A morte nos atrai

A morte é a única certeza nesta vida. Puro paradoxo, sobre esta certeza, nada sabemos. Desconhecemos hora, local e maneira. Sabemos apenas que, um dia, vai acontecer
Lawrence Block: convite de cumplicidade ao leitor
01/09/2001

Se ia me apunhalar
Por que não o fez no escuro?
Pouparia-me a lembrança
Da crueldade em seus olhos

A morte é a única certeza nesta vida. Puro paradoxo, sobre esta certeza, nada sabemos. Desconhecemos hora, local e maneira. Sabemos apenas que, um dia, vai acontecer. Mais ainda intrigante, sobre a grande certeza da vida, não sabemos qual é a sensação, naquele exato momento. Se dói, quanto tempo leva e, grande mistério do universo, como é a vida após ela, a morte.

A morte nos atrai, literalmente. Mais do que a própria vida, é a morte que gera as maiores discussões, as maiores angústias, as maiores revoltas. Quem nunca morreu antes que o diga.

Ninguém nunca conheceu João e Maria. Maria trai João. Ou melhor, vamos ser politicamente corretos e eliminar o machismo. É João quem trai Maria. Ela não se conforma. Prefere morrer. Mas morrer sozinha não tem graça. Cadê o sentido da vingança se não levar junto o pilantra? Vai que ela encontra o safado no além. Ah, doce vingança: viu, canalha, me traiu com aquela pecinha, mas não ficou com ela. Aí, João percebe o quanto Maria o amava. A ponto de matar e morrer por ele. Pede perdão, ela aceita. E, juntos, morrem felizes para sempre.

Ninguém nunca conheceu João e Maria. Mas todos param para ver a manchete no lambe-lambe da banquinha: “Matou e morreu por amor.” Dramático. Chocante. Cenas do cotidiano. É, basta estar vivo. A morte nos atrai. Triste, lúgubre, fatalmente verdadeiro.

A morte é um grande filão. Do consagrado O Estrangeiro, de Albert Camus, ao mais recente Rei de Havana, de Pedro Juan Gutierrez, tudo começa e acaba em função da morte.

Os romancistas policiais são os que mais se aproveitam de nossa inquietação sobre esta grande certeza e mistério maior da existência. Na verdade, não são romancistas policiais. São fúnebres. O policial ali é um disfarce. Nosso anfitrião pelos meandros da morte. O policial ali somos nós. Entramos no livro por meio dele. É o leitor quem desvenda o crime, descobre o como e o porquê da morte. Travestimo-nos de policial para saciar a curiosidade mórbida.

Há algumas semanas fui, por alguns dias, Matthew Scudder, um ex-tira. Aceitei o convite de Lawrence Block para ser o protagonista de Punhalada no escuro (Companhia das Letras, 193 págs.). Além de passar o dia, e as noites, bebendo bourbon, faço pequenos bicos como detetive para arrumar alguns trocados para quando a garrafa esvazia. Charles London contratou-me para descobrir o matador de sua filha Barbara, morta há nove anos. Ele já havia superado o trauma da perda da linda filha, supostamente assassinada por um maníaco que fez uma série de oito vítimas, mulheres, à época. Preso agora, o serial killer confessou a autoria de sete mortes. Deixou de fora exatamente Barbara, caso para qual tinha álibi comprovado. Esteve internado no hospício no dia em que ela morreu.

A desgraça na vida do pai se reabriu. Outro detalhe terrível e confirmado sobre a morte: a dor de quem fica. A de quem vai, desconhecemos, mas a de quem permanece, vale o que diz o ditado: pior para quem fica. E o sofrimento é ainda maior conforme a causa da morte. Mais difícil do que aceitar um trágico acidente, é conformar-se quando há um culpado pela morte. A dor é maior quando há um homicida, doloso, culposo ou impiedoso. É uma dor misturada com revolta, um indisfarçável sentimento de vingança a perturbar até que o culpado seja punido e justiça se faça. Como se isto trouxesse o morto de volta, ou justificasse sua partida desta para… (a punição como vingança, e não como forma de não estimular mais crimes, é um sentimento tão mesquinho quanto o que acomete o assassino na hora da ceifa). Se o filho pula de pára-quedas e morre, o pai diz que morreu fazendo o que gostava, numa tentativa de auto-consolo. Se é atropelado, não há consolo enquanto não vir o motorista atrás das grades. Bobagem, egoísmo, auto-piedade. A morte é a morte.

O pai de Barbara já tinha aceitado a perda da filha. Encarara como um acidente de percurso numa metrópole violenta com um maníaco a cada parque. Agora, achava que alguém poderia ter matado Barbara por algum motivo. Queria saber quem e por quê. Pagou-me muito bem para descobrir isto. Não foi difícil encontrar uma pista. Se o pai desconfiava que alguém poderia ter algum motivo para tirar a vida de sua filha, é porque esta possibilidade era grande. O assassino foi ardiloso. Usou o mesmo procedimento do serial killer, várias estocadas e golpes nos olhos com um furador de gelos, para colocar a culpa no maníaco. A polícia engoliu fácil, não investigou como deveria e acrescentou mais uma vítima à série que deixava a cidade em pânico.

Com algumas perguntas aqui e outras ali, descobri os fatos básicos de sempre. A mulher era bonita. O casamento ia mal. Ambos, marido e mulher, traíam. O marido era o principal suspeito.

Mas, além da investigação, é preciso ter faro. Sentir quem está nervoso, quem está mentindo. O marido mostrou muito receio, mas sua história foi convincente. Insisti nas perguntas até que alguém caiu em mentira. Mas enganei-me achando que ele era o amante. Não. Era apenas um estranho que estava treinando para matar a própria mulher. Barbara fazia parte do aquecimento. Escolheu-a puramente por acaso. E satisfez-se com isso. Depois, não teve coragem de fazer o mesmo com a esposa. Minha descoberta foi para ele um alívio. Sofrera nove anos de terror, convivendo com a sensação do assassinato. Fez-lhe bem confessar-me o crime. Foi um desabafo. Sentiu-se tão redimido que acreditou que ficaria melhor ainda se admitisse a crueldade para a polícia e para a sociedade. No dia seguinte, acompanhou-me até a delegacia. Deixei-o com o olhar vazio por detrás das grades do sétimo. Antes de chegar em casa, passei no Armstrong’s e comprei um Wild Turkey. Abri a gaveta e avistei dois furadores de gelo. Um era todo de aço inox, mais comprido. O outro, mais curto, muito pontudo, empunhadura de madeira escura, como o encontrado com o serial. Enchi o copo sem gelo. Dose dupla. Fiz só um plano para a manhã seguinte antes de adormecer inebriado pelos acordes lamuriantes de Lucile em The Thrill Is Gone. Iria, logo que acordasse, dar uma passadinha na livraria. Parece que já chegou o mais novo Lawrence Block: Bilhete para o cemitério.

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho