Cartas de Martha Medeiros merecem ficar

Poeta gaúcha lança um novo livro de poesia, "Cartas extraviadas e outros poemas", o quinto de sua trajetória
Martha Medeiros é a mesma do princípio e sempre outra, a precisão adquirida pela serenidade
01/06/2001

O rótulo de poesia gaúcha não funciona em Martha Medeiros. Passa longe. Não está preocupada em justificar um ideário estético e histórico do Sul ao eixo Rio-São Paulo ou arrogar-se de alguma situação de desvalia, cobrando atenção e respeito do País. O que a interessa é o prisma individual, a dicotomia casamento/liberdade, os atritos dos costumes. Universaliza a condição feminina a partir da cumplicidade e de uma certa devoção pelo mínimo gesto. Cronista reconhecida no Rio Grande do Sul, em especial pela sua coluna no jornal Zero Hora, apresenta uma produção singularizada pela coerência. Talvez a fama de suas crônicas, inclusive encenadas em peça, tenha resultado injustamente na discrição da faceta poética. Fato que pode ser corrigido agora no lançamento de Cartas extraviadas e outros poemas (L&PM, 130 págs.), que rompe o ciclo de jejum de seis anos. Desde De Cara Lavada (1995), ela não publicava nenhum poema inédito.

Martha Medeiros estreou na metade dos anos 80, na era de ouro da editora Brasiliense, que consagrou na coleção Cantadas Literárias toda uma nova leva de autores como Chacal, Ana Cristina César, Paulo Leminski, Alice Ruiz e Marcelo Rubens Paiva. Seu primeiro livro, Strip-tease já consumava o despojamento verbal. “Toda noite/ainda é o mesmo dia”. Estrangeirismo e a intervenção coloquial conduziam a criação ao nível de linguagem do dia-a-dia. Era o processo de abertura, do recorte cênico impregnado de humor e autocrítica, contrário ao hermetismo e elevação do timbre própria do sublime. As mensagens avulsas e diretas determinavam o ritmo irregular do verso livre. A segundo obra, Meia-Noite em Quadro (1987), e a terceira, Persona non Grata (1991), confirmaram sua vocação pela matéria do seu tempo, revestindo o texto da concisão contemporânea de registros. Trata-se de uma visão despretensiosa que é puro ceticismo, refugando intenções ocultas de ser póstuma e de escrever para posteridade. O exorcismo é peça fundamental de sua nomenclatura, empregando toda fraqueza comportamental para atuar como indutor da franqueza. “Incrível como minha vida evolui/nas horas em que não me pertenço.”

Expoente de uma geração que começou no miméografo e amadureceu no jato de tinta, Martha Medeiros teve talento de sobra para promover a depuração do estilo. Apesar de aparentar facilidade, sua espontaneidade é fruto evolutivo do rigor. Elogiada por Millôr Fernandes, festejada por Caio Fernando Abreu, encontrou um severo revisor na figura do silêncio. Pois sabe que “duram mais os amores silenciados”.

Cartas extraviadas e outros poemas reúne 108 versos e cinco cartas. Nenhuma mudança estrutural à vista. O que a valoriza é justamente a manutenção de sua voz pessoal e catártica. Nem um pouco a fim de levar desaforo para casa. Martha é a mesma do princípio e sempre outra, a precisão adquirida pela serenidade. O primeiro poema dá a senha: “era ele mas era outro, eu era a mesma, e outra/e a distância entre nós era bem mais longa que aqueles passos/curtos”. Os desencontros da paixão e a consciência extremada dos defeitos e virtudes compõem uma atmosfera de desconstrução de identidade. A poeta capta instantes líricos em meio ao banal, desfiando o imaginário coletivo, aquela obsessão dominante na mulher de “vingar a vida”, herdar projetos da sociedade e corresponder à altura. Ter no marido o fetiche de um amante, equilibrar aventuras e sucesso profissional, conciliar filhos e renda preta, recorrer ao consumo quando se está consumida, desafiar convenções e formalidades. Sua matéria-prima é fotografar os acertos e os ruídos da relação a dois. “Haverá de ser tu o primeiro a olhar pra trás.” Descontando o poema 04 (“clamamos e pedimos a Deus, por favor/quero esquecê-lo”) poderia se dizer que é uma Adélia Prado não-praticante, sem a religiosidade latente e o erotismo alçado à sublimação. Em seu caso, o pessimismo serve como sinal aditivo de inteligência e inconformismo, uma atitude de vigília intelectual perante os hábitos, censurando progressivamente a estabilidade da rotina: “tudo errado que dá/é consciência”.

Ocorre a exploração de um tema até faiscar um conflito. Os detalhes são superestimados, transformando de maneira retroativa o viés panorâmico sugerido no começo. Um exemplo são os versos iniciados com “estava frio lá fora, vi bem quando chegaste tremendo” e que terminam com o particularíssimo “tua amante te trouxera de volta pra casa”. Sua pretensão é instaurar um novo jeito de manusear o trivial, localizando metáforas onde não existiam. “Tragam flores/para meus vasos sangüíneos.”

Não por menos que uma das marcas da poesia feminina brasileira é o confessional, fazer da vulnerabilidade uma força expressiva (uma exceção à regra é a paulista Orides Fontela e sua poesia substantiva). Martha encaixa-se neste perfil, do enfoque da primeira pessoa, adjetivo, que reivindica a simultaneidade. Xinga, exclama, seduz, experimentando diversos estados de ânimo. Exige do leitor a imediata identificação das experiências relatadas para detonar a carga dramática. É o pacto da adesão e simbiose. Tomando o interlocutor à sua imagem e semelhança, utiliza o conhecimento de causa — a confirmação da teoria pela vivência — para repassar um ensinamento. Expor-se é a sua forma de se impor, bem como sua fluência depende da influência exercida. “Mulher adora dar um prazo para o imponderável.” De vez em quando, exagera na dose romântica, deslizando para o lugar-comum como “mil sessões de terapias poupadas”, “amar você é meu esporte mais radical” e os símiles “crazy, sou às vezes/louca, doze meses por ano” e “que eu nasci doze vezes foi pra isso mesmo”. Porém, esses pequenos desajustes não comprometem a harmonia do conjunto.

A escritora gaúcha combina o pendor narrativo com uma síntese aforística. A prosa representada nas correspondências intercala a série de poemas como um desaguadouro reflexivo. Corresponde à súmula do trajeto, firmando o núcleo temático e a disseminação do título. “Esta carta não é para chegar, é uma carta para ficar.” Invocando um suposto amor, o papel epistolar é de agregar ao conjunto a idéia de fluxo do pensamento. Reforça o sentido do inacabado. Importa-se a duração em detrimento da conclusão, o entendimento acima da realização. Novamente verifica-se a fascinação pelos contrários. Se forma algo que não foi enviado, é que a sinceridade só foi concretizada por uma das partes. O esvaziamento mediante o desabafo denota a incompletude, reconhecer as dívidas afetivas ainda não é quitá-las.

Descobrir a simplicidade é a operação mais complexa. Martha Medeiros é simples porque necessária. “Tirando o resto a alma é tudo o que sobra.” Nela, o dentro é o fora, o fora é o dentro. A sensação é que ela escreve de pés descalços. Não há nada a separando do chão. Nenhuma superfície a isolando. Enraizada na temporalidade de estar ali, inteira, sujeita a improvisos e vacilações. Todo peso do corpo nos pés.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho