Poema de Bruno Tolentino

Leia o poema "O espectro"
Bruno Tolentino: acima do bem e do mal.
01/09/2001

O espectro

A Ivan Junqueira

Bruno Tolentino

Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa

à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.

Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem

que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor

fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave

levitou-se e mais nada lembra o vôo…
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,

com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante

fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia

surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim

à beira Tâmisa, ante um cemitério…
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,

qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,

arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio

obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração,
eu primeiro senti aquele olhar

antes de perceber a assombração
que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direção.

Atônito, amparei-me a uma mulher,
semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire

do retrato, cuspido e escarrado!
Ninguém via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado

ninguém notava aquele rosto idêntico
à corola da rosa corroída
em que Blake encarnara o sofrimento.

E lá vinha ele andando! Espavorida
mas alerta, habilíssima colméia,
a mente me exigia uma saída

e, assim como o avestruz ante a alcatéia,
insistia em não ver: não, não seria,
não podia ser ele, era outra idéia

a espumejar na velha alegoria
dos nevoeiros que complicam Londres…
Mas não havia erro! A ventania

havia depenado tanto as frondes
que atirava topázios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,

mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rápido olhar deixou-me em tiras

os trapos da razão — era o meu homem!
Há múmias que uma vez desembrulhadas
têm escrito na cara o nosso nome.

Carros, ônibus, gente nas calçadas,
um semáforo ao longe, vaga-lume
estático entre sombras apressadas,

e aquilo a se agitar que nem um cume
de palmeira no ar — e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume

de gangrena fatal ensarilhando
o eterno câncer da imaginação
que desorbita a mente como um bando

de morcegos agrava a escuridão.
Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez não…)

um balbucio familiar e cheio
de ecos aos que andamos pelo canto:
“Andaste num vazio sempre alheio,

entre noções apenas e, no entanto,
nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulação cheia de espanto,

de dor… Buscas o todo parte a parte,
queres as perfeições da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte

entregas tudo à fantasmagoria,
aos jogos malabares da ilusão.
Andas equivocado e nem seria

de surpreender tua equivocação,
porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudência, abriste o coração

à luz conceitual, o belo traste
que temes porque o adoras e te leva,
como o refém que és do que adoraste,

de lição em lição à mesma treva.
É tudo sempre a treva tumultuosa,
não por causa da carne, que se eleva

quando quer à estação miraculosa,
mas por causa do olhar que não quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa

amada pelo verme e sem poder
de o recusar, tentando resignar-se.
Não te resignes mais a conceber

um triunfo de idéias, um disfarce
para as caras da morte neste mundo,
uma equação qualquer que a mascarasse,

como o médico mente ao moribundo
e o coitado a si mesmo: também eu
meti-me com paixão nesse infecundo

escrínio de ilusões, mas vem do céu
a luz que nos sustém, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.

Não sigas mais a falsa peregrina
que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina

por desfazer de tudo a cada nexo.
A terra é provisória e improvidente,
tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,

mas a alma faminta não consente
que lhe mintam! A Idéia te convida
mas não recebe nunca e, de repente,

entre a porta da entrada e a da saída
perdes as proporções e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;

fecha-se a última jaula e a fera tonta
descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta

para a altura cantando, e com certeza
essa canção no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa

entre o número, o nada e a noite escura…”

Bruno Tolentino
Rascunho