Podem até duvidar, mas eu conheci uma mulher que sabia como é o cheiro de Deus. Ela gostava de esperar pelas visitas debruçada na janela do pequeno apartamento em um daqueles conjuntos habitacionais da Cidade Industrial de Curitiba. Ficava ali, dez minutos antes da hora marcada pela visita, olhando o nada. E mexendo na papadinha. Mania que carregava desde pequena, quando via a mãe fazer pão de milho na cozinha do sítio em Santa Luzia, Minas Gerais. Vez ou outra, um piá passava cumprimentando. Pedia um geladinho (aquele sorvetinho caseiro feito de suco). Todo mundo sabia que ela sempre tinha alguns no freezer. A molecada ficava louca de felicidade. E ia brincar no parquinho, bem na frente do apartamento dela.
Conhecia todo mundo do conjunto pelo nome. Às vezes, ficava sentada no sofá ao lado da janela. Sabia quem vinha lá pelo jeito de andar, ou pular, no caso das crianças. E fechava os olhos, fingindo que dormia. “Oi, Renata”, dizia antes da menina colocar a cabeça pela janela aberta e balançar as longas tranças vermelhas. “Oi, vó…” Não era neta de verdade. Mas não importava. Ela gostava mesmo de pensar que tinha centenas de netinhos. Deixava seus dias mais alegres. Muito mais alegres do que quando assistia aos filmes do Mazzaroppi, seus favoritos.
Aí a visita se chegava. Também colocava a cabeça para dentro da janela e já ia largando todas as sacolas, bolsas, casacos que tinha nas mãos. Ela, a vó, dava um beijo na testa e saía da janela para abrir a porta, que nunca estava trancada (um dos netinhos postiços podia querer entrar, tomar um copo d’água, comer alguma coisa, ir ao banheiro…). E o rosto dela se iluminava, ao receber a visita. Qualquer uma. Porque adorava as pessoas.
A casa cheirava a comida. Sempre a preferida de quem ia fazer a visita. “Tá simples demais… Tem um arrroizim bem branquim, feijão, batatinhas afogadas (que eu deixei pegar no fundo porque sei que você gosta de rapar o tacho), peito de frango temperado só com sal, cebola e alho bem macetadim, saladinha verde com muito limão, filha. De sobremesa, melancia geladinha, que já cortei e tirei caroço”, ela dizia, caminhando miudinho, mexendo na papadinha e abrindo as tampas de todas as panelas no fogão de seis bocas para mostrar a comilança.
Era tão feliz, a vó. Nada abalava sua calma. Nada a deixava irritada. Lembrei dela ao ler O Cheiro de Deus (Objetiva, 406 págs.), de Roberto Drummond, porque têm muitas semelhanças. A vó que eu conheci e vó sobre quem eu li. Mas vocês querem saber da história de Drummond, que é escritor e famoso, creio. Então, conto. Vó Inácia Micaéla Furst de Stobhall y Cargill Drummond, queria sentir o cheiro de Deus. Era uma carioca que abandonou a vida boa do Rio de Janeiro para viver ao lado do marido (e tio) — o bravo João Antônio Drummond Neto, que virou Old Parr Drummond, em homenagem aos escoceses que tanto admirava. Foram viver no Contestado, uma terra de ninguém na divisa de Minas Gerais e Espírito Santo. Aos 65 anos, depois de passar por muitos desgostos nessa vida de meu Deus, ficou cega. Assim, de repente. Como se fosse uma personagem de Saramago. Foi aí que encasquetou em sentir o cheiro Dele. Dizem que só os cegos podem — do que discordo, porque conheci uma mulher que conseguiu a façanha com os olhos bons, protegidos por Santa Luzia, como já contei.
Tudo, no romance de Drummond, gira em torno da matriarca. Poderosa, forte, determinada. Com um caprichado sotaque carioca. Mas muito mineirinha. Mais até que o mineiro Old Parr, que por ser homem, era o chefe do clã (pelo menos até ele perder toda sua bravura e sentir medo das galinhas que ciscavam no terreno da casa da cidadezinha de Cruz dos Homens). Era ela quem dominava os dois corações do arquiinimigo dos Drummond, o terrível Coronel Bim Bim. Homem de pouco falar e muito agir. Com 48 filhos naturais e várias mortes nas costas — sempre anunciadas pela eterna apaixonada Júlia Preta que, com sua bela voz, cantava “Azulão” —, espalhava o medo pelo Contestado. Sua vida se resumia em armar tocaias para Inácia. Seu sonho é matá-la, cortar sua cabeça e pendurá-la no casarão de 28 janelas.
Só que Vó Inácia Micaéla era a única, em todas as Minas Gerais, que não temia os arroubos do Coronel Bim Bim. E o olhava no olho — motivo pelo qual acreditava ter ficado cega. Sabia que um dos corações a amava e o outro a odiava — o que, no fim das contas, era a mesma coisa: um amor louco e proibido. Desde que se encontraram na praça, Bim Bim querendo matar a tiros o irmão gêmeo, nunca mais tiveram sossego os dois corações do coronel e o único de Inácia Micaéla.
A família Drummond, inventada pelo escritor mineiro, é das mais interessantes. Não só a vó, que queria sentir o cheiro de Deus e conversava com um rifle (que chamava de irmão). Todos os filhos dela (os homens, sempre batizados com nomes de uísques), as filhas e netos. Drummonds enlouquecidos de amor. E invadidos, em um momento ou outro, pela febre do incesto. Que foi inaugurada por tia Anunciata, um fantasma que vive a vagar pelas linhas do livro, embebedando-se de bom vinho e xereteando a vida alheia. Tem tio casando com sobrinha, primos-irmãos apaixonadíssimos e até um amor platônico entre um casal de irmãos gêmeos.
Para explicar melhor: Inácia e Old Parr são os felizes pais de sete filhos — Viridiana, White Horse, Dolores, Johnnie Walker, Red Label, Rose e Dimple. Viridiana, a mais velha, foi a única a não se casar. Queria evitar a todo custo a febre do incesto que invadia a família Drummond. Mas era apaixonadíssima por João Manoel, o marido de sua irmã Rose. Que, por sua vez, morria de amores e sentia o corpo febril quando via seu irmão gêmeo, Johnnie Walker, que foi casado com Beth e era pai de Buchannan’s. Mas Johnnie Walker, suspeito de ser o lobisomem que aterrorizava as noites de lua cheia na pequena cidade de Cruz dos Homens, era apaixonado pela sobrinha Catula, filha de Rose. A sobrinha era a mulher mais linda das Minas Gerais. Tão linda que nenhum homem conseguia fazer amor com ela: quando os pretendentes a viam nua, ajoelhavam-se e rezavam. Além disso, Catula, que era branquinha, virava negra assim que uma frente fria vinda da Argentina se aproximasse daquelas redondezas.
Isso sem contar com os agregados, como as 5 Irmãs (Dodô, Dadá, Dêdeu, Dazinha e Dô), filhas do compadre Nico do Degredo (“nas ordis de Deus”). Diziam, lá no Contestado, que todas as cinco eram amantes do pai. Tal informação, no entanto, nunca foi comprovada. Para delírio de White Horse, que era apaixonado pelo quinteto. Havia ainda as Três Malditas — Catula, Gioconda (que perdeu um braço aos três anos, quando levou um tiro do Coronel Bim Bim), e Felipa (moça fraquinha, que ficou internada em um sanatório por 14 anos, para curar-se de uma tuberculose e apaixonou-se por um comunista fantasiado de padre). Ou a Anã Clô, que trabalhou em dezenas de circos, sabia falar dezenas de línguas e esperava por seu grande amor. E muitos outros personagens secundários com histórias das mais insanas.
Drummond (Roberto, o escritor) falou do que conhecia. Das brigas políticas entre o PSD e a UDN (que, na história, dividia o Contestado em dois), do jeito mineiro de ser, de falar. Das lendas. Usou seu nome de família para transformar a vida dos ancestrais em um romance. Na verdade, qualquer família dá boas histórias. Que nem precisam ser totalmente verdadeiras. Podem ter um floreio aqui, outro ali. Foi isso o que Drummond fez. Ele, aliás, já havia ensaiado um passeio por sua árvore genealógica em Hilda Furacão — e, em O Cheiro de Deus, cita muitos personagens do livro que virou minissérie na Globo.
A narrativa é simples. Ou melhor, tem uma linguagem simples. É cheia de idas e vindas — o que, em alguns momentos, torna a leitura um pouco cansativa. Sempre os assuntos mais interessantes têm uma prévia. Começam a ser contados, mas o melhor só é mostrado muito adiante. Não há segredos, portanto, que devam ser desvendados no final. E muito menos o final é surpreendente, como sempre adoram dizer por aí os críticos e as editoras e os leitores. É tudo muito simples. E fantasioso.
Quem conhece Minas Gerais, diz que lá tudo pode acontecer. Tem até extraterrestre famoso. Então não é de se duvidar que haja, mesmo, uma família que viva a febre do incesto. Que haja um lobisomem que fale latim com o padre, coma rosas no jardim e vire homem de verdade ao dar um beijo na mulher amada. Ou que seja uma terra tão acolhedora que até fantasmas ingleses se recusem a voltar para a Europa (nem que tenham um green card oferecido pela rainha Elizabeth II em pessoa). Ou que uma mulher cegue assim, sem mais nem menos, e queira descobrir qual é o cheiro de Deus, só para morrer feliz.
O autor — Por causa das tais idas e vindas na história e da imensa quantidade de personagens, o romance de Drummomd demorou 11 anos e 23 versões escritas à mão para ser lançado. O escritor nasceu em uma das mais violentas regiões de Minas Gerais, Santana dos Ferros (Vale do Rio Doce). E viveu cercado de lendas sobre mula-sem-cabeça, lobisomens e fantasmas. Colocou tudo nos livros. Sempre faz alguma referência aos personagens que povoaram sua infância, em todas as sua obras.
Estreou na literatura — depois de trabalhar como jornalista e cronista de futebol, nos anos 60 — com o livro de contos A Morte de D.J. em Paris, lançado em 1971. Depois, escreveu O Dia em que Ernest Hemmingway Morreu Crucificado, Sangue de Coca-Cola, Quando Fui Morto em Cuba, Hitler Manda Lembranças, Ontem à Noite Era Sexta-feira, A Inês é Morta e O Homem que Subornou a Morte. Mas o mais famoso de seus livros foi Hilda Furacão. Especialmente depois que foi para a tevê, protagonizado pela bela Ana Paula Arósio.