A libertação pelo corpo

Resenha do livro "Cine Odeon", de Livia Garcia-Roza
Livia Garcia-Roza, autora de “Cine Odeon”
01/11/2001

Cine Odeon tem uma roupagem gráfica que não condiz com sua nudez. O novo romance de Livia Garcia-Roza demonstra, a princípio, tratar de um universo particularmente teen, já que aborda a trajetória de Isabel, dos seus 14 aos 17 anos. A capa reforça os indícios: a ilustração de uma menina bebendo e fumando, com um fundo rosa/laranja e um coração flechado. Tudo induz ao erro, incluindo o enredo, com a história de uma moça bem-comportada da classe média, que assume os riscos da implosão familiar ao se apaixonar pelo seu oposto, Miguel, um cara mais velho, sem paradeiro e sobrenome. Só que a primeira impressão é desfeita pela serenidade da narração, contrária à histeria e à cumplicidade, refratária à volúpia dos extremos. O que poderia parecer remake de É tarde para saber, de Josué Guimarães, logo é tomado de originalidade e vigor.

Transitar entre os níveis de linguagem, sem privilegiar um ou outro, é a façanha do quarto livro da escritora carioca, autora de Meus queridos estranhos, Cartão-postal e Quarto de menina. A linguagem e o vocabulário partem de uma adolescente, permitindo um leque amplo de leitura. A diferença reside na sofisticada atmosfera psicológica, que atende às exigências de qualquer faixa etária.

Preocupada em definir o limite entre sexualidade e loucura, Livia escolhe a economia das imagens, recusando o exorcismo e a catarse. Entra-se na esfera de uma aventura emotiva, de um mundo que se constrói da sala de estar ao quarto, da família ao proibido, do geral ao particular. Isabel não é só ela, tem desdobramentos nas figuras do pai, da mãe, do irmão Gualberto (que parte para uma viagem ao Peru), de Dona Violante (avó prestes a morrer e espécie de sacerdotisa desregulada), da sobrinha Isolda, da enfermeira Alzira e da empregada Marlene, contrapontos para as suas conseqüentes decisões. Distante de apresentar perfis perfeitos e heróicos, as figuras são defeituosas, carregadas de manias e, portanto, complementares. As vacilações de cada um formam as certezas da protagonista. O amigo ingênuo Antonio e a colega de escola Isabel, que engravida aos quinze anos, são ramificações nervosas do temperamento de Júlia, que aprende pela ausência a se fazer presente.

Além do domínio dos diálogos, Livia Garcia-Roza sabe articular os silêncios, sugerindo e nunca determinando condutas. O pai, por exemplo, mal abre a boca e mesmo assim se entende perfeitamente o que pretende dizer e o que ele suporta na aparência de um casamento. “Temos conversas silenciosas”, afirma Isabel. A mãe é praticamente decodificada pelos olhares, sempre vesgos, oblíquos, vexatórios. Encarna a censura, a ‘estética do enviesado’, enquanto a figura paterna simboliza a ética da omissão, duas formas pendulares de silêncio.

A escritora não se rende aos artifícios da modernidade. Apesar de prezar o ritmo vertiginoso, os pensamentos instantâneos e a evidente moldura cinematográfica (fortalecida pelo título), não vincula os costumes a um único tempo. Foge das gírias e dos cenários batidos como shoppings e bares, capazes de provocar somente caricaturas e croquis. Vale-se da universalidade das pulsões eróticas, que podem ser encontradas tanto no intimismo de uma Clarice Lispector como nas fábulas galegas de Nélida Pinõn.

Desfazendo o perfil superficial e loquaz que se costuma convencionar o adolescente, a ficcionista oferece a introspectiva e densa Isabel, caracterizada pelo “clima de interior”. É uma mulher-menina lentamente consumida pela estranheza íntima do seu corpo. Descobre a necessária luxúria, com doses de violência e furor, a partir de encontros secretos com o namorado Miguel.

A personagem central — “esgotada de si própria” — não escreve diários, aprende na marra que as vivências são difíceis de serem repetidas e que toda afirmação existencial é precedida por uma renúncia. Miguel representa um novo círculo social, malandro e alternativo, dono de uma linguagem poética, cifrada. Obcecado em surpreender, surge do nada como uma alucinação. Repassa bilhetes e confidências, relacionando as peripécias amorosas do casal às curiosidades científicas. É anônimo como o destino do verdadeiro amor, que se mata ou enlouquece no momento de definir a identidade. Se Miguel busca a liberação no sexo; Isabel vai além: encontra a libertação. Ela se liberta ao entrar em contato com o desconhecido, em contraste ao rapaz, que desaparece e perde a noção do real. Talvez seja a senha da escritura de Lívia. Aparentemente feminista (suas histórias são praticamente conduzidas pelas mulheres), na verdade descortina os impasses masculinos contemporâneos. O homem consegue conduzir, entretanto, ainda não absorveu a idéia de ser conduzido. Assemelha-se a um “envelope lacrado”, com receio de não confirmar dentro o que está escrito fora.

Em Cine Odeon, ocorre uma sucessiva inversão de expectativas. Quando se cogita um desfecho, tem se uma reviravolta. Com rara habilidade, Livia não conclui nem contamina a trama com os índices de audiência. A intensidade surge do inesperado, de falsos finais, da abertura coerente ao improviso e à alteridade da vida.

Cine Odeon
Livia Garcia-Roza
Record
221 páginas
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho