a língua, invento careta nova, ninguém no espelho vazio, o sol preencheu o chão. Escovo dentes e cabelo, a água é fria e a toalha áspera. Um último olhar para a frente, para o ladrilho, mas ninguém. Troco de roupa e saio sozinho porque só existo em mim mesmo.

Sérgio Kleinsorge

É autor de À beira do dia.

Rascunho