O escritor, ensaísta e crítico paulista Álvaro Alves de Faria, um dos ícones do movimento poético de resistência e contestação do pós-64, acaba de lançar um pequena obra-prima: Borges — o mesmo e o outro (Escrituras, 80 págs.). Trata-se de um precioso testemunho de seu encontro com o escritor argentino Jorge Luís Borges em setembro de 1976. Nesse cara a cara com o mito literário, um das poucas oportunidades em que Borges concedeu entrevistas (e a primeira a um brasileiro), foi possível (re)colher, em algumas horas, o pensamento daquele que é considerado uma das figuras mais controvertidas da literatura universal dos últimos cem anos.
A Argentina vivia sob o influxo de um golpe militar que a marcaria profundamente e Borges padecia de uma solidão ancestral, agravada pela angústia da perda da mãe, um ano antes, figura que regia sua vida e da qual dependia física e psicologicamente por força de sua cegueira. É nesse clima que se desenrola a candente interlocução entre os dois autores e a sessão de fotos que ilustra o opúsculo, embora Borges detestasse qualquer registro iconográfico.
Essa entrevista foi publicada em fragmentos em diversos jornais brasileiros nos últimos anos e só agora é reunida em livro, constituindo-se num desabafo fascinante e ao mesmo tempo dramático do escritor desiludido e do homem fragilizado. Num obscuro apartamento da Calle Maipú, em Buenos Aires, Álvaro deu voz à sempre relutante esfinge, desnudando parte de seu iceberg ideológico. Descobre-se um homem mais deprimido do que se revelava em suas aparições públicas, cuja amargura transcendia o luto pela morte de dona Leonor, explicitando suas considerações sobre diversos temas, como política, filosofia, arte e literatura. Nesse particular, autores consagrados e detentores de Prêmio Nobel, como Pablo Neruda e Gabriela Mistral, não escapam à sua crítica depreciativa. Neruda era para ele um poeta medíocre e uma das piores criaturas que conheceu e que só teria chegado ao estrelato por razões políticas. Além disso, desmereceu toda a literatura latino-americana, bem como o povo do nosso continente, os negros e própria língua em que escreveu. Borges gostaria de ter escrito em inglês ou sueco. Paradoxalmente, foi na língua pátria que projetou-se internacionalmente.
Álvaro Faria edita um programa radiofônico sobre literatura na Jovem Pan de São Paulo há muitos anos e por mais de uma década redigiu crônicas diárias para o rádio. Com sua experiência jornalística e sensibilidade poética, soube conduzir a entrevista, sem, no entanto, deixar que as opiniões do entrevistador obscurecesse a fala do escritor argentino, captando-lhes as idiossincrasias. Deixou que fluísse o ressentimento de Borges com o mundo, sua absoluta descrença na humanidade e na própria literatura e seu apetite pelas ditaduras, pois considerava os militares que derrubaram o governo de Isabelita Perón dignos cidadãos que salvariam a Argentina do caos. Talvez aí esteja mais presente sua ira contra Perón do que a crença no poder profilático das ditaduras, pois foi vítima dela, quando o ex-ditador o alçou a inspetor de galinhas num mercado público, destituindo-o de suas funções burocráticas na Biblioteca Nacional. Uma possível explicação freudiana para um recalque político que o transformou num militarista de carteirinha.
Borges — o mesmo e o outro é um documento imprescindível para se compreender a personalidade e ao mesmo tempo separá-la do grande autor que ele foi. Como Nelson Rodrigues, nosso genial intérprete social, Borges deixou escapar sua saraivada de impropérios reacionários contra valores intangíveis pelos quais lutamos a duras penas, como a democracia e os direitos humanos, mas esse sentimento pessoal, mais retórico que engajado, produziu estragos em sua imagem, menos em sua obra. Em ambos, a bibliografia foi maior que as preferências políticas, as opiniões pessoais e os juízos de valor, ainda que ao escritor devamos sempre cobrar uma postura coerente contra as injustiças e uma indignação permanente contra a humanidade afrontada. Mas o escritor continua vivo, apesar de seus pruridos ideológicos, pois reacionários desamparados ou mortos já não fazem mal a ninguém.