É com essa irresistível declaração que o romance Adeus, princesa (Rocco, 228 págs.) da portuguesa Clara Pinto Correia se encerra. A Rocco traz o texto ao Brasil só agora, mas ele foi publicado pela primeira vez em Portugal em 1985. Aos 41 anos, a autora tem uma obra já volumosa que cobre uma diversidade de gêneros, passando pela ficção, pela poesia, literatura para crianças e jovens e até pela divulgação científica, já que Clara é pesquisadora internacionalmente conhecida da área da embriologia. Que não se pense que a provocação transformada em título aqui foi proferida pelo príncipe ou pela princesa da narrativa original. Se este romance pode ter princesas, todas destituídas de reinos encantados, certamente não tem príncipes, talvez sapos…
Na advertência que abre a obra, vemos descortinada a fórmula que a narrativa pretende abraçar, a do romance policial, mas um romance policial com coentros (!), aviso dirigido a estômagos sensíveis. Este não é o único conteúdo a ser depreendido, já que o narrador afirma o lugar da mentira como princípio articulador das verdades da obra e eleva a coincidência como única explicação para as semelhanças com o real. A crítica que recebeu a narrativa em Portugal viu nela mais que um romance policial e definiu a obra também como uma reportagem sobre o Alentejo (JL, Jornal de Letras, 12/10/1987). Reportagem ou não, na advertência o narrador declara que suas mentiras só poderiam ter mesmo se passado no Alentejo.
Dividido em quatro partes desiguais do ponto de vista da concentração das ações, Adeus, princesa possui canções alentejanas como grandes motes de cada segmento. A fórmula lírica canção se caracteriza por possuir uma estrofe inicial, que funciona como provocação ou antecipação do canto, e voltas, estrofes que desenvolvem o tema. No romance, é preciso mencionar ainda que, antes e depois das partes delimitadas para a resolução do caso, há extrapolações também precedidas por canções-mote: duas páginas que apresentam a motivação para o crime e duas que dão conta do destino do protagonista, cuja tarefa é desvendar a trama para a revista Atualidades. A primeira canção do romance é também o mote de toda a narrativa.
Os primeiros personagens a se apresentarem aos leitores são Mitó, Maria Vitória Joaquim Formosinho Rosado, 19 anos, e o namorado, o mecânico da base da Otan em Portugal, Helmut Schneider, 25 anos, assassinado de madrugada em plena estrada, a princípio por Mitó, depois por contrabandistas, como concluiu o inquérito da polícia. “Nunca pensei que fosse tão bom estar contigo”, foi o que cegou Mitó presa pelos braços do alemão sarcástico que a condenava ao aniquilamento emocional em uma escada às escuras, tomada ao mesmo tempo pelo pânico das surras do pai e pela paixão: “Quero e não posso esquecer-te/Devo odiar-te mas não quero/Sinto perder-me ao perder-te/Não tenho esperanças mas quero” (pág.13).
Para desvendar e registrar o caso do assassinato do alemão, a revista Atualidades, de Lisboa, destacou o estagiário Joaquim Peixoto e o experiente fotógrafo Sebastião Curto. Como as ações do romance não se desenvolvem em um tempo linear, depois da noite na escada, lemos o contato que se estabelece entre a dupla de Lisboa e a meia-tia da Mitó, a exuberante Bárbara Emília, ainda sem conhecermos as circunstâncias que nortearam a proposição da matéria. Estas nascem somente a partir de uma espécie de fenda psicológica do protagonista que se abre no meio do discurso de Bárbara Emília.
Para os dirigentes da revista Atualidades, agradar aos leitores era fundamental e a história da Mitó prometia os dois principais ingredientes: sexo e violência; toda a perversidade que dorme debaixo dos malmequeres (pág.23), além da dupla validade: uma mulher que mata um homem e uma portuguesa que mata um alemão. O romance vai girar em torno de temas, tais como a xenofobia, a desesperança que ronda a juventude alentejana, verdades e conseqüências. Aliás, é em um jogo de “verdades e conseqüências” que Mitó trava o primeiro diálogo com Helmut. No aniversário da amiga, caiu-lhe a tarefa de propor ao belo alemão da mesa do canto uma noite com ela. Sem suspeitar que ele falava português, caso raro entre os seus, que viviam uma vida complemente à parte na base, Mitó recebeu a resposta: “Quero, sim, princesa” (pág.59).
Ao chegar a Beja, a dupla de jornalistas descobre que a polícia havia concluído em um espaço de pouco mais de um dia que Mitó jamais poderia ter golpeado o alemão para garantir-lhe a perda dos sentidos, tê-lo arrastado até o cano de descarga do carro e ter amarrado pacientemente a sua cabeça à peça até que ele sufocasse. A polícia concluiu que certamente ele fora morto por contrabandistas e não por uma fraca rapariga, já que ele freqüentava um bar repleto deles. Desde o início, Sebastião Curto parece incomodado com a versão que garantia a liberdade à filha do dirigente do Centro de Trabalho do Partido Comunista Português de Baleizão, sobrinha do empreendedor do condomínio Quintas das Águias, também presidente do clube de futebol Águias de Beja.
É claro que à revelia do encerramento do inquérito, Joaquim Peixoto continua a ouvir pessoas e a visitar lugares, enquanto Sebastião Curto se demora em entrevistas noturnas com a dona de uma loja de doces. O estagiário conversa com o pai da Mitó, com o professor de Português da menina, com amigas de escola, com uma tia portuguesa de Helmut (a sua ascendência explica o bom português) e com algumas figuras importantes do local para entender um contexto de franca desilusão em que há poucos a lucrar e pouco a fazer. Em meio a tantas informações que só não conseguem fazer encaixar as peças do quebra-cabeça, a figura de Bárbara Emília se agita poderosa dentro do romance.
Casada com um propagandista que, segundo os homens da terra, deixava-a por demais sozinha, ela é na verdade quase uma irmã para a sobrinha e cúmplice em muitas noites em que Mitó fugia dos olhares dos pais para se encontrar com o alemão, nas noites em que ele aparecia e também nas muitas outras em que ele não julgava necessário comunicar a sua mudança de planos. Bárbara Emília fornece a Joaquim Peixoto um documento crucial para o entendimento do íntimo da menina, o seu diário. Pela leitura, o estagiário acompanha o desespero de Mitó frente à rejeição de Helmut, o seu desejo de matar o namorado e consegue compreender perfeitamente o que a jovem sentia, já que também fora desprezado por uma colega de trabalho. Bárbara Emília rapidamente se converte em elemento chave da investigação do estagiário, já que ela era a confidente de Mitó e sabia onde a menina fora escondida pelos pais depois dos acontecimentos. A medida que a narrativa avança, Joaquim Peixoto define que era preciso convencê-la a levá-lo até Mitó tanto quanto era igualmente necessário convencê-la a permanecer o maior tempo possível consigo.
Além de não obedecer a um plano temporal linear de composição, Adeus, princesa também se caracteriza pelo discurso indireto-livre. A todo momento, a voz do narrador se mistura à do protagonista e, com a inclusão do diário na cena, as vozes de Joaquim Peixoto, de Sebastião Curto (via recuperação dos seus impagáveis conselhos para lidar com as mulheres, sobretudo para lidar com Bárbara Emília), de Mitó e do narrador adensam o fluxo do discurso. É interessante perceber que Maria Vitória não é só símbolo da ficcional geração alentejana, delineada por personagens de todas as faixas etárias no romance, mas também do próprio protagonista, como ela: jovem, desiludido, triste e sozinho. O discurso indireto-livre aproxima o estado de espírito dos dois, ambos mantêm a expectativa pelo pior: ela só sabe o que perdeu e ele não sabe o que quer encontrar.
A distância entre as aspirações de pais e filhos também é marcante no romance e têm seus personagens emblemáticos: Bernardo, pai de Mitó, e a filha. A desilusão dos primeiros que se seguiu à manutenção do status quo depois das promessas não cumpridas da Revolução dos Cravos têm a correspondência na reação da juventude. Em pequena, Mitó ostentava o perfil da ceifeira rebelde que andava de trator no colo do pai, na juventude: “Mitó escondera-se no barranco com Mila e Tomás, Hugo trouxera um charro. (…) Olha o teu alemãozinho, Mitó, gritava Mila (…) Em Baleizão, Bernardo enfiava uma vez mais o papel na máquina, exºs srs. deputados. Helmut piscava-lhe o olho, diabólico, trocista. (…) Já recomeçava a descer a rua conversando com os outros, ela tentava não deixar tremer as mãos, e no primeiro andar do Centro de Trabalho da terra de Catarina Bernardo Formosinho Rosado (…) pedia aos deputados que viessem.”(pág.192).
O que é fantástico quando observamos o contexto que viu nascer o romance é que haviam se passado pouco mais de dez anos da Revolução, ou seja a narrativa apreendeu um instituído ainda incipiente para transformá-lo em instituinte extremamente problemático. É Marilena Chauí quem nos lembra que “como expressão, as artes transfiguram a realidade para que tenhamos acesso verdadeiro a ela. Desequilibra o instituído e o estabelecido, descentra formas e palavras, retirando-as do contexto costumeiro para fazer-nos conhecê-las numa outra dimensão, instituinte ou criadora” (Convite à Filosofia, Ática, 1994, 440 págs.). Por meio dessa transfiguração, a arte oferece uma nova oportunidade de conhecer o nosso mundo. A Revolução dos Cravos apontava promessas que o Alentejo ficcional de Adeus, Princesa não viu transformar-se em realização. Mesmo dentro do mundo ficcional, ele só representou algum interesse para a revista Atualidades de Lisboa quando a capital sentiu o cheiro do escândalo picante. No lançamento do romance no Brasil, Clara Pinto Correia falou a respeito da atualidade do seu romance e infelizmente apontou o agravamento das marcas que ele já trazia em seu tecido.
Além do abandono do campo, das suas causas e conseqüências, o romance desnuda a cruel transformação de crimes em apanágios dos vencidos. Matar o alemão se convertera para muitos na suprema vingança da opressão dos séculos. Aliás, quando pensamos no segmento que mais lamenta não ter sido Mitó a assassina vamos encontrar sobretudo mulheres, como Bárbara Emília e as colegas de escola de Mitó, que, na narrativa, primeiro tinham de suportar as surras dos pais para tolerar depois os desmandos dos maridos. É importante incluir Bárbara Emília que se casou para fugir dos comentários da vizinhança de que seria amante do irmão. Como a penúltima cantiga prenuncia “Para ser infeliz/Basta-lhe só ser mulher/Sempre nas língua do mundo/Esteja onde estiver/Se vai à festa é devassa/Se não vai é orgulhosa/Se quer ser religiosa/Dizem que é beata falsa (…)/Faça ela o que fizer/Em favor do seu bom porte/Falam dela até a morte” (pág.183).
Depois de muita insistência, Joaquim Peixoto consegue fazer com que Bárbara Emília o leve até Mitó. Da entrevista com a menina, o estagiário só comprova o estado de confusão emocional do diário. Para Mitó, ela havia assassinato Helmut, mas acabou convencida pela polícia de que não podia mesmo ter sido ela devido à sua franzina constituição física. O estagiário ainda insiste na incongruência da versão oficial, justamente frente à confissão da moça, mas é rendido pelo sofrimento de Mitó. Ao final do encontro, só consegue “elaborar um roufenho até qualquer dia” (pág.201), que escondia um sincero “E coragem, mocinha. Todos os males acabam por passar” (pág.201). Este encontro também oferece a oportunidade de Bárbara Emília mostrar o seu próprio sofrimento, até a revelação das desconfianças dos outros a respeito do seu relacionamento com o irmão, e sobretudo dá lugar à confissão mútua da atração que ela e o estagiário sentiam um pelo outro. Apesar disso, a despedida do casal é triste e sem futuro.
Na volta para Lisboa, Joaquim Peixoto acaba por se mostrar mais afeito à versão oficial. Neste momento, surge da constância nas lidas noturnas do Alentejo, um esperto Sebastião Curto a lhe abrir os olhos para o outro lado da versão oficial, que incluía os interesses de um influente Bernardo Formosinho Rosado, irmão do poderoso Carolino Rosado, sócio justamente do filho do chefe de polícia no moderno empreendimento das Quintas das Águias, que sabia das falcatruas dos dois para negociar o terreno do clube de futebol Águias de Beja para a construção do condomínio. Entre o brilho e a gratuidade da versão do fotógrafo, Joaquim Peixoto opta pela máxima “o que não se pode provar não existe” (pág.223) e abre a sua matéria com a máxima da sua vida e a da Mitó: “O que tem que ser tem muita força” (pág. 227). Na verdade, o estagiário só não esperava que esta força fosse chegar na Festa do Avante: “Bárbara Emília, tu tem cuidado com o que fazes. Tu entra, tu entra se tu quiseres, mas eu aviso-te, eu aviso-te, Bárbara Emília, se entras já não sais. Eu aviso-te Bárbara Emília, vê o que está fazendo. A carne é fraca” (pág.228).
Só resta descobrir a qualidade do molho…