Serei poeticamente incorreto. Aviso de cara. É regra não se falar dos contemporâneos para receber toda fama. Autofagia e narcisismo. Raramente um poeta consagrado cita os vivos e os novos em entrevista (assim como não é justo morrer para ser citado). A maioria se convence ao meio da vida que a sobrevivência literária requer panelas, patotas e torcida organizada. Daí que a literatura permaneça fechada nos mesmos astros de noites seculares.
Com o objetivo de debater e confundir, creio que o primeiro problema da poesia gaúcha reside no estigma da compensação. Como o futebol sulino, a garra costuma ser usada para explicar a falta de talento. A ambição é recebida como um defeito, quando ela consiste na única virtude capaz de transportar o leitor para outras paragens. O segundo está na resistência das gerações em admitir a dicção de sua sucessora. O terceiro, que reúne os anteriores, é a força que ainda persiste da síndrome “eles passarão, eu passarinho” de Mário Quintana. Mesmo depois de 95 anos de nascimento e sete da perda de Quintana, não se superou a ressaca e birra de fazê-lo ser reconhecido nacionalmente como lhe era de direito e de vê-lo com o fardão da Academia (não consigo imaginá-lo, por mais que eu tente). É como se o nosso paradigma popular fosse sempre questionado e considerado uma figura menor pela poesia brasileira. Acima da paranóia, o legado de Quintana é grande o suficiente para não depender da administração de herdeiros. Esse é o ponto. Não se precisa da bênção dele para assegurar legitimidade. Nem caberia reproduzir os quintanares como receita de sucesso, pois está vinculada a um outro tempo e cumpre sua função de comover em qualquer tempo.
A poesia gaúcha está se renovando? Sim, com a perspectiva de não provar nada que não tenha sido perguntado antes. Curiosamente a maioria dos novos poetas está saindo ao lume pelo Instituto Estadual do Livro, o que prova as dificuldades de acesso nas editoras comerciais do Rio Grande do Sul. No ano passado, houve a revelação de dois talentos de raro equilíbrio, Pedro Stiehl (Breviário profano) e Franklin Anagnostopoulos (A solidão conforme deve ser). Um outro exemplo recentemente publicado é Prosa (Instituto Estadual do Livro/RS, 136 págs.) de Eduardo Sterzi, que concilia tradição e agressão, assumindo o papel de interagir na linguagem e não fora dela.
Mitos
Eduardo Sterzi escapou do sotaque. Não se defende como gênero ou paradeiro geográfico, não demonstra culpa antes de nascer, não apela a terceiros para alcançar a condição primeira da criação. É poeta brasileiro desde a estréia, seguindo a universalidade de Nei Duclós que editou recentemente seu terceiro livro No mar, veremos (Editora Globo).
Dividido em cinco seções, Prosa já no título potencializa a hipótese da poesia estar fora do livro. É um jogo de aparências, o poema não existe como objeto, permanecendo em cena o sujeito poético à procura do verso. Como a busca é impossível, o autor recorre à sua negação, ao fundo narrativo. “Mísero te predico:/cante em prosa..” A premonição da obra torna-se a própria obra, que se perfaz na conduta interrogativa. Sterzi efetua a ligação do próximo com o distante, viabilizando a releitura dos mitos com doses de sarcasmo e desconfiança. Isso explica a índole programática, a visão de mundo que se justifica enquanto se desdobra.
Metamorfose
A ambição autoral é, portanto, encontrar um lugar ao poema (e não ao poeta).“Resignamo-nos/humanos,/à pretensão da/cicatriz.” A mesma pretensão perpassa os cantos, transmudada em “pretensão de nunca ser matéria” e, depois, em “pretensão da aspereza”. Nunca a voz é suficientemente saciada, avessa à imagem e à crença absoluta. A cobiça do indizível constata a impossibilidade de dizer, pois o que é escrito não dá “a garantia de ter vivido”. Da mesma forma, o que é vivido não fornece matéria-prima para o que está escrito. O poeta transita entre livros, entre mundos, evidenciando os contrastes. Talvez porque sabe que o difícil não é chegar nem partir, mas estar em trânsito. Encarna uma exigência verbal: quanto mais perde o poder declamatório, mais a palavra ganha força. Não o interessa instaurar um patamar ficcional, e sim mostrar onde a palavra está enterrada. Realiza uma biópsia lírica. Como bem define João Alexandre Barbosa no prefácio: “o que permite este sábio exercício de degradação é tanto o rigor compositivo dos versos quanto a ruptura do poético pela presença insidiosa da prosa que, sem deixar prevalecer os vestígios de um poético por antecipação, instaura, sobretudo pela ironia, uma outra, surpreendente e arriscada, poeticidade.”
Percebe-se uma teoria crítica clandestina nas rimas. A recusa é o que resta de afirmativo: “poeta:/o que não tem palavras.” Sterzi valoriza as ruínas como a forma possível de reconstituir a consciência civilizatória do homem, porque também somos o que destruímos. O escritor traça o diálogo com os mortos (Pound, Dante, Vírgilio, Celan, Rimbaud, Valéry), sem deixar de ouvir o lamento dos vivos. Não há a pressa da paisagem, tudo é meticulosamente pesado, contrapondo-se à corrente intuitiva, à “floração sentimental de uma rosa”. Faz a sensibilidade pensar, ao invés de pensar unicamente pela sensibilidade. Emprega o posicionamento de estrangeiro inclusive no erotismo, expresso nos poemas do quarto canto. Longe de significar separação, o exílio sintetiza o desconforto teórico.
Prosa tem um conjunto harmonioso, excetuando a última parte destinada a exercícios concretistas, que sinaliza a evolução de estilo e poderia ser facilmente dispensada. Para alguns, Sterzi vai parecer culto, cerebral e hermético, quando na verdade convoca os antepassados somente como impulso para entender de modo corajoso onde erramos. Tomado de “feroz delicadeza”, trata-se da representação fidedigna de uma época que fracassou como épica.
Dois estudos de história natural
Eduardo Sterzi
Estrela, supostamente mineral,
tão mais ardentemente animal –
seu fogo estrito, inextinto
fogo da matéria: pétreo, vivo.
Pedra, supostamente mineral,
tão mais verdosamente vegetal
quando a protege o quase líquido
agasalho denominado limo