O surrealismo como antídoto

Entrevista com Claudio Willer
Claudio Willer: “o surrealismo é um instrumento de combate”
01/10/2001

A poesia como um grito da mente, vertigem visionária, fronteira tênue entre a sanidade e a loucura, como na experiência onírica do xamã. Para Claudio Willer, um dos expoentes do surrealismo no Brasil, a poesia não é apenas um arranjo floral de palavras, mas a vivência radical do insight e do sonho, construção de novas realidades e de novos sentidos para a vida, que se confunde com a obra de arte.

• Qual é o sentido de escrever poesia hoje, numa sociedade regida pela mídia e pelo mercado?
Precisamos ser claros ao usar a expressão “hoje”. Hoje é quando? Há 150 anos, Baudelaire já transmitia a idéia do poeta como ser à parte, isolado e marginalizado na sociedade de massas, o albatroz obrigado a levar vida pedestre, como naquele poema de As Flores do Mal, e em tudo o que ele escreveu sobre a vida na metrópole. A contradição poesia/sociedade (sociedade burguesa, industrial, pós-industrial, de massas, de mercado, midiática, o que for), já foi claramente estabelecida no Romantismo, e não mudou em sua essência, a não ser pelo fato de a sociedade burguesa, hoje, ser menos fechada, mais permeável. Por exemplo, você não tem censura direta, não toma processos por escrever poemas — e este é um avanço recente. Aliás, sempre houve, na civilização ocidental, tensão entre poesia, descontado o beletrismo eloqüente, e sociedade — basta lembrar que Camões foi em seu tempo criticado, excluído, visto com desconfiança por suas inovações, e só depois convertido em nosso autor mais canônico. Isso, entre tantos outros exemplos.

• Sim, podemos considerar que esse “hoje” começou em 1789, quando o Bispo e o Rei cederam o assento ao fabricante de vinhos ou cortiça e aos futuros especuladores financeiros. Nesse período, que evoluiu da guilhotina à Internet, surgiram diferentes idéias sobre por que fazer poesia. Para alguns, ela é uma ferramenta para mudar o mundo; para outros, é um severo exercício estético, que se justifica na própria escritura; alguns querem que a poesia altere o comportamento social, influencie outras mídias ou o idioma, e outros acham que a poesia, realmente, não serve para nada. Em sua opinião, por que escrevemos poesia, atividade que consome tempo, inteligência, esforço e que não interessa a quase ninguém, além de nós mesmos?
Exatamente. Romantismo é um produto da mesma configuração de que faz parte o Iluminismo. Um de seus componentes. Possível a partir do momento em que destamparam a panela — que aliás continua sendo destampada, o processo não se encerrou, e nele a rebelião individual desempenha um papel decisivo — com a queda dos absolutismos e do poder temporal da Igreja. Queda dos absolutismos, não — redução considerável, não simplifiquemos as coisas. Poesia consome tempo? Pois então, é um bom modo, bem prazeroso, de consumir tempo. Olha, se poesia não me proporcionasse um certo nível de prazer, de satisfação pessoal independentemente de resultados como a repercussão, eu não mexia um dedo sobre o teclado ou segurando a caneta para fazer isso. Em segundo lugar, “nós mesmos” é bastante gente. Dirigimo-nos a pessoas que partilham um código, ou um mesmo repertório, sei lá. E, é evidente, a poesia se projeta, tem um resultado exterior à subjetividade do autor, embora saia de dentro dela. Em caso contrário, seria um solipsismo, escrever para o próprio umbigo, para sua imagem no espelho. Seria paranóia aguda, galopante, alguém se pôr a escrever para ser Dante, Camões ou Baudelaire, isso, citando exemplos mais evidentes de autores cuja poesia se projetou, constituiu cultura, portanto, produziu realidade. No entanto, concordo, tanto quanto concordava a primeira vez que o li, décadas atrás, com o trecho de Octavio Paz, em O Arco e a Lira, em que ele diz que a poesia, sendo histórica, produz história.

• Como é o seu processo criativo? A escrita automática, método de composição do surrealismo, ainda é válida?
Claro. Com a ressalva que Aragon já havia feito no Traité du Style, nos anos 20, de que um imbecil, se fizer escrita automática, irá escrever imbecilidades. Procedimento algum, em si, garante nada. Mesma coisa que com alucinógenos, conforme já repeti inúmeras vezes: o fato de Henri Michaux ter produzido obra importante sob efeito de mescalina não significa que alguém, por tomar mescalina, vá escrever Miserable Miracle. Quanto a meu processo criativo, é mesmo espontâneo. A frio, do tipo “vou escrever um poema”, não dá, não sai nada. Tem que haver entusiasmo, no sentido grego da palavra, como embriaguez ou possessão, ou, no mínimo, inspiração. Um dos poemas que saíram publicados naquela edição de Azougue em que figuro, Ruínas Romanas, eu estava lá, e me vi impelido pela emoção a tirar um bloquinho do bolso e ir escrevendo. Nem reparei, mas estava fazendo um comentário à quantidade de autores, de grandes poetas, que já haviam estado lá e escrito sobre essas ruínas — alguns, eu nem conhecia então. Aliás, tudo o que fiz em poesia saiu mais ou menos assim, de impulso. Note bem, não se trata de adesão a “escolas” ou cartilhas, mas do seguinte: aquilo de que André Breton fala no Primeiro Manifesto, das imagens poéticas que batiam na janela, comigo é assim, uma frase, no caso desse poema de que estou falando, a frase “quantos poetas já não estiveram aqui?”, daí para a frente, o texto vai saindo espontaneamente, quase por si só, por sua conta. Aliás, essa experiência, poesia como voz do outro, nem é patrimônio exclusivo do surrealismo, basta ver o que, por exemplo, Derrida escreve a respeito naquele seu ensaio sobre Edmond Jabés em A Escritura e a Diferença.

• Como os poetas do modernismo receberam a tua poesia? Tomaram posição a respeito? Faço essa pergunta porque, em minha opinião, o teu trabalho, como o de Piva, não tem nada a ver com o modernismo dos anos 30 e 40… Claro, há certos paralelos com Murilo Mendes e Jorge de Lima, na imagética, em especial.  Mas a impressão que eu tenho é de que a poesia de vocês existiria mesmo sem o modernismo, pois descende de outras fontes, do romantismo, do simbolismo, de Breton, dos beats, da contracultura dos anos 60… o que você pensa a respeito?
Penso um monte de coisas! Modernista, remanescente da semana de 22, havia Sérgio Milliet, bela figura, mas, no início dos anos 60, não tomamos conhecimento, freqüentava o bar ao lado (ele e a turma dele no Paribar, eu e minha turma mais no Leco ou La Crémerie, lugar mais agitado), mas ainda assim era muito burguês, muito establishment para nosso gosto. Não nos interessou qualquer interlocução pessoal com modernistas e afins, embora não tivéssemos dúvidas quanto à importância de Drummond e admirássemos Murilo. Bandeira, nunca gostei, simplesinho demais. Guilherme de Almeida, o então Príncipe dos Poetas Brasileiros, de enorme prestígio, nem chegar perto, de jeito nenhum, representava tudo o que não suportávamos, oficialismo, academicismo, restauração do beletrismo etc. Idem os demais corifeus do retorno dos modernistas ao academicismo, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo. O contexto literário imediato era dado pela Geração de 45. Nem foi preciso romper, nos afastarmos, tomar posição contra, bastou saírem Paranóia e Piazzas do Piva, e o meu Anotações para um Apocalipse, e eles imediatamente esfriaram conosco. Agora, você tocou em uma questão importantíssima ao falar em simbolismo. Pelo seguinte — na França, em especial, modernismo estava dentro do simbolismo! Houve aquilo que Breton denominou de correia de transmissão entre simbolismo e surrealismo. Vanguardas recolheram um legado simbolista. Veja bem: Jarry (e Jarry já é tudo, em sua obra colossal, está tudo lá, ele produziu século 20 como ninguém) era simbolista, freqüentava Mallarmé e os outros, foi quem proclamou como fundamentos da nova literatura Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé. O primeiro tradutor de Jarry, para o italiano, foi Marinetti… Apollinaire, o ideólogo do novo, idem, freqüentava Jarry, o admirava. Os surreais adotaram como referências, a exemplo de Jarry, a Lautréamont e Rimbaud. Os formalistas, Eliot e Pound inclusive, a Corbière e Laforgue. Linha direta, conexão, em todos esses casos, e em outros. Aqui não, o pessoal de 22 maravilhou-se com futurismo e vanguardismo, mas não reparou em nosso próprio simbolismo, no que havia de moderno em Kilkerry, na poesia em prosa de Cruz e Souza. Não sabiam de Sousândrade, e olha que em seus momentos simultaneístas, em muito de Oswald, até lembram Sousândrade. Não perceberam o anti-beletrismo de Lima Barreto. Nacionalistas que não souberam olhar a seu redor, algo muito estranho, que associo a uma certa caretice modernista, especialmente em Mário de Andrade, um discurso como: sim, vamos inovar, mas espere aí, até certo ponto, devagar, loucura, isso não, como ele diz em seus primeiros textos críticos. Isso posto, muito do que Mário fez, gostamos. E, sem dúvida, Oswald, o mais inquieto e criativo de 22.

• Fale um pouco sobre o processo de criação de seus livros Dias Circulares (1976) e Jardins da Provocação (1981).
Dias Circulares, quando, pela segunda vez, em 1976, o Massao Ohno enunciou o fatídico chamado, “Willer, quero te publicar!”, reuni o que tinha, poemas em prosa e alguns com versos espalhados pela página, fiz um novo manifesto, e apresentei-lhe tudo isso. Em Jardins da Provocação, há poemas temáticos, mas também escritos espontaneamente, direto, que coexistem com os em prosa, assim como no meu próximo livro, Estranhas Experiências. Há, continua havendo, notas da véspera, como as passei.

• Em Jardins da Provocação, você incluiu, junto com os poemas, um manifesto em que fala sobre o poder mágico da palavra poética, com o enfoque da semiologia e da teoria literária. Afinal, qual é a relação entre poesia e magia? Concorda com Huidobro, de que a poesia inaugura um mundo próprio, com sua própria fauna e flora?
Concordo. A poesia produz realidade. É possível uma teoria literária aberta, incorporando a magia, o pensamento mágico. É só abrirem-se as cabeças desse pessoal, alguém realmente querer ir além do cientificismo.

• Você está trabalhando em um novo livro de poemas, Estranhas Experiências e no ensaio A Poesia Surrealista. Comente essas obras.
Estranhas Experiências é a reunião dos poemas mais recentes, pretendo ainda selecionar e acrescentar poemas dos livros anteriores, arquiesgotados. A Poesia Surrealista vai de Baudelaire até, digamos, Claudio Willer & friends. — até hoje, portanto. É um livro que caminha devagar… devagar… uma coisa é dar umas palestras, seminários, oficinas sobre surrealismo, outra é pôr tudo no papel, com algum rigor, buscando um certo grau de precisão de informação, sem brincar em serviço.

• Ainda é possível o surrealismo hoje?
Acho que, em primeiro lugar, as pessoas têm que ler surrealismo, aqui no Brasil — tem muita gente dando opiniões as mais disparatadas, sem saber direito do que se trata. O fundamento, a idéia da contradição entre poeta e sociedade, do prosseguimento da rebelião romântica, continua valendo. Movimentos e ações coletivas inspiradas no surrealismo, acho perfeitamente possíveis, e seria muito bom se acontecessem. Percebo, hoje em dia, um tipo de cultura ou de movimentação underground que tende ao surrealismo, incorporando, é claro, a beat e outras tendências rebeldes e marginais. Isso está acontecendo, neste momento, nos Estados Unidos, com o grupo de Chicago. Algo disso, vejo em um projeto como o da revista Azougue — também em nossa revista eletrônica, do Floriano Martins e minha, Agulha, www.agulha.cjb.net , entre outros lugares, os quais vejo como registros, estações retransmissoras, não exclusivamente surreais, é claro. Neste número da revista Cult, que saiu enquanto respondo a suas perguntas, trato de burocratização do conhecimento. Surrealismo continua um grande antídoto, um instrumento de combate.

Claudio Daniel

É poeta e tradutor.

Rascunho