O fim está próximo, acautelai-vos!

Às 9h48 de 11 de setembro (horário brasileiro), uma linda manhã de sol do verão norte-americano, um avião se chocou contra uma das torres gêmeas do World Trade Center
01/10/2001

“E, havendo aberto o sexto selo, olhei,
E eis que houve um grande tremor de terra;
e o sol tornou-se negro como saco de silício,
e a lua tornou-se como sangue;
E as estrelas da céu caíram sobre a terra,
como quando a figueira lança de si os seus figos verdes,
[abalada por um vento forte.”

(Apocalipse segundo São João, cap. 6, v. 12-13)

Às 9h48 de 11 de setembro (horário brasileiro), uma linda manhã de sol do verão norte-americano, um avião se chocou contra uma das torres gêmeas do World Trade Center. Um desastre de proporções inimagináveis, pensaram os nova-iorquinos que acordavam para ir ao trabalho. 18 minutos depois, porém, o pesadelo se tornaria pior do que qualquer sonho de escritor de ficção. Um segundo avião se choca contra a segunda torre. Quase uma hora depois, às 10h43, para ser mais preciso, um terceiro avião cai sobre o Pentágono, em Washington. (A título de registro, a primeira torre desabou às 11h05, e a segunda às 11h30.) Não poderia haver sinais mais claros: o apocalipse começou, e seus sinais vieram do céu.

Talvez esta seja uma visão atualizada do apocalipse, em que as “bolas de fogo” imaginadas por tantos e tantos profetas na antigüidade sejam hoje modernas aeronaves, com mais computadores a bordo que o mundo inteiro há 30 anos. No entanto, a situação não passa de uma modernização das antigas profecias, de que a fúria divina virá dos céus, e que invariavelmente caem pegando fogo. Por que será que os primeiros sinais do início do fim virão do céu?

Esta é uma das perguntas que Marcelo Gleiser, físico brasileiro radicado nos Estados Unidos, pretende responder em O fim da Terra e do Céu — O Apocalipse na Ciência e na Religião (Companhia das Letras, 336 págs.). Gleiser é um dos cientistas do tema mais conhecidos no Brasil, graças a seu livro anterior, A Dança do Universo, e pelo seu trabalho de articulista em veículos da imprensa nacional. Além disso, e principalmente, ele é conhecido pela sua linguagem de fácil acesso, com a qual os conceitos mais difíceis da ciência são “traduzidos” em imagens do cotidiano, o que os tornam compreensíveis aos comuns mortais.

As antigas religiões (e talvez as novas) tentavam explicar aos homens os fenômenos incompreensíveis da natureza. Não por acaso os povos mais primitivos (na concepção ocidental) atribuem um deus a cada fenômeno natural. O trovão pode ser Thor para os nórdicos, Zeus para os gregos, ou Júpiter para os romanos. Não apenas fenômenos naturais, mas também a caça (Artemis), a guerra (Marte), o vinho (Baco e Dionísio) e o comércio (Hermes) tinham seus deuses. Para povos que tinham conhecimento limitado dos mecanismos celestiais, o que dizer de cometas, meteoros e meteoritos?

Há poucos registros escritos sobre o impacto destes viajantes celestes na Terra. Da memória recente dos terráqueos, só há registros do meteoro de Tunguska, na Sibéria, que em 1908 deixou um rastro de destruição nas estepes. De sinais do passado, ainda sem o testemunho de olhos humanos, temos o cometa de 10 quilômetros de diâmetro que caiu perto da Península de Yucatán, no México, 65 milhões de anos atrás, e que provocou o início da extinção dos dinossauros, e a Grande Cratera, um buraco de dois quilômetros de diâmetro no deserto do Arizona, nos Estados Unidos, com 50 mil anos de idade.

Talvez as crateras deixadas por estes astros celestes tenham impressionado os povos antigos. O fato de eles sempre descerem dos céus acompanhados de um rastro de fogo também deveria impressionar os olhos antigos. A ciência moderna, no entanto, consegue tirar a graça e a poesia das coisas, dizendo que é apenas “a fricção pela entrada na atmosfera terrestre”. Bom, os antigos não sabiam disso.

Gleiser explica que, como a maioria dos povos colocava os deuses no céu, ou muito próximo dele (o Monte Olimpo, na Grécia, por exemplo), todos os castigos que se abateriam sobre os homens também viriam do céu. Isso aliado ao pouco conhecimento da mecânica celeste dava origem a diversas interpretações dos fenômenos.

O cometa Halley, por exemplo, sempre foi relacionado a catástrofes inimagináveis. No século passado, em 1910, não foram poucos os espertos que faturaram um bom dinheiro vendendo máscaras contra os gases letais da cauda do cometa, que entraria pela atmosfera. Se bem que, em 1986, quando o Halley voltou, algo muito mais venenoso invadiu a Terra: a infame e, graça aos céus, legada ao ostracismo, Família Halley, conjunto de bonecos, brinquedos e histórias em quadrinhos que empacou em todas as lojas do mundo.

Os livros religiosos apocalípticos, segundo Gleiser, também deixavam muita margem para a interpretação dos fenômenos celestes como sinais do fim de tudo. As muitas imagens citadas nestes livros, talvez inspiradas pelos próprios fenômenos, relembram sempre uma idéia de julgamento final, de que deus queimará os impuros e poupará os justos, que o “fogo virá dos céus” (esta imagem é tão recorrente que pode dar idéia de uma fonte comum para os textos apocalípticos), e por aí vai.

O início do livro de Gleiser é muito bom. De maneira simples — o autor já diz no prefácio da obra que resumir toda a questão em um livro seria simplificar demais um tema complexo — ele estabelece as ligações entre os fenômenos e a religião, partindo de Aristóteles, na antiga Grécia, até os tempos modernos. E a explicação mostra porque, na maior parte dos casos, o apocalipse final viria dos céus, na opinião das religiões.

O contraponto às visões de fim do mundo vem com os diversos exemplos, tanto na Terra como em outros planetas e galáxias, de que a destruição pode significar a criação. No nosso caso específico, o cometa de Yucatán proporcionou a subida ao posto de raça dominante do homem no lugar dos dinossauros. Ou seja, sem a destruição do cometa não estaríamos aqui, provavelmente, já que eles reinaram sobre a Terra por mais de 100 milhões de anos, e não havia indícios de que abdicariam do trono.

De um início empolgante, o livro vai perdendo força na segunda parte. Gleiser explica como o estudo do cosmos atualmente se confunde com os princípios da física quântica, pois o início de nosso universo acaba sendo a análise do muito pequeno. E a partir desta análise ele conta até onde vão as explicações atuais para fenômenos como supernovas, anãs brancas, marrons e vermelhas (estrelas mortas), buracos negros e outros tipos celestes. No entanto, Gleiser parece esquecer o propósito inicial de juntar religião e ciência, e estabelecer as ligações. Seu discurso acaba prejudicado por uma auto-imposição, a de diminuir ao máximo a complexidade do assunto para se fazer entender pelo leigo, o que prejudica as explicações.

Outro pecado menor de Gleiser é não explicar as origens dos textos apocalípticos, ou melhor, porque as diferentes religiões em todo o mundo adotaram visões de final dos tempos em que, sem exceções, os justos e fiéis serão premiados e os infiéis condenados à danação eterna. Mas o pecado é menor pois Gleiser não se propõe a fazer isso, seu objetivo é apenas estabelecer pontos de semelhança entre ciência e religião, e dizer que ambas, a seu modo, buscam responder as mesmas perguntas: de onde viemos e para onde vamos.

Em termos de religião, vale a pena ler um livro de um expert no assunto, o inglês Norman Cohn. Com mais de 50 anos de pesquisa, e sempre tendo como objeto de estudos a religião, Cohn teve publicado em 1993 Cosmos, Caos e o Mundo que Virá — As Origens das Crenças no Apocalipse, que foi traduzido para o português em 1996, com lançamento da Companhia das Letras. O livro é simplesmente maravilhoso, principalmente para quem gosta de estudar as religiões, e ter leituras tanto históricas como simbólicas dos textos religiosos.

(A propósito, em tempos de intolerância religiosa, vale a nota. As três grandes religiões monoteístas do mundo, cristianismo, judaísmo e islamismo, têm o mesmo patriarca, Abraão. Os judeus dizem ser descendentes de Isaac, o filho de Abraão com Sara, sua esposa. Os muçulmanos já acreditam ser descendentes de Ismael, filho de Abraão com Ágar, sua escrava, que foi “conhecida” pelo Patriarca antes do milagre que devolveu a Sara a fertilidade. Os cristãos, por fim, acreditam que Jesus é o Messias enviado por Deus, descendente de David, por sua vez descendente de Abraão, que para os judeus e muçulmanos seria apenas mais um profeta. Todos primos, próximos ou distantes, mas primos.)

Cohn inicia seu livro comentando a origem das religiões monoteístas, dedicando especial atenção ao zoroastrismo. Para quem não sabe, esta é a religião dos seguidores do profeta Zoroastro, ou Zaratustra, depende da grafia romana ou grega. Ele foi o primeiro, em um determinado momento da história, a criar uma religião baseada em um único deus. Até então, todos os povos eram politeístas. Segundo Cohn, o zoroastrismo influenciou sobremaneira as outras religiões, inclusive o judaísmo, que só se firmou como religião monoteísta após o êxodo do Egito, e por uma necessidade estratégica política, a de resistência. Os judeus eram constantemente ameaçados por outras tribos mais fortes na região do Oriente Médio, e tinham na religião o amálgama que os unia.

Na interpretação de Cohn, as visões do apocalipse surgem em conseqüência direta dessa perseguição, cada povo a seu tempo. Como manter unida uma nação assolada por diversos inimigos externos? O apocalipse, o final do mundo, interpretado como um julgamento do deus em questão, seria o fio condutor da união do povo. Nesse julgamento, o deus premiaria aqueles que em sua vida foram justos e corretos, e primaram pelo cumprimento de seus deveres religiosos. Já os incréus iriam direto para o inferno.

Essa premissa garantia a união, ou melhor, a submissão do povo a certos ditames, garantindo uma massa integrada de pessoas. Além disso, a visão de uma recompensa posterior fortalecia os ânimos dos fiéis contra um possível estado de repressão, que sempre seria momentânea. Não por acaso, o Apocalipse de São João, último livro do Novo Testamento, tem suas origens por volta de 90 d.C, 20 anos depois da destruição do Templo de Jerusalém, um dos símbolos da perseguição dos romanos aos judeus e cristãos, que na época ainda não estavam claramente separados.

Falta a Cohn, no entanto, um fator que Gleiser soube explorar em seu livro. Quando o cosmólogo brasileiro relaciona os fenômenos celestes ao apocalipse, ele faz uma lista de casos recentes de seitas apocalípticas que levaram muitas pessoas ao suicídio. Entre as seitas relacionadas estão a de Jim Jones, que provocou a morte de 913 pessoas em um suicídio coletivo na Guatemala em 1978, os 73 homens mortos pela polícia americana em Waco, Texas, em 1993, e mais recentemente o suicídio de 39 membros da Ordem do Portão Celeste em 1997, que acreditavam ser o cometa Hale-Bopp uma espaçonave que os conduziria ao paraíso.

Ler ambos os livros nos permite ter uma compreensão melhor do mundo em que vivemos. Eu arriscaria dizer que sua leitura ajuda e muito a compreender que somente a ignorância é capaz de relacionar concretamente os fenômenos celestes com os relatos apocalípticos, pois estes não se referem a datas ou fatos específicos, mas sim a visões alegóricas de nosso mundo, cuja leitura não deve ser nunca como a de um oráculo pré-definido. Pois que o mundo acabará, é líquido e certo. No entanto, achar que o atentado terrorista aos Estados Unidos seja o primeiro sinal de deus (qualquer um deles) do final dos tempos é errado. Na minha opinião, é o primeiro sinal que seremos nós humanos que destruiremos o mundo.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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