A literatura do Rio Grande do Sul atravessa um processo de renovação. Os novos autores não estão interessados em idealizar o leitor ou desprezá-lo. São também leitores e repassam à escrita os dilemas prementes vivenciados na esquina democrática. Se acertam? Pelo menos estão dentro do mundo para errar. Não apartados dele para isolar seus trabalhos da inevitável comparação com a produção brasileira contemporânea. Nem precisam mandar um currículo afirmando que são gaúchos. Jorge Luís Borges já ensinava: ser gaúcho é um destino. Então não cabe redundâncias.
A recém-chegada turma de contistas e romancistas suplantou a obstinada subordinação — tarefa única e imprescindível até meados de 80 — de trabalhar horas extras para glorificar a história e romantizar o regional.
Atesta-se um alto grau de experimentação. Na cadeia alimentar da produção ficcional, os semideuses levaram uma surra nas duas últimas décadas. Fica-se para trás uma descrição existencialista do mito do gaúcho. Luiz Sérgio Metz, representante dos tempos modernos, criou a novela exemplar Assim na Terra, reunindo as melhores esferas textuais, de Um Lance de Dados a Mil e uma Noites; Cíntia Moscovich (Duas Iguais) reavalia a condição feminina; Roberto Velloso Eifler (Os 40 anos do Dr. Stummer) possibilita um humor sem dó nem piedade, com uma irreverência surrealista digna de um Campos de Carvalho e Vitor Ramil (Pequod) remodela o tema da obsessão pela figura do pai usando como base o imaginário de Moby Dick. E ainda são muitos os curingas a serem descobertos no carteado como Altair Martins, Adriana Lunardi, Almicar Bettega Barbosa, Cláudia Tajes, Ernani Ssó, Fernando Neubarth, Henrique Schneider, Letícia Wierchowski, Jerônimo Teixeira, Juremir Machado da Silva, Marcelo Carneiro da Cunha, Max Mallman, Paulo Ribeiro, Paulo Betancur, Taylor Diniz, Walmor Santos e Valesca de Assis.
Presencia-se a delimitação de uma linha geracional, de criadores que têm uma certa unidade na faixa etária, na casa dos 30 a 40 anos, conduzem a bola para frente e partilham um ponto de vista comum: egressos dos cursos de Humanas ou Comunicação, são dotados de clara consciência do que foi realizado pelas gerações passadas, não repetindo a experiência dos antecessores. Preocupados em responder à insistência da realidade do que propor uma escola ou instaurar a radicalização de uma vanguarda.
TERAPIA COLETIVA — Paulo Coimbra Guedes posiciona-se na linha de frente da ficção sul-rio-grandense com Tratado Geral da Reunião Dançante (Artes e Ofícios, 1999). Mesmo com elogios de Luis Fernando Verissimo, o romance desceu rápido das prateleiras e merece uma segunda chance.
É uma estréia com o peso da maturidade. Guedes transformou seu esforço em publicar o livro no enredo do próprio, com direito de incluir para o deleite dos curiosos a correspondência entre amigos, críticos e namoradas que avaliam a qualidade dos originais. Mas os bilhetes não constituem nenhum anexo ou notas de rodapé, são integrantes ativos da narrativa, contribuindo para seu desdobramento e revelando ao autor onde afinal está chegando. A sensação é de que estamos folheando um inédito. Revisando um diário inacabado. Abrindo as vísceras de uma agenda. Civilizando o conhecimento pela transgressão.
No formato de uma reunião de contos, acrescida da descrição das peripécias do narrador no seu aperfeiçoamento, Tratado Geral da Reunião Dançante corresponde a uma saideira interminável, uma desculpa para permanecer conversando. Em vez de memorialismo, estabelece a invenção de uma memória. Sem ordem cronológica, o livro sustenta o suspense por estar em andamento, não ter a arrogância da edição concluída e deixar o fluxo do cotidiano alterar a ordem das páginas e das histórias. Inaugura mentiras tão convincentes que as verdades aderem a elas. Com um ceticismo sadio, o ficcionista incorpora os foras recebidos pelas editoras no livro recusado.
A trama começa a partir de uma situação limite. Pela primeira vez, um professor de meia-idade é demitido. Pela primeira vez, esse professor pede uma mulher em casamento e recebe um chute. Pela primeira vez, será pai justamente com a mulher, Vera Lúcia, que se nega a ficar com ele. Pela primeira vez, entra sem querer como cabeça de chapa em eleição de movimento sindical. Pela última vez, organiza as anotações esparsas para vingar sua veia literária e pôr em pratos limpos a bagunça de sua vida. Só que as coisas nunca saem conforme o planejado. A expectativa de organizar seus guardados são impedidos por lances fortuitos. Seja pelas trepadas mal resolvidas, seja pelas pendências financeiras. As urgências do corpo adiam as pretensões do espírito.
A obra retrata com fidelidade as experiências dos anos 60 e 70, de uma turma que confundia “amor com coragem”, misturava política com liberação sexual, capaz de emendar sessões de Apocalipse Now e catalogar amizades coloridas. Mais do que exatidão temporal, vigora a cartografia minuciosa de lugares reais, a introvertida Porto Alegre e a expansiva praia Tramandaí, litoral reto, sem curvas, que servia de refúgio aos encontros estudantis. Há a reprodução da oralidade e intimidade da fala da capital gaúcha, caracterizada como dialeto Porto-Alegrês (“queque tu quer mesmo dizer com isso?”).
Todos os personagens são fantasmas do narrador onisciente, que lentamente os transcreve ou pelo menos os salva do esquecimento. As epístolas dos contemporâneos — Miriam, Ceres, Armando, Pedro, Eliana, Rubem, Maristela, Flávio, Rodolfo e Artur — descortinam outras interpretações dos fatos narrados. Uma mesma cena é vista por vários ângulos. Na terapia coletiva, o psicanalisado termina sendo o romance. Guedes apresenta o lado pervertido da pretensa clareza: a dificuldade de saber o que se é pelo o que os outros não dizem.
O LIVRO FORA DO LIVRO — O alter-ego do autor evita a encenação do monólogo, debate-se contra a va(l)idade de estar escrevendo. Dispensa o crachá de escritor. “Não quero publicar um livro só para me habilitar a publicar um outro.” O perfeccionismo é violento, paralisante. A obsessão pelos detalhes provoca uma escrita tentacular, de muitas mãos, derrubando o conceito de autoria tradicional. Quanto maior o esforço em exercer controle sobre tudo, mais a vida vai desabando e esvaziando a caneta-tinteiro com fatos extra-literários. O prosaico recebe espessura, como se a qualquer instante as modestas observações pudessem abrir espaço a um acontecimento determinante. Cenas irrelevantes, tal a espera de um telefonema, assumem a duração de epopéias emocionais. O exame de consciência aspira a condição de documento, questionando o valor artístico da atualidade: “Me empresta teu Van Gogh para fazer um xerox?”.
Tratado Geral da Reunião Dançante consiste numa aula de narração. O capítulo Feia começa assim: “Ela era feia e saiu de casa às sete e quarenta. Depois foi ao Clube Comercial. Ela sabia da existência de estranhos na cidade, mas não levava fé; no entanto, era carnaval”. Nada mais delicioso do que a gratuidade do olhar, as frases curtas e antagônicas, a generalização ao lado da precisão cronológica. Parece cinema mas é literatura.
Guardadas as proporções, Paulo Guedes recapitula a experiência do italiano Italo Calvino, em Se um viajante numa noite de inverno (Companhia das Letras, 1999). Os dois livros prezam o público mais do que o livro. A obra de Calvino inicia com a descrição do leitor abrindo seu texto, estranhando e indo trocar na livraria, pois é um romance com defeito, com intrusos romances no bojo, distraindo o que devia ser a história convencional, com início, meio e fim. Se Calvino termina por ficcionalizar o leitor e a leitora, que ao cabo formam o casal de protagonistas; Guedes elege o autor como personagem numa belíssima inversão. Calvino brinca com a expectativa de leitura; Guedes, com a apreensão e os labirintos da narração.
Calvino busca o “destroço ideal”; Guedes, o destroçado de uma idealização. O primeiro ensina a desaprender a ler; o segundo, a desaprender a escrever. Calvino empreende um romance-armadilha, com resquícios de todos os estilos (erótico, simbólico, cínico, geométrico, apocalíptico). Guedes desarma os estratagemas utilizados pelos escritores. Calvino propõe um sistema do livro-perfeito; Guedes, a constelação de um autor imperfeito. O livro de Calvino funciona pela promessa de leitura; o do Guedes, pela promessa de um autor. Calvino instaura um livro dentro do livro; Guedes, um livro fora do livro. Não o importa tanto o produto. Expõe a fragilidade da linguagem em perdurar a intensidade do vivido. O livro não existe, o que existe é a alma desorganizada do leitor fielmente publicada. As circunstâncias da escritura são maiores que o resultado. Guedes preserva as rasuras e reescreve em cima como um copista. Mostra até o que foi descartado. Os rascunhos e o original duelam o mesmo espaço.
As epígrafes, por sua vez, não são meros jogos lúdicos de influências. Somam um manuscrito à parte. O hábito de citar autores de morte consagrada é substituído pelas frases de efeito de heterônimos do escritor. Tamanho é o requinte que Guedes chega a elaborar volumes para cada um deles. Seguindo lições de Borges e Saramago, as epígrafes determinam o desenlace dos personagens. Como exemplifica o fictício Bóreas Peixoto, do ainda fictício Freud para Conquistadores, “quem não se sentiria ridículo voltando para casa com dois jontex no bolso?”
Caso os escritores fossem entrevistados com a freqüência dos jogadores de futebol, Guedes diria: fui derrotado pela marcação e ganhei a partida.