Cantos da Amazônia que o Brasil desconhece

Há uma região do Brasil que permanece envolta em mistérios para a maioria dos brasileiros, a Amazônia
Em quatro volumes, Márcio Souza faz épico sobre a revolta separatista no norte
01/09/2001

Há uma região do Brasil que permanece envolta em mistérios para a maioria dos brasileiros, a Amazônia. E se o presente dela é praticamente desconhecido, quem dirá o passado deste enigmático pedaço de nosso país. Mas há autores que buscam jogar luzes sobre esta história, de um subcontinente que é conhecido por todos pela exuberância da natureza, mas de cujos homens pouco se sabe. Um deles é Márcio Souza, escritor manauara cuja obra está sendo relançada este ano pela Record, e que de quebra oferece um título inédito, a tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro.

Poucos se lembra que, em uma época que abrange o final do Brasil Colônia e a Declaração de Independência, o Pará — na época conhecido como província do Grão-Pará — e o Amazonas — que levava a alcunha de Rio Negro — já foram palco de grandes revoltas, e por pouco não se tornaram um país à parte. De lá veio a Cabanagem, um dos movimentos de separação mais fortes desta época, provocado principalmente pelo abandono em que a região ficou depois de ter sido uma das mais fortes aliadas do governo brasileiro durante a confirmação da independência.

A história oficial conta em sua maneira fria os acontecimentos destes tempos. Estão nos livros de história as datas, os personagens, os locais, os eventos e a seqüência de fatos. Faltava um autor, uma pessoa que traduzisse estes acontecimentos em um épico, à moda das grandes epopéias históricas. Faltava alguém que colocasse a Cabanagem — movimento revolucionário separatista surgido naquelas plagas — ao nível das pessoas comuns, de quem sofreu e viveu aqueles momentos na pele. Faltava, pois Márcio Souza veio preencher esta lacuna.

O autor já colocou no mercado os dois primeiros volumes da tetralogia, Lealdade (258 págs.) e Desordem (258 págs.). Revolta está sendo escrito por Souza e deve ficar pronto em outubro, seguindo para as livrarias em março de 2002. Derrota, livro que encerra a tetralogia, começa a ser escrito logo em seguida.

Souza conta que o tema já vinha o perseguindo a algum tempo. “Existia um vazio na história. Quando se refere à Amazônia do século 19, parece que todo ele se resume ao ciclo da borracha, que no entanto só acontece no final daquele século”, explica o escritor. Este vazio o intrigava. Quando houve a reestruturação do Arquivo Público do Pará, foi possível encontrar fontes históricas daquele período a que Souza se refere, situado entre o início das lutas de independência brasileira, em 1806, e a derrota final da Cabanagem, na metade do século 19.

“Quando eu percebi o que tinha acontecido, tive uma noção da tragédia que o Pará e o Amazonas sofreram”, acrescenta o autor. Com posse dos dados históricos, Souza partiu para uma recriação fictícia da época, tomando a realidade como base. A inspiração em Érico Veríssimo e sua obra prima O Tempo e o Vento, é óbvia, e o autor não nega isto. Pelo contrário, Souza dedica ao gaúcho as Crônicas.

Se a pretensão de Souza é utilizar-se do mesmo recurso de Veríssimo e recontar as histórias e a história do Grão-Pará e da província de Rio Negro, ele tem sucesso. As ferramentas utilizadas pelos dois autores são as mesmas. Uma recriação precisa do quadro histórico local, entremeada pela invenção de personagens fictícios, porém determinantes do futuro daqueles estados, com farta distribuição de diálogos que nunca foram presenciados, mas que devido ao apuro com que são cuidados, parecem mais verdadeiros que a própria verdade.

Tudo somado torna Crônicas uma obra deliciosa de ser lida, principalmente por quem gosta da literatura histórica, e mais ainda da História do Brasil (com h maiúsculo). Talvez os puristas das letras critiquem o excesso de coloquialismo, ou vejam como exagerado o recurso do flashback utilizado nos dois primeiros livros. Paciência, a academia parece ter um pouco de pânico dos livros de fácil leitura.

No primeiro volume, Lealdade, acompanhamos mais de perto a vida de Fernando Simões Correa, um militar nascido na colônia portuguesa do Grão-Pará. Fernando estudou em Portugal, mas os vínculos afetivos com Belém e a selva que a circunda, transmitidos especialmente por seus pais, acabam por conduzi-lo ao topo do movimento que lutará contra o domínio português.

O início da história se dá em 1823, quando eclodem os movimentos de confirmação da independência brasileira. O núcleo português que vive no Grão-Pará, temeroso de perder seus privilégios, luta encarnecidamente por impedir a separação. Quando ela vem, logo após estar certificado que D. Pedro I nada mais era que um novo nome para os mesmos vícios e práticas governamentais, estes portugueses se juntam ao governo brasileiro para impedir a seção do Pará. A derrota dos separatistas levará o Pará ao abismo econômico, resultando muitos anos depois na cabanagem.

O segundo livro, Desordem, traz dois personagens principais. Em primeiro lugar vem Anne-Marie de Presle Senna, francesa amante de Fernando Maria que, por desgraças do destino acaba se tornando uma observadora privilegiada dos anos de revolta paraenses e amazonenses. Ao mesmo tempo, vemos com mais detalhes a participação do cônego Batista Campos, líder rebelde, espiritual e intelectual das massas que mais tarde dariam origem à Cabanada.

Enquanto no primeiro livro vemos o relato de um Fernando relembrando os fatos descritos, o segundo livro brinca com o leitor ao alegar uma suposta veracidade aos escritos. Segundo Souza, tudo o que será dito ali foi resgatado de um manuscrito de autoria de Anne-Marie, cuja veracidade é confirmada por alguns estudos universitários. O jogo de criar fatos e referências joga o leitor na dúvida se está lendo uma obra de ficção ou uma verdade histórica. Isto torna a leitura ainda melhor.

Os detalhes dos dois volumes publicados são todos falsos, mas o clima que transparece nos dois volumes já publicados é provavelmente o mesmo. Os detalhes parecem tão reais e verossímeis que José Castello, comentando o livro na revista Bravo!, chega a dizer que “o autor, infelizmente, se ateve muito à história”, em especial no segundo volume. Souza achou engraçado o comentário do colunista, pois todo seu livro é rigorosamente falso, ainda que baseado em fatos reais.

A redescoberta da Amazônia não é tema novo para Márcio Souza. Natural de Manaus, ele comenta que este é um tema preferido para ele, embora não o único. Sua estréia literária aconteceu em 1976, com a publicação de Galvez Imperador do Acre (220 págs.), relançado agora pela Record. Novamente, Souza recria em ficção a história oficial, no caso a efêmera república que existiu no Acre, antes da sua anexação final pelo Brasil.

Para quem conhece heróis pícaros como Dom Quixote de La Mancha, conhecer a história do andaluz de Cádiz, Espanha, Dom Luiz Galvez Rodrigues de Aria é um privilégio. Na imaginação de Souza, Dom Luiz foi o imperador por breves meses do Império do Acre, uma aventura folhetinesca no coração da floresta amazônica brasileira.

A história é contada em primeira pessoa de maneira dupla. Primeiro, é o autor que conta ter encontrado os manuscritos de Dom Galvez em um sebo no Boulevard Saint Michel, em Paris. Segundo, é o próprio Dom Galvez, que escreve suas memórias moribundo, pouco antes de morrer. A justificativa para os dois sujeitos, segundo o autor, é para diminuir as mentiras ou exageros contados pelo espanhol.

No entanto, não há como não se deixar levar pela imaginação fértil do priápico Galvez. Exilado, segundo ele próprio diz, na cidade de Belém, por motivos de infidelidade extraconjugal (nunca dele, mas das mulheres com quem se deitou, geralmente esposas de nobres orgulhosos e raivosos de terem virado cornos), Galvez recomeça lentamente a vida como jornalista, já aos 39 anos de idade.

O norte brasileiro vivia a época da euforia do látex, ou melhor, das benesses do ciclo da borracha. O dinheiro corria aos borbotões, e a vida pouco valia. As farras eram intermináveis, pois um tolo e seu ouro logo se separam, já diz o ditado, e o dinheiro trocava de mãos tão rapidamente quanto Galvez de parceiras. Em meio a este grande bacanal amazônico, um grupo de pensadores planeja um ato de rebeldia: declarar o Acre um império independente, e posteriormente, anexá-lo ao Brasil. O motivo para tal insurreição é a descoberta de um plano secreto do governo americano, que pretendia que a Bolívia anexasse o território acreano, para cedê-lo em usufruto aos Estados Unidos.

Galvez cai na história por acaso, literalmente. Uma noite, o andaluz transava com uma cabocla. Quando o marido dela chega, Galvez agarra algumas roupas e pula pela janela do edifício. Ele acaba caindo sobre três pessoas, que estavam prestes a matar o representante da Bolívia, Luiz Trucco. O boliviano passa a considerar o espanhol seu amigo, e esta relação será a principal razão para que os três quase assassinos convidem Galvez para participar de seu plano revolucionário. Galvez aceita o convite, devido a uma razão muito forte (para ele): Cira Chermont de Albuquerque, a mulher mais inteligente de Belém à época, e coordenadora intelectual do grupo que desejava a independência do Acre.

Como qualquer herói que não tem domínio de suas ações ou de seus objetivos, Galvez vai sendo empurrado meio contra a vontade até os confins do território brasileiro, o Acre. No meio do caminho, arrebanha um exército cuja principal motivação era o álcool, e um grupo de coristas francesas que o acompanha desde Belém, que servem principalmente como agentes de contra-informação, e parte com o grupo de mambembes e maltrapilhos para dominar o estado que, à época, representava a principal origem da borracha do Brasil.

Com habilidade, o escritor vai alternando explicações tiradas da Enciclopédia Britânica sobre a borracha, sobre o Acre, sobre a Floresta Amazônica e o ambiente do norte do Brasil com dados verdadeiros da história daquele período e com a história fictícia de Galvez. Na vida real, o Acre foi o centro de conflitos territoriais entre o Brasil, a Bolívia e o Peru no final do século 19 e o início do século 20. O principal motivo era a exploração do látex e a ocupação do território por refugiados nordestinos, principalmente cearenses, que abandonavam seus estados de origem devido à seca (desde aquela época). A disputa só se encerrou em 1903, com a compra pelo governo brasileiro do território acreano, por dois milhões de libras esterlinas, pagas a Peru e Bolívia. Os atos narrados por Souza acontecem em 1899 e 1900.

Para deixar bem claro ao leitor que o real se mistura com o imaginário na floresta amazônica, Souza usa o expediente de quebrar o texto em pequenos fragmentos, cada um com um título. Assim, lê-se a história de Galvez, o Imperador do Acre, como se estivéssemos lendo um romance de folhetim, que a cada dia trazia um capítulo novo de uma história já conhecida. “A intenção é resgatar um grande momento da literatura brasileira, que teve grandes nomes neste formato”, explica Souza. A inspiração para a quebra dos títulos veio de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

Confesso que não li outras obras do autor. Mas o aperitivo dado com estes três livros servem como um belo incentivo para o que está por vir, seja em forma dos dois volumes que faltam de Crônicas, seja pela reedição de outros livros. À espera, pois.

Um autor contra a burocracia
Márcio Souza ficou dez anos afastado do mercado literário, segundo nos informa a Record, sua atual editora. Formado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Márcio Gonçalves Bentes de Souza bate de longe tristes figuras que nos vêm da Amazônia, em especial os políticos que hoje figuram nos noticiários, como Jáder Barbalho, criador de rãs e fraudes, Amazonino Mendes, governador e desmatador, entre outros menos notórios.

O atual presidente da Fundação Nacional da Arte (Funarte) nasceu em Manaus, no dia 4 de março de 1946 e sempre se interessou pelas artes e, aos 18 anos, já trabalhava como crítico de cinema no jornal O Trabalhista. No mesmo ano, participou da fundação do Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas. No ano seguinte, se dividiu entre a função de crítico de cinema — dessa vez para O Jornal — e a produção cinematográfica: realiza o filme experimental Rapsódia Incoerente. Polivalente, Márcio de Souza ainda assume o cargo de Coordenador de Edições do Governo do Estado do Amazonas.

Em 1966, participa da Oitava Bienal de São Paulo, com o filme Prelúdio Azul e arrisca os primeiros passos no mundo das Letras com o livro O Mostrador de Sombras, sobre crítica cinematográfica. Com o passar dos anos, Márcio continua se dividindo entre o jornalismo, o cinema, a literatura, a vida pública e ainda encontra tempo para se dedicar ao teatro, onde escreve e dirige peças como O pequeno teatro da felicidade e O elogio da preguiça e participa do III Festival Nacional de Teatro, em 69. Dois anos depois, escreve o roteiro do curta-metragem O país do futebol, de Hector Babenco.

Assume em 1976 o cargo de diretor de planejamento da Fundação Cultural do Amazonas e, em 77, se torna colunista semanal do suplemento cultural Ilustrada, do jornal A Folha de S. Paulo, cargo que ocupou até 1984. Foi, também, diretor do Departamento Nacional do Livro, da Fundação Biblioteca Nacional, antes de assumir a presidência da Funarte, em 1995. “Meu principal objetivo agora é lutar para manter o espaço da minha obra, e não morrer sufocado pela burocracia”, explica Souza.

A sua troca pela Record deu-se quando o autor, ao assumir a Funarte, saiu da sociedade que mantinha com amigos na Editora Marco Zero. “Eles trocaram o foco da editora, saindo da ficção. As amizades que tinha com o pessoal da Record ajudaram na hora de escolher a nova casa. Foi ótimo”, explica Souza.

Do autor também temos Breve história do Amazonas, A caligrafia de Deus, Operação silêncio e O empate contra Chico Mendes, entre outros. Ex-professor da universidade de romance brasileiro contemporâneo na Universidade de Berkley, na Califórnia (EUA), Souza dá cursos e seminários por todo o Brasil e no exterior.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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