Equilíbrios delicados

Cíntia Moscovich supera os jargões preconceituosos, que costumam diminuir o alcance da produção contemporânea
Cíntia Moscovich, autora de “Arquitetura do arco-íris”
01/08/2001

Cíntia Moscovich supera os jargões preconceituosos, que costumam diminuir o alcance da produção contemporânea. Não a reduzirei à literatura nova-feminina-gaúcha-judaica, especificando ao máximo para não dizer nada. Pois não estamos numa monarquia para saudar uma única realeza em cada gênero, muito menos em redutos a limitar o que é universal.

Apartada dos rótulos, a autora é uma das mais provocantes vozes da narrativa brasileira. A contar a estréia com O reino das cebolas (1996), já foi finalista do Jabuti, vencedora do Concurso Guimarães Rosa da Rádio France Internationale (1995) e do Prêmio Açorianos (1999). Coragem não lhe falta. Tratou com uma ótica expressiva o amor entre duas adolescentes na novela Duas Iguais (1998), avaliando o homossexualismo como resultado natural de uma verdadeira amizade. Isso sem perder de vista o contraponto social, a coerção circunstancial que o par de mulheres suporta ao longo da trajetória.

Queimadura
O terceiro livro, Anotações durante o incêndio (LP&M, 128 págs.) prova que seu posicionamento com a palavra é perene, além dos modismos e das fugazes revelações. Como afirma Moacyr Scliar, ela é hoje “uma contista completa”.

Dona de apurado senso de observação, a obra registra o estado da explosão afetiva, que corresponde metaforicamente às anotações durante o incêndio. Desde o título, remete ao papel de simultaneidade: durar enquanto se escreve. É um ato de resistência, que privilegia a captação em tempo real das pequenas tragédias e mazelas urbanas. Uma escritura que se impõe pela reflexão descritiva e análise dos comportamentos individuais em grupos, evidenciando o choque térmico das paixão sufocadas com a frieza das ilusões coletivas.

A coletânea de onze textos toca fundo na queimadura que se imaginava sarada. Critica a felicidade enquanto sinônimo de segurança, avessa aos improvisos e incertezas. Tal núcleo narrativo — que perpassa e interliga as histórias — flagra aqueles momentos em que tudo não sai como o planejado, advertindo que o incêndio começa das mais banais faíscas e conflitos familiares. Seus protagonistas estão indecisos entre a inércia estrutural e a vontade de assumir outros rumos. Encarnam a tensão dos dilemas, o momento de escolha e de ruptura da vida doméstica que julgavam perfeita.

“O homem que voltou do frio” tem o ritmo característico da agilidade cênica, intercalado pelos diálogos contundentes. O jovem filandês Edward decide aceitar o convite feito por gentileza  (e não por convicção) da amiga Ethel, que conheceu no exterior. Surge de inopino para ficar uns dias em sua casa e altera a rotina de um pacato e tradicional lar judaico. Edward, “ainda mais feio quando sorria”, é a contradição em pessoa: um protestante querendo o judaísmo, um turista procurando trabalho, um adolescente pretendendo o laço definitivo do casamento. A descrição dele como um inseto encaixa-se de modo perfeito, pendendo ao lado cômico de Mel Brooks e Woody Allen do que ao corrosivo Kafka. É o equivalente a uma mosca desengonçada que ronda as tradições e perturba o almoço dominical. Ethel se descobre em apuros diante do rigor da imagem paterna. “As perguntas lacônicas sempre eram as mais perigosas: me dava a corda, eu que me enredasse sozinha.” Os silêncios e as omissões intensificam o atrito. Ocorre com naturalidade a sobreposição dos pensamentos do pai com os da filha, possibilitando entender a situação por diferentes ângulos. É justamente a  vulnerabilidade do rapaz que interessa e que depois vai alentar a imagem em Ethel de uma paixão não correspondida.

Essa fragilidade, a sensação de pergunta sem resposta, é também uma das marcas do conto Do Amor, Corte e Costura. Nele, Helena recebe a visita de uma senhora para confeccionar um vestido a sua filha. Só que um deslize da agulha no braço da menina acaba gerando o pânico e desfazendo a minuciosa atmosfera profissional. Helena é questionada pela intencionalidade do movimento e falta de talento. Rompe-se a “cautela treinada”, abrindo espaço a uma lentidão nervosa, decorrente do medo ao imprevisível.

Moscovich acerta ao mostrar que o equilíbrio pode estar no desequilíbrio. A costureira identifica-se com a criança ao sofrer a opressão de sua mãe. Assume as dores da infância, colocando-se no patamar da interlocutora. “Ajoelhou-se diante da freguesa, ficavam assim da mesma altura.” Demonstra que a  força não significa esconder a fraqueza, mas reconhecer a legitimidade dela.

Solidão ameaçada
Os personagens da contista, na maioria femininos, estão armados com o que fere a eles, não aos outros. Estranho paradoxo. Instrumentos de trabalho, corriqueiros e inexpressivos, passam a atender a uma pulsão reprimida. Empunhando a agulha, a costureira personifica na menina a saída ao tédio do individualismo. Segurando o livro, a professora aposentada de A Gramática dos Erros observa no aluno, com dificuldades no ano letivo, a possibilidade de retorno ao convívio. Envergando uma vassoura, a figura do conto A Paixão e a Ratoeira despacha um rato de seu jardim e enfrenta a série de recalques. Ostentando uma matraca, Shmil de Aquilo que não principia nem acaba acolhe um vendedor ilusionista e troca seu objeto precioso pelo Livro de Areia. Localiza-se o mesmo fio condutor: sujeitos acomodados são ameaçados por outras representações de mundo, colocando em xeque os ideais adotados. A solidão, um tanto mascarada ao longo dos anos, desmorona com a aparição das visitas. Fúria e som em doses cavalares.

A Paixão e a Ratoeira é uma amostra dos extremos da vivência. Evoca A Paixão Segundo G.H de Clarice Lispector e, indiretamente, o formigueiro de Um Copo de Cólera de Raduan Nassar. À medida que cresce a matança do rato, aumenta proporcionalmente o desejo da algoz de encontrar a salvação nele. Quanto mais ele sobrevive, mais ela perde o controle e as convicções. E o rato, como a barata em Lispector e as formigas de Nassar, não morre com a morte, permanecendo introjetado como agressor. A realidade simbólica do bicho se mistura às suscetibilidades da mulher. “Era o sangue chupado para dentro da seringa”. Se o rato é sacrificado em nome do capricho com as flores, ela desponta como vítima da verdade, tomando consciência de suas frágeis fachadas e dos inúteis compromissos do cotidiano.

A escritora busca a perfeição dos sentimentos imperfeitos. Sabendo que o “gesto pode trair o amor”, restitui ao leitor a fidelidade antiga e saborosa dos contadores de histórias.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho