Uma noite em Vevey

Alguém se lembra? Charles Chaplin morreu no Natal
01/12/2001

Alguém se lembra? Charles Chaplin morreu no Natal. Precisamente na noite que costumava afetar a todos, não deixar ninguém indiferente (ou inteiramente alegre), noite de suicídios e reconciliações, presentes e cartões trocados como se o dia 25 não fosse despontar em mesmíssima aurora — carbono dos demais dias monótonos nos quais apenas faltam nozes intactas e pastéis e strüdel enrolados em celofane sobre mesas de papel prateado e árvores piscando para ninguém no limbo das madrugadas.

Chaplin morreu dormindo e sempre achei a data — e o modo — extremamente adequados para o palhaço triste que foi o ator das ruas de natais de mendigos e músicos ambulantes. Creio mesmo que a época, o frio da estação iluminada por vitrines e guizos, a imagem de renas e trenós suíços, as árvores “pesadas” de algodão, tudo acentuou o sentimentalismo do fim de “Carlitos”, seu criador era um sentimental, não há grande gênio sem humor e sem sentimentalismo nas doses certas para se beber na “elegante melancolia do crepúsculo” — conforme diria o velho Charles, com o seu aplomb dezenovesco para sempre perdido. Portanto, a noite lhe veio, fria e enluvada — como a cicuta na mão de uma Mata Hari.

Numa outra noite, longa, de 23 para 24 de dezembro de 1989 (que passei no aeroporto de Berlim — sem saber se poderia, de fato, embarcar para Lisboa e fazer a conexão de vôo que me levaria de volta para o Brasil, no dia 25)… conheci um ex-mordomo dos Chaplin, um homem chamado Deluzzo (creio que é assim que se escreve; ele não me deixou cartão algum).

A espera — longa — no saguão fez a conversa surgir naturalmente, após uma reclamação qualquer, contra ninguém (e quase contra nada), apenas para “puxar assunto” numa noite que puxa pela fragilidade. Éramos — e iríamos continuar — estranhos, não importando a ponte levadiça de algumas palavras (ora!) por sobre nossas indiferenças, fingidas, de aeroporto meio deserto, luzes e avisos piscando para passageiros que já haviam partido ou que só chegariam mais tarde, na plena calma da madrugada que apaga o passo dos retardatários. Portanto, iniciamos a conversa desenxabida, para enganar o relógio e aproveitar o eco suspenso, a atmosfera, rara, de nenhum rumor entre as palavras, fazendo as perguntas de praxe: “de onde é, o que faz, por que viaja etc.?”.

Meia hora depois, o tal Deluzzo já era um velho companheiro — sorrindo com dentes amarelos de nicotina — e começava a contar como tinha sido a noite de Natal de 1977 em que morreu o Vagabundo. Aquele italiano (de Trieste) estava lá. Fiquei fascinado como um menino escutando alguma velha história de Natal desgastada nos encaixes de janelas de neve acumulada. Não era a sua folga, e isso o fizera participar, “no limite do decoro da criadagem educada, é claro”, da grande reunião de família, isto é, dos Chaplins que tinham conseguido voar, de várias partes do mundo, e chegar a tempo em Vevey, na Suíça, onde “Sir Charles vivera a parte final — e muito feliz — da sua vida”, repetia Deluzzo.

Lembrei-me daquela opinião curiosa (do Duque de Windsor, que uma vez fora hóspede de Chaplin em Hollywood), sobre ser Chaplin “o homem mais triste que havia no planeta”, e perguntei a Deluzzo:

— Ele era assim tão triste, mesmo? Mas Deluzzo não soube responder. Olhou-me, confuso:

— Ele era muito velho.

— Sim, mas parecia ser assim tão…

— Eu não poderia saber. — Deluzzo me respondeu, um pouco chocado (no silêncio do aeroporto, na madrugada, minha pergunta soara como saltos de sapatos altos num piso de mármore).

— Sir Charles parecia ter tanta coisa para lembrar! Um homem assim é sempre meio triste, não?

O Duque de Windsor, porém, tivera essa impressão do Chaplin ainda jovem, nos anos 30… e eu insistia, mas o ex-mordomo parecia não saber mesmo o que responder — de modo que interrompeu a minha insistência, para vir com uma espécie de presente noturno e inesperado:

— Naquela noite, aconteceu algo de extraordinário, sabe?

— Extraordinário? — Perguntei, alerta para o tom meio confidencial da frase.

— Sim, depois da troca de presentes… porque tinha que haver uma solene e bela troca de presentes ao pé da árvore, em se tratando de Sir Charles… e, então, feito isso, ele ouvia um pouco de música (que Lady Oona tocava, com um sorriso esplendoroso para aquele marido tão velho)… e, depois, ia dormir.

— E, nessa noite de Natal, não foi assim?

Deluzzo olhou para mim:

— Claro que foi. Tudo igual. Tinha que ser. Só depois, talvez na hora mesmo em que Sir Charles estava a morrer, tranqüilo e quieto, na cama, foi que aconteceu aquela coisa extraordinária…

ATTENTION PLEASE… CHAMADA DO VÔO PARA LISBOA…

E eu dei um pulo de pura tensão — e alegria — ouvindo aquela voz chamando pelo sistema de som do aeroporto, na madrugada de Berlim, e me despedi de Deluzzo, o ex-mordomo dos Chaplin, sem conseguir esperar para saber o que acontecera de tão “extraordinário” na noite de Natal em que morreu Charles Chaplin…

Lamento até hoje.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho