O espectro anunciador

Um fato, carregado de significações, originou o poema de Bruno Tolentino
01/09/2001

Um fato, carregado de significações, originou o poema de Bruno Tolentino. Enquanto lia o filósofo Locke (depois, para afiar a linguagem e o sentido, o poeta escreveria Kant), à beira Tâmisa, percebeu a aproximação de um bêbado, certamente embriagado pelo Vinho dos Trapeiros, com uma manta e a cara “cuspida e escarrada” de Charles Baudelaire, aquele, o da foto famosa. Tal como escrevera o próprio no poema referido, tradução de Ivan Junqueira: “Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,/Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,/Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta”.

Em 1947, Vinicius de Moraes — que freqüentou a Universidade de Oxford, onde Tolentino exerceu a direção da editora de poesia em substituição ao poeta W.H.Auden — produzira Bilhete a Baudelaire, do qual se pode prefigurar o que seria ter diante de si o velho mestre: “Folheando-te, reencontro a rara/Delícia de me deparar/Com tua sordidez preclara/Na velha foto de Carjat”.

A Tolentino, o espectro de Baudelaire, como um pai, apresenta-se com as feições e o sobrenome que legou aos filhos diletos: “Há múmias que uma vez desembrulhadas/têm escrito na cara o nosso nome”. Outro pater noster, mais antigo, perfura os olhos do leitor na primeira visada: Dante Alighieri, em função da terza rima. William Blake, citado nominalmente, ressurge mais adiante na “rosa/amada pelo verme e sem poder/de o recusar”, tema de A Rosa Doente, de Canções da Experiência. O intelecto, “sempre ágil/ao fazer de um trapézio o seu lugar”, constrói a partir de Machado de Assis (Capítulo 2 de Memórias Póstumas de Brás Cubas): “pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro”.

Não fosse sobre Baudelaire, deixar-se-ia passar a indagação, mas Edgar Alan Poe, a quem tanto deve o simbolista parisiense, não sentiria sua alma próxima, independentemente da intenção do autor, de “e aquilo a se agitar que nem um cume/de palmeira no ar — e andando, andando/e desferindo o olhar como um perfume//de gangrena fatal ensarilhando/o eterno câncer da imaginação/que desorbita a mente como um bando/de morcegos agrava a escuridão”? E esta “palmeira no ar”, tão brasileira para quem está em terras britânicas, onde canta um Gonçalves Dias, nada teria com “A palmeira no final da mente”, verso que abre Of Mere Being, de Wallace Stevens, autor do agrado de Tolentino?

Em verdade, o poema é um encontro do poeta com a Poesia, metafórica e formalmente realizado, sob a égide de inúmeros precursores, sintetizados num só. Mas, repleto de sentido, não é um frio cabedal de referências. A aparição serve-lhe para refletir, numa espécie de epistemologia poética, sobre a verdade: “A terra é provisória e improvidente,/tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,/mas a alma faminta não consente/que lhe mintam!” Em desfavor de uma pré-estabelecida “luz conceitual” imantada das “perfeições da geometria”, que prefere encaixar a realidade nas paredes estreitas do conceito a modificá-lo — ou, na frase límpida de Millôr Fernandes, “trocar o fato pela versão” —, Tolentino faz um subentendido elogio da apreensão do real mediado pelo sensível. A poesia, diante do nada e da morte, torna-se, então, redentora: “o cisne aponta/para a altura cantando”.

Inédito, o poema pertence ao livro O Mundo como Idéia, que “haveria de me custar quatro décadas de atenção obsessiva”, a ser lançado pela Editora Globo: “longe de uma apologia, sob seu prosaico e altissonante título anuncia uma diagnose” em busca “das categorias do real” e “dos fundamentos do ser”.

Sidnei Schneider

É poeta e tradutor. Autor de Plano de navegação (poesia) e Versos singelos José Martí (tradução).

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