As forças entranhas

Resenha do livro "As forças estranhas", de Leopoldo Lugones
01/12/2001

Seria injustiça taxar a literatura argentina como a mais importante da América Latina. Só estaria se dando mais pano para manga sobre a velha rivalidade entre os hermanos e nós brasileiros. Mas literatura não é futebol. Talvez seja até mais bárbaro que o esporte bretão.

No entanto, uma vez discorrendo sobre o escritor argentino Roberto Arlt, afirmei que a literatura argentina contemporânea (leia-se, do começo do século 20 para cá) é mais interessante que a brasileira. Novamente, mais provocação. Não tenho sangue portenho correndo nas veias.

O caso é que ter contato com autores argentinos até então desconhecidos (para mim) transformou-se em uma aventura saborosa. Jorge Luis Borges e Julio Cortázar já faziam parte da biblioteca. Arlt, Ricardo Piglia e agora Leopoldo Lugones ajudaram a atestar a qualidade do que se produz e produziu no país vizinho.

O que me assusta nos argentinos é que eles parecem ter formado um time e definido tim-tim por tim-tim quem faria o que na equipe. É como um ciclo que começasse em Lugones, passasse pelas obras-primas de Borges (continua sendo o maior e mais importante), divergisse a Arlt, mergulhasse em Cortázar e terminasse (?) em Piglia. Parece uma corrida de revezamento.

E, é claro, não há apenas os cinco na literatura portenha. Há outros ainda importantes, mas vejo os citados como os expoentes de uma magnífica obra, insisto, pouco conhecida no Brasil.

As Forças Estranhas, de Leopoldo Lugones, acaba de ser lançado no Brasil. O livro está para completar seu centenário; surgiu em 1906. Sobre Lugones, nascido em 1874, a primeira referência vem de Borges: “julgá-lo seria talvez julgar toda a história da literatura argentina, tal o valor de sua influência”.

Mas Lugones não merece ser conhecido apenas pelo que disse Borges. Nos 13 contos do livro, pode-se ter uma bela idéia do que significou a figura do obscuro escritor ao povo argentino. As histórias refletem, basicamente, uma das obsessões de Lugones, a ciência. Além dela, ele também reverenciava a política, e, claro, a própria literatura.

Preservando a edição original, o primeiro conto do livro pode não ser a melhor forma de apresentar a obra ao leitor que desconhece a fama do autor. Afinal, A Força Ômega revela um dos lados mais incômodos da leitura que se seguirá, a verborragia aliada ao vocabulário técnico.

Mas, como sempre, é preciso ler nas entrelinhas. A formação de Lugones, do começo do século, está ligada às crescentes descobertas científicas, à desmistificação do Deus judaico-cristão, ao interesse pelo ocultismo e outras mudanças complexas e contraditórias. Lugones vinha de uma formação clássica, e assistia à mutação de seu tempo com olhos perplexos e curiosos. O resultado é que sua obra desponta como a primeira do realismo fantástico hispano-americano. O mesmo do qual se apropriaria Borges, mais tarde.

Suportando o tanto de estilo tedioso, recheado de irritantes notas, o leitor se confronta com belas histórias, umas baseadas em lendas bíblicas, outras, em suposições científicas e pertinentes.

A maior de todas elas deve ser A chuva de fogo. Evocação de um desencarnado de Gomorra, na qual o autor empresta a imagem bíblica da destruição de Sodoma e Gomorra e coloca um personagem alter-ego como observador do fim que se seguirá. Mais tarde, em outros contos, aparecerão cenários como a Jerusalém do século 9, a Trácia e a Palestina. Ao contrário de Roberto Arlt, Lugones abusou da experiência européia e prefere sempre situar suas histórias fora da Argentina.

Na mesma linha de A chuva de fogo, há A origem do dilúvio e A estátua de sal, baseadas em imagens bíblicas. No entanto, as referências das escrituras não dão caráter religioso à obra. Muito pelo contrário. Servem para que Logones “sonde o inefável” e explore as lendas do ponto de vista do oculto, do esotérico. Em A estátua, a mulher de Lot, que havia sido transformada em sal, é libertada, e pedem para que ela conte o que viu quando desobedeceu Deus e se voltou para observar a destruição de Sodoma. Não à toa A estátua de sal e A chuva de fogo são contos intimamente ligados.

A racionalidade humana também é colocada à prova em Os cavalos de Abdera e Yzur. No primeiro, cavalos passam a atacar humanos quando percebem que estão apaixonados por pessoas de carne e osso. Em Yzur, um macaco é a cobaia de um experimento para fazer que com os símios “voltem a falar”. De uma maneia ou outra, ele termina falando. No sentido mais literal da palavra.

As Forças Estranhas é um livro riquíssimo. Pelo que representa à literatura latina por si só e também pelo que exige do leitor a transportar-se pelo universo fantástico de Lugones. Um absurdo descrito de maneira tão detalhada que é capaz até de enganar alguns; melhor, deixar-se envolver. Infelizmente, o olhar videoclípico do fim do século 20 e começo do 21 torna a leitura cansativa, pelo excesso de referências e vocabulário rebuscado. Mas não há de ser nada. Como em todas as coisas, o prazer surge apenas após o esforço.

As forças estranhas
Leopoldo Lugones
Landy Editora
226 págs.
Ricardo Sabbag
Rascunho