Balaio de poetas

Antologia dos cem melhores poetas brasileiros do século 20, organizada por José Nêumanne Pinto, coloca lado a lado Machado de Assis, Leminski, Drummond e Pignatari
José Nêumanne Pinto: trabalho similar ao de editor de jornal, com critérios objetivos e subjetivos
01/08/2001

As listas dos melhores sempre mexem com a curiosidade do público. Elas são feitas basicamente com o objetivo comercial. A venda em grande escala é o que mais estimula as editoras a investirem neste segmento, mas algumas obras vão além do apelo mercantilista. É o caso de Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século (Geração Editorial, 324 págs.), seleção do competente jornalista José Nêumanne Pinto. Ele mesmo admite que essa história de 100 melhores “é truque mercadológico”. A franqueza de Nêumanne é destilada nesta entrevista, na qual ele fala sobre sua obra, sobre o contato com o melhor da poesia nacional, sobre a negativa dos concretos de participarem da antologia. Além disso, ele conta histórias interessantíssimas sobre esse mundo rico (em termos literários) da poesia. Enfim, um presente aos leitores de Rascunho.

• O senhor não sentiu certa aflição de assinar uma obra com o título “os melhores…”?
Esse negócio de 100 melhores é um truque mercadológico para atrair leitor. E eu assumo isso: aceitei a proposta de meu amigo, colega e editor Luiz Fernando Emediato, da Geração, tentando ampliar o público leitor de poesia no Brasil, onde se escreve muita poesia, mas se lê muito pouco. Décio Pignatari disse que não autorizou a publicação de seu poema porque eu bajulava o público. E ele estava certo: se um leitor comprou um livro que seja de qualquer um dos 100 poetas que eu escolhi, então, cumpri o que pretendia com o insano trabalho que tive.

• Como o senhor acha que é possível aumentar o público leitor de poesia? Afinal, há muita gente boa que sequer consegue publicar e mesmo os que vencem essa barreira enfrentam a falta de consumidores. É possível mudar este quadro? Como?
Eu acho fundamental que o leitor saiba que existe aquele poema, aquele poeta naquele livro. Como alguém pode resistir a comprar um livro de Carlos Pena Filho depois de ler seu Soneto do desmantelo azul na minha antologia? Mas como vender a poesia, se o leitor nem sabe de sua existência? Considero meritórios todos os esforços que têm sido feitos para vender mais a poesia em outros suportes. Há alguns CDs à venda por aí — eu mesmo gravei um (As Fugas do Sol), com música do maestro Marcus Vinicius de Andrade (para o selo do CPC da Umes). Thereza Christina Rocque da Motta, Nei Leandro de Castro e Elaine Pauvolid fazem parte de um grupo que promove saraus movimentados no Rio de Janeiro. Isso ajuda. Eu tentei dar minha contribuiçãozinha com essa antologia, de que falamos. O professor Ítalo Moriconi com a antologia dos 100 melhores poemas. Cada um põe seu tijolinho e vamos em frente. É uma obra modesta, eu sei. Mas é melhor do que a inércia.

• Como foi o processo de escolha do material que seria incluído no livro?
Muita gente boa me acusou de ter restringido tudo a meu gosto pessoal. É claro que o gosto pessoal influiu, mas também influiu, e muito, o conhecimento que tenho da história e da fortuna crítica dos poetas brasileiros no século. Sem fugir da raia, eu lhe diria que fiz um trabalho semelhante ao de editor de jornal, misturando critérios objetivos com subjetivos, como faz o jornalista ao escolher as melhores notícias que tem para dar na página.

• Vários jornalistas como o senhor, pessoas que trabalham com o factual, com o palpável, demonstram uma devoção ao poema. Aliás, vários poetas de peso começaram como jornalistas. Qual é o ponto de interseção entre esses dois ofícios?
O que aproxima os dois ofícios é o fato de ambos serem vocações. Como os sacerdotes de qualquer religião, jornalistas e poetas têm de ser vocacionados. Se não o forem, jamais exercerão bem seus ofícios. Mas as semelhanças terminam aí, pois o jornalismo é uma profissão, na qual é possível seguir o conceito paulino de ganhar o pão com o suor do próprio rosto, enquanto a poesia não deixa de ser, pelo menos em países como o nosso, uma espécie de hobby, no mínimo uma atividade não rentável. Um dos poetas que mais admiro, o paulista Mário Chamie, conta uma história engraçada a esse respeito: certa vez, compareceu a uma palestra de Érico Veríssimo, que respondeu a uma questão apresentada por alguém da platéia sobre a possibilidade de ganhar a vida escrevendo. O autor de O Tempo e o Vento ilustrou os parcos vencimentos de um profissional da escrita, dizendo que com os direitos autorais do seu primeiro romance comprara um sofá para sua sala. Com os do segundo, uma poltrona. E assim foi indo: de livro em livro, terminou por mobiliar a sala. Com seu humor peculiar, o poeta de Lavra Lavra, que estava na platéia, disse que na poesia ocorria o contrário: para cada livro que publicava precisava vender um móvel, de tal maneira que àquela altura tinha vários livros publicados e a sala vazia. Voltando a nosso tema, eu diria que jornalismo é missão e a poesia, danação. Jornalistas e poetas não o são porque querem, mas porque podem. Mas a poesia é uma dama tirana, só visita o poeta quando bem entende e quando entra não pede licença, mas invade. Também quando resolve não fazer uma visita, leva o poeta à loucura da impotência, da infertilidade, a pior de todas. Enquanto o jornalista lida com a notícia o tempo inteiro. Quanto aos grandes poetas que foram também grandes jornalistas — caso de Ferreira Gullar, apenas para dar o exemplo mais fácil — a missão ocupa e alimenta e a danação dá sentido à vida.

• Quando o senhor percebeu a importância da poesia na sua vida? Aliás, qual é a importância da poesia na sua vida?
A poesia começou a me visitar meio clandestinamente, como uma velha prostituta meio decadente, mas muito atraente, ainda na infância, no sertão da Paraíba, e no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Campina Grande, onde cursei o ginásio. Desde então, ela tem funcionado como uma espécie de sucedâneo da psicanálise. Ela é a loucura que sustenta minha lucidez. Como Mário Chamie, não ganho dinheiro com ela. Mas devo economizar muito, pois, graças à poesia, não preciso pagar consultas aos psicanalistas. Todas as vezes que me vi tentado a procurar um terapeuta, desisti, com pânico de perder a loucura que me impulsiona para a poesia. Não é brincadeira nem figura de retórica, não. Juro que é a mais absoluta verdade.

• Na apresentação do livro o senhor fala em “escolha individual” e em “imposição da própria obra”. Isso significa que em alguns momentos o seu gosto sucumbiu à força da obra. O senhor poderia citar alguns exemplos?
Considero Augusto dos Anjos um dos picos mais altos da poesia brasileira em todos os tempos. Algum antologista seria louco de deixá-lo de fora, por menos que goste de sua obra? Nem Manuel Bandeira teve peito de deixar Manuel Bandeira de fora de sua própria antologia. Há um punhado de poetas indiscutíveis, em cuja escolha o gosto pessoal do antologista não tem como pesar. Esses são os casos dos pré-modernos, dos modernistas e até mesmo dos da geração de 45. Das vanguardas para a frente ainda não se pode falar numa cristalização dessas. Mas ainda assim uma obra pode se impor. A poesia de Chico Alvim não me fascina tanto quanto a de Adriano Espíndola ou a de Nei Leandro de Castro, que ficaram de fora. Mas ele entrou, passando por cima de meu gosto de leitor, sobretudo por causa da fortuna crítica que amealhou.

• Dos 100 poetas qual é o seu preferido e por quê?
Eu peço vênia para citar dois: Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira. Ambos são vozes de grande originalidade na poesia mundial em sua época. Seriam grandes poetas, dos maiores, em qualquer língua, em qualquer lugar.

• “Os excluídos” da lista vêm se manifestando ou só os críticos indicaram “faltas graves” na sua seleção?
Wilson Martins, decano da crítica brasileira, reclamou da ausência do poeta José Nêumanne Pinto. O professor Ítalo Moriconi classificou de “pinimba” o fato de eu haver excluído Ana Cristina César. Meu amigo Moacy Cirne não me perdoa por eu não haver incluído nosso amigo comum Nei Leandro de Castro. Reclamou-se também da ausência de Manoel de Barros. E por aí vai. Há de tudo um pouco. Mas a regra geral é que as pessoas sintam a ausência de poetas de seu Estado. Acho esse bairrismo construtivo. É sinal de que esses queixosos dão muito valor à antologia. Isso também vale para ilustres poetas que reclamaram a própria ausência. Mas não insista, pois sou um túmulo nessa questão e não vou delatar nenhum.

• Qual o poema de José Nêumanne Pinto poderia fazer parte de uma seleção como esta?
Nenhum. Se houvesse algum, estaria na antologia. Como o mestre Wilson Martins, Álvaro de Sá, camoniano que respeito muito, sentiu falta de um poema meu e foi além, citando A Seara de Saramago, sobre nossa “inculta e bela” língua portuguesa. Mas a verdade é que eu sou um poeta pequeno demais, bissexto demais para entrar na antologia que um jornalista sério e respeitado como eu sou foi encarregado de fazer.

• Houve muitas pressões para incluir determinado poeta ou poema?
Não houve pressão prévia nenhuma, não. Só reclamações posteriores, a respeito das quais já conversamos.

• Algum desses críticos convenceu o senhor sobre possíveis erros de avaliação? É possível que em novas edições haja mudanças?
Não. Não fui convencido de nenhum engano grave. Nem José Nêumanne Pinto nem Manoel de Barros nem Ana Cristina César serão incluídos nas próximas edições — e o editor e eu esperamos que ainda haja muitas, pois foram vendidos 8 mil exemplares e estamos achando pouco. O único poeta cuja ausência lamento é a gaúcha Maria Carpi. Mas ninguém reclamou da ausência dela. Nem ela nem seu filho Fabrício Carpinejar, que é meu amigo. E foi um caso de ignorância pura: só não a incluí porque não tinha o adequado e completo conhecimento da obra dela.

• Quais as ausências mais cobradas?
Manoel de Barros e Ana Cristina César, principalmente. As queixas regionais são muito localizadas para merecerem um destaque aqui.

• Machado de Assis e Ariano Suassuna são conhecidos pela extraordinária capacidade literária, mas em outros gêneros que não a poesia. Como o senhor chegou a estas escolhas. Houve alguma cobrança?
É claro que houve, mas em benefício de quem as fez prefiro omitir nomes de cobradores. Ocorre que Machado de Assis é um poeta magnífico. Não é um poeta à altura do gênio de romancista que foi, mas é maior do que muitos selecionados entre os 100. Por que eu haveria de excluí-lo só porque ele foi um romancista genial? Depois, meu amigo, aquele poema dele para a mulher morta é belíssimo e o li em várias antologias escolares. Portanto, não sou o primeiro. A decisão de incluir Ariano contrariou talvez o próprio Ariano. Ocorre que ele nunca havia publicado um livro de poesia até que um discípulo dele, Carlos Newton Jr, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, os reuniu num volume publicado paralelamente à sua tese sobre a poesia do mestre do armorial. Tomei conhecimento dessa poesia antes disso, através de um CD que me fora enviado pelo violonista Antônio Madureira. Fiquei fascinado e perguntei a Ariano por que ele ainda não publicara aquela poesia, que eu considerava maior. Ele me respondeu que a poesia não era dele, mas dos personagens de seus romances e só poderia ser publicada no contexto deles. Quando preparava a antologia, já dispunha do livro organizado por Carlos Newton e, como nele a poesia havia deixado de ser dos personagens para ser do autor, resolvi incluí-lo, e não incluí um dos sonetos gravados, mas um dos poemas publicados graças ao esforço do discípulo.

• Guimarães Rosa, outro gigante da prosa brasileira, foi revelado como competente poeta na publicação de Magma. Além disso, a prosa dele fez uma aproximação inédita da poesia. Em algum momento o senhor avaliou a possibilidade de incluí-lo nesta antologia?
Sou leitor apaixonado da prosa de Guimarães Rosa, que é, como você disse, uma prosa, digamos, poética, mas não tenho a menor admiração pela poesia propriamente dita do grande romancista. Aí está um caso diferente de Machado e de Ariano, que entraram pelo mérito apenas da poesia, e não da prosa nem do teatro.

• Os herdeiros dos autores provocaram alterações significativas no livro?
Não. O único problema sério mesmo não foi com herdeiros, mas com os concretos. E acho que a solução encontrada pelo editor e por mim ficou de bom tamanho. Modéstia inclusa.

• Foi muito complicado selecionar os seis poetas populares, já que a publicação desse tipo de trabalho é ínfima e muitos bons poetas ainda estão sob a guarda da tradição oral?
De fato, a última seção da antologia, com os poetas populares, merece destaque à parte. Primeiramente, porque a minha foi a primeira antologia “erudita” (a palavra é horrível, mas, à falta de outra, vai essa mesmo) a incluí-los. Fico feliz de ver que o professor Moriconi também incluiu um poeta popular e Zé Limeira deverá figurar na antologia de Claufe Rodrigues. Em segundo lugar, porque nela fui obrigado a usar um critério de amostragem, que não usei em relação aos outros poetas. Talvez, quem sabe, seja o caso de um dia alguém fazer uma antologia só de poetas populares. Mas isso é trabalho para mouro louco, amigo. Estou fora.

• Há “uma letra de música”, ou melhor, um poema musicado em sua antologia. Como foi esta escolha?
Não. Não há nenhuma letra de música na minha antologia. Há, sim, um poema, ou melhor, um martelo de Otacílio Batista, grande repentista pernambucano, que foi musicado depois por Zé Ramalho e gravado por ele mesmo e por Amelinha. Quando a antologia estava sendo projetada, o editor Luiz Fernando Emediato me perguntou se não ia entrar algum letrista. E eu respondi que essa seria outra antologia, pois nesse ponto concordo com Pedro Lyra e Ivan Junqueira: letra é letra, poema é poema.

• O senhor tem visto algum letrista da MPB atual que tenha demonstrado competência ao aliar poesia e música?
Conheço muitos letristas competentes, como, só para citar os maiorais, Chico Buarque e Caetano Veloso. Mas acho que eles são excepcionais letristas. Não me canso de ouvir, por exemplo, o CD que acaba de sair com as canções do musical que Chico Buarque fez com Edu Lobo, Cambaio, pois são magníficas. Mas letras dependem de melodias. A melodia da poesia é o silêncio.

• Como o senhor avalia a atitude dos “concretos” de não deixarem publicar seus poemas? Seu livro perde algo com essa atitude?
Claro que o livro perde. Se eu não achasse que perderia, seria incoerente com a escolha que eu mesmo fiz. A razão dada por Décio Pignatari já foi tratada acima. Augusto de Campos não deu explicação alguma publicamente, mas disse ao professor Rinaldo de Fernandes, que me ajudou no trabalho, que não queria atrapalhar a publicação da antologia da poesia dele, que ele mesmo está fazendo. Não entendi nada. Mas tudo bem. Haroldo de Campos disse à Folha de S. Paulo que não autorizou a publicação do poema porque a antologia era eclética demais. Foi um elogio maravilhoso: não sei se a antologia é boa, ruim, completa ou incompleta. Mas eclética ela quis ser mesmo. E o mestre captou. Não acho ético o poeta recusar-se a autorizar a publicação de um poema na antologia, mas está no direito dele. E lei é lei. Respeito e pronto: não discuto.

• Por que a supervalorização explícita dos modernistas? É “o melhor” período da poesia brasileira?
Não sei se houve uma supervalorização dos modernistas. Não prestei atenção nesse detalhe. Apenas tentei selecionar os poetas que acho melhores, sem me importar se eram parnasianos, vanguardistas ou modernistas. Na minha opinião, um dos pontos altos da antologia é meu conterrâneo Augusto dos Anjos, recém-eleito “o paraibano do século” em votação popular — e com meu próprio voto. E ele é o único dos 100 que não pode ser classificado em escola ou linha nenhuma.

• Por que Augusto dos Anjos é único dos 100 poetas selecionados que não pode ser classificado?
A classificação, ou melhor a não classificação, de Augusto dos Anjos é um velho dilema da crítica literária brasileira, que começou juntamente com o sucesso de público que ele fez. Pessoalmente, sem nenhuma legitimidade acadêmica, eu acho que esse problema se deve ao fato de ele ter sido rejeitado pelos escritores à época do lançamento de Eu, cuja primeira edição malogrou. O estouro de público das edições seguintes ocorreu depois da morte do autor e isso talvez tenha evitado sua entrada ou aceitação por alguma igrejinha ou escola da moda. O nariz torcido dos colegas do Rio, quando aquele paraibano esquisito mostrou seus originais, prestou um grande serviço à literatura brasileira, ao provar a possibilidade do brilho isolado, solitário, sem a necessidade de satélites que, chamando a atenção dos discípulos para o brilho dele, roubariam algum para compensar sua própria opacidade.

• Depois desse grandioso trabalho de pesquisa, houve alguma mudança no seu modo de ver a poesia brasileira? Alguma grande descoberta que não coube no livro?
Sim. Eu fiquei muito impressionado com a alta qualidade da poesia produzida nos subterrâneos da vaga vanguardista e do subformalismo cabralino dos anos 60 para cá. Fiquei muito feliz de saber que houve vida inteligente no planeta da poesia brasileira na vigência esterilizante e paralisante da monocultura cabralina e do estruturalismo explícito.

• Quais dos poetas da nova geração merecem constar das próximas antologias do século?
Os que acho que mereciam entrar na minha antologia do século 20 constam da minha antologia. Quanto ao século 21, ainda é cedo demais para achar alguma coisa.

• Como o senhor avalia o atual estágio da poesia produzida no país?
Quando li a antologia que Carlos Felipe Moisés e Álvaro Alves de Faria fizeram da Geração 60 de São Paulo, fiquei impressionado com a alta qualidade da poesia produzida soterrada sob o entulho vanguardista dos anos 60 e 70. Muitos sobrevivem até hoje. Acho que Mário Chamie, Roberto Piva, Hilda Hilst, Alberto da Cunha Melo, Alberto da Costa e Silva, Leonardo Fróes e Ivan Junqueira, entre outros, têm uma obra que pode ser cotejada com a dos grandes que os antecederam.

• O fato de escolher o poeta, e não o poema, não complicou ainda mais a tarefa, já que ainda tinha o agravante de escolher um único poema por autor? Imagino o dilema que foi optar entre José , A máquina do mundo e No meio do caminho
Você tem toda razão. Meu editor, Emediato, me alertou para isso. Mas eu sou é doido mesmo. Se não fosse, não teria topado uma empreitada dessas sem legitimidade acadêmica e sem tempo algum, pois sou escritor amador. De profissão sou jornalista do batente e comentarista de rádio. Em relação à escolha do poema de Drummond, você acertou em cheio. Meu dilema foi o que você descreveu. Escolhi “No meio do caminho” pelo ruído semântico que o poema produz até hoje. Os manuais de redação modernos dos jornais em circulação ainda proíbem o uso do verbo “ter” da forma como o poeta usou, genialmente.

• O crítico e escritor Miguel Sanches Neto disse que o seu livro é “inquestionavelmente, a mais completa e democrática antologia feita até hoje”. O senhor concorda ou pensa que poderia ter pesquisado mais determinado período?
Não trocaria uma vírgula dos brilhantes ensaios que o crítico Miguel Sanches Neto publicou tanto sobre a minha antologia quanto sobre a antologia dos 100 melhores poemas do século feita pelo professor Moriconi. O fato de ter induzido, digamos assim, um texto brilhante daqueles me dá a sensação do dever cumprido.

Um poema que o antologista não escolheu:

A seara de saramago

Esta língua é minha semente,
machado de mulato do morro,
pátria do poeta lisboeta.

Esta língua é minha visão,
o sol do soldado caolho,
a mão do soldado maneta.

Esta língua é minha música,
na palavra do padre pregador,
no pássaro do padre voador.

Esta língua é minha mulher,
tem cuidados de mãe
no leito da amante.

Esta língua é minha rosa,
tem perfume dos sertões gerais,
tem sabor de vinhos do Porto.

Esta língua é meu cavalo
para subir cidades e serras,
que a brisa do Brasil beija e balança.

Esta língua é fel com mel,
cantigas a palo seco
de ninar o futuro.

Esta língua é meu coração
na tortura, na paixão
e no sal amargo da purificação.

Esta língua é jóia africana,
ela caça a onça caetana,
ela cruza a légua tirana.

Esta língua é fruto de meu ventre,
mata sede de amizade,
me arma nos bons combates.

Esta língua não é de viver,
língua de navegar e de lamber
e de dançar o tango argentino.

Esta língua é meu berço,
esta língua me conhece,
esta língua é meu caixão.

(de As Tábuas do Sol, in Solos do Silêncio, Poesia Reunida, págs. 70 e 71)

Jeferson de Souza
Rascunho