Mário Chamie: a poesia como sacerdócio

Escrever poesia, para mim, é promover um contínuo sinal de alarme e alerta, ainda que entrincheirado em minha utópica ilha ensimesmada
Mário Chamie: pressupostos e parâmetros que estimula abordar e discutir a pordução literária e cultural
01/12/2001

Conviver com o poeta Mário Chamie é privilégio de poucos. Atrás do bigode basto grisalho escondendo a boca e o rosto severo existe um homem atento ao mundo e à sensibilidade das coisas, do seu tempo. No que se refere à poesia, é um poeta austero, avesso às facilidades de um tempo amargo e feito quase só de equívocos e mentiras alimentado por uma chamada mídia cultural inconseqüente e sem compromisso com nada. Há pouco — e como sempre — contou-me uma de suas tantas histórias pelas quais vê o mundo. Nascido numa cidade do Interior de São Paulo, o prefeito seu amigo quis homenageá-lo com um busto de bronze na praça principal. Chamie agradeceu a homenagem aprovada pela Câmara Municipal, mas recusou com esta singela justificativa: “Ainda não estou pronto para entrar de peito na história”. O prefeito seu amigo prostrou-se e exigiu dele uma explicação mais consistente para apresentar aos vereadores que aprovaram o requerimento. Chamie então remeteu um telegrama definitivo: “Conheço bem os pombos e as andorinhas da região”. Resultado: o busto não foi inaugurado e o prefeito deixou de falar com ele. Histórias assim surgem sempre nas conversas com Chamie, quando ele detona as coisas estabelecidas com fina ironia, dessas que corroem. O humor é cáustico e certeiro. De repente seu apartamento ficou amplo demais para ele, desde a morte de sua companheira, Emilie Chamie, um dos nomes mais significativos de designers gráficos brasileiros, que revolucionou completamente a comunicação visual do país, com um trabalho pioneiro a partir dos anos 50. Caminha dentro dos cômodos com sua sombra e palavras. O mundo, de repente, também tornou-se amplo demais para seus passos. É um poeta. Na acepção correta da palavra. Um poeta. Na Antologia de Poesia Contemporânea Brasileira que organizei e foi publicada em 2000 em Portugal pela Editora Alma Azul, de Coimbra, alguns poetas falam de si: Mário Chamie escreveu: “Sou um escritor independente. Acredito no poder individual da criação, sem ranço livresco nem subserviência a argumentos de autoridade. A poesia é a meta-expressão de todas as artes. Ela gratifica, apesar do sofrimento que possa causar. O mal é ver na Poesia, sobretudo, um meio privilegiado de glória, reconhecimento ou consagração pública. Quem a cultiva em busca desse tipo de recompensa errou o caminho”. Mais adiante, Chamie completou: “Considero a Poesia o mais recolhido dos sacerdócios. O poeta digno de seu ofício não teme a solidão nem o anonimato. O verdadeiro grande poeta é um demiurgo de falas e linguagens inovadoras que, cedo ou tarde, ocuparão o seu lugar na História e conquistarão o seu tempo de permanência”. Chamie nasceu em 1933. Foi o criador da vanguarda nova brasileira, o movimento da Poesia Práxis. A literatura Práxis foi lançada em 1962, com seu livro Lavra Lavra. Autor de dez livros de ensaios, destacando-se A Linguagem Virtual, de 1974. Deu cursos em universidades americanas e européias, como a Sorbonnne, em Paris, e Harvard, Columbia e Nova York, nos Estados Unidos. Doutor em Ciências da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Chamie é membro da Academia Paulista de Letras.

• O que é a Poesia para você?
É a linguagem das linguagens; é a meta-expressão de todas as artes. Ela está na fronteira do silêncio que tudo distingue e tudo ressalta para dar voz a todas as coisas possíveis. Nessa fronteira, a poesia livra-se das instrumentalizações banalizadoras e reveste-se da semi-clandestinidade de seu empenhado sacerdócio, vivido e curtido em pleno anonimato. Fiel ao recolhimento de sua missão, cabe ao poeta tornar-se demiurgo de falas e escritas inovadoras que, cedo ou tarde, conquistarão o seu tempo de permanência histórica. Fernando Pessoa (em vida, publicou apenas o livro Mensagem) foi incriminado por alguém de ser, em sua época, um autor quase anônimo. Pessoa teria dado esta resposta ao incriminador: “Agrada-me este anonimato, sabendo-me gênio”. A poesia é sempre inaugural e desconcertante. É nela e por ela que o inesperado dizer sobre as coisas se anuncia.

• Você usa as palavras “missão”, “sacerdócio” e “recolhimento”. Mas, o poeta não deve preocupar-se com sua projeção social, tornando-se, no mundo da comunicação e da mídia, um figura pública participante?
Tornar-se figura pública notória pode ser efeito ou conseqüência da importância artística alcançada pelo poeta ou pelo valor de sua obra, mesmo póstuma. Antes disso, porém, cabe-lhe apurar o seu auto-conhecimento, se quiser construir sua visão pessoal e própria da realidade que o envolve. O mergulho nessa realidade não se faz com a preocupação mundana do prestígio, seguido de consagração idólatra. Poeta não é, necessariamente, pop star. Poeta é mais um ser “mediúnico” do que um ilusório ser midiático.

• Na sua opinião, o poeta deve voltar-se sobretudo para a sua interioridade? Isto não seria uma forma de isolar-se e ensimesmar-se?
Sem dúvida. Lembremo-nos que o verbo “isolar-se” tem a ver com a palavra latina “insula” (ilha) que, em italiano, dá em “ísola” (ilha, de novo). Insulado, o poeta, quando escreve, finge falar por nós (“é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir/ que é dor/ a dor que deveras sente”). Ora, falará melhor pelos outros quem, primeiro, souber o que dizer de si próprio. Por isso, a frase atribuída a Fernando Pessoa conjuga-se, para mim, com a idéia de que toda ilha é ilha ensimesmada, conforme registro em meu poema “Caçadores de ilhas”, de meu livro Caravana Contrária: “A ilha procurada/ foge de quem a procura/ por ser ilha ensimesmada.// Caçadores de ilhas/ conhecem a lição/ ilhada:/ são caçadores de Tétis/ na ilha dos amores/ que não se dá por achada”. Identificada com a metáfora da ilha, a individualidade do poeta, assim, passa a ser portadora de utopias próprias, mesmo sabendo que as utopias históricas e ideológicas exigem dele certa cumplicidade compulsória em relação a projetos coletivos. Entendo que a práxis individual do poeta o leva a construir utopias diferenciadas, nas quais ele dá o exemplo de liberdade e de insubmissão a quaisquer formas de dirigismo intelectual. A cultura literária brasileira tem sucumbido, com freqüência, ao engodo sedutor de grupos e movimentos hegemônicos, controladores e excludentes. Escrever poesia, para mim, é promover um contínuo sinal de alarme e alerta, ainda que entrincheirado em minha utópica ilha ensimesmada.

• O pouco espaço que a poesia ocupa na grande imprensa, fazendo do poeta um personagem meio descartável, teria a ver com essa postura de isolamento?
Não é de hoje que a marginalidade ronda a vida da poesia. Platão já rejeitara a presença dos poetas em sua República. Desconfiava do demônio desestabilizador de suas transgressões. Hoje, a república que tenta descartar a poesia é outra. É a república regida por um deus único e poderoso: o Mercado. A mídia é o lugar onde funciona a lógica do mercado que sacraliza a mercadoria, o consumo e as falsas objetividades divididas entre a “auto-ajuda” e o entretenimento massificante. Poesia não tem valor mercadológico e nem é entretenimento ou auto-ajuda. Ela não cultiva igualdades apaziguadas. Ao contrário, ela desvenda discursos congelados e traz inquietudes. Utopia incessante de si mesma, a poesia sopra sobre as repúblicas estáveis do consenso os ventos e os venenos do dissenso com que cada poeta há de ditar a sua singularidade. Baudelaire emblematizou essa singularidade na figura do “flaneur” e do “apache”. A lição de Baudelaire é uma só: no horizonte da poesia não há espaço para a mesmice multiplicada e repetida. Nesse horizonte, todo poeta é singular e faz a diferença.

• Você costuma navegar contra a corrente. Não há aí o risco de se ver tachado de “maldito”?
No meu livro inédito de poemas (Horizonte de esgrimas — nome provisório) talvez haja uma resposta à sua pergunta. Ela pode estar num pequeno poema meu, intitulado Poeta maldito. Este é o poema:

Sou o poeta maldito.
Tudo o que digo e repito
é desdito e é negado.

Mas nem por ser
maldito e poeta,
sou um poeta coitado.
Pois se é desdito e renegado
tudo o que hoje digo,
tudo o que agora falo
amanhã será lembrado.

Navegar contra a corrente é preciso, já que a favor das correntes nem mesmo o mar se move.

• No poema Auto-estima, de seu livro Caravana Contrária, você se considera um “sírio helenizado”. Essa expressão é apenas uma liberdade poética?
A expressão tem a ver com aqueles que eu considero os dois maiores mestres da ironia, na tradição da poesia ocidental: Luciano e Menipo. Muito da lição satírica dos dois comparece em meu livro de poemas Natureza da Coisa. Veja-se, por exemplo, o poema Uma filósofa brasileira: “Do Oiapoque ao Chuí,/ a filósofa/ sem agora e nem aqui/ baralha atônita/ a lógica/ do não ser sem existir.// Do conceito à coisa em si,/ a filósofa/ indaga sôfrega/ sobre a súmula/ sobre a soma/ do não ter sem dividir.// Da certeza ao frenesi,/ a ideóloga/ parti pris/ traça a giz/ a pompa do seu dogma/ na ponta do seu nariz.// Por um triz,/ eis o xis/ da filósofa/ sem agora e nem aqui/ do Oiapoque ao Chuí”. Em Caravana Contrária, sirvo-me ainda dessa lição. Afinal, uma caravana que percorre caminhos inversos aos caminhos previsíveis simboliza bem a quebra dos consensos e dos lugares comuns. A palavra poética não se casa com a previsibilidade das significações. Por isso, a sátira com que trabalho em Caravana Contrária não é a de origem romana, pela qual é rindo que corrigimos os nossos (maus) costumes (“ridendo castigat mores”). A sátira romana tem sempre uma moral da história, é sempre uma sátira moralista. O contrário acontece com a sátira grega ou menipéia. Esta aponta os defeitos e vícios, deixando-os em aberto para o julgamento das pessoas ou dos leitores. Menipo e Luciano, os criadores dessa concepção satírica que sigo, foram sírios helenizados. Nasceram nas cidades sírias de Samosata e Gadara (ou Gandara, conforme registro em meu livro). Falo dos dois no poema Menipo e Luciano. Sob o signo da paródia, me filio a essa linhagem satírica porque meu sobrenome Chamie significa, em árabe, a pessoa que vem de Damasco. O poema Auto-estima explica isso com senso irônico em suas auto-definições, sem perder seu lastro de realidade plural. O início do poema é este: “Sou Chamie,/ venho de Damasco./ Franco-egípcio é o meu passado./ Sírio sou helenizado.// De Damasco/ ao meu legado/ sou católico/ e islâmico,/ copta apostólico/ catequizado”. Está claro que, em termos históricos e biográficos, o núcleo e a essência de minha poesia radicam-se, intransferivelmente, na minha condição de homem e de poeta brasileiro.

O seu livro Lavra Lavra e a Poesia Práxis estão completando quarenta anos de existência. Práxis teria se caracterizado por ser um movimento ou uma escola literária? O que Lavra Lavra, hoje, representa para você e para a nossa poesia?

Movimentos e escolas literárias tendem a ser datados com o passar do tempo. A instauração Práxis se caracterizou por combater escolas e movimentos. Ela trouxe ao debate das vanguardas, entre nós, algumas formulações críticas e criativas opostas a sistemas fechados de doutrinas estéticas. Esta a razão pela qual o seu alvo certo, nos anos 60, foi o concretismo, então modelo de dogmatismo excludente. Todo autoritarismo é ortodoxo e sectário. O concretismo, enquanto movimento centralizador, nasceu sob o império do controle, já a partir de seu manifesto doutrinário, denominado Plano Piloto.

• E no que se refere à Poesia Práxis?
Para Práxis, a liberdade de criação da palavra poética é, em si, uma heterodoxia ativa. Quando o poeta, no exercício dessa liberdade, encontra ou inventa a sua palavra, ele não precisa do aval de nenhum receituário ou plano preestabelecido. Daí porque Práxis não se confunde com nenhum episódio datado na história de nossa literatura. Sua presença combativa impediu que, nos anos 60, fosse imposto um discurso hegemônico, único e exclusivista à nossa poesia. Isso preparou o terreno e legitimou a pluralidade de alternativas de nossa produção artística, dos anos 70 até hoje. Antonio Candido sintetizou bem essa legitimação ao escrever: “A Poesia Práxis recuperou o verso de maneira renovada e intensificou a referência às circunstâncias do mundo”. É esta a resposta que sempre dou quando associam Práxis a movimento ou escola. Digamos que a instauração foi um movimento para combater a idéia de movimento literários. Quanto a Lavra Lavra, eu diria que há certos livros que surgem como matrizes e passam a ser obrigatórios para a história de uma cultura literária nacional, digna desse nome. É um livro emblemático e sobre ele assim se pronunciou Murilo Mendes: “Não resta dúvida que Lavra Lavra se tornará um marco na história da poesia brasileira. Atribuo-lhe grande importância. É uma realização. Finalmente chegamos à prática da nova concepção de poesia. Cada poema tem ao mesmo tempo uma linha de rigidez e de elasticidade. O leitor entra ali dentro e gira como o manipulador da obra. As Geórgicas da era industrial”. Em 2002, Lavra Lavra deverá ser reeditado com toda a sua fortuna crítica e o arco de influências que exerceu e exerce.

• Quem é Mário Chamie?
Sou um escritor independente. Acredito no poder individual da criação, sem ranço livresco nem subserviência a argumentos de autoridade. Divido o meu trabalho em duas frentes: a da ação poética e a da poética da ação. Minha ação poética está nos livros que escrevi (já somam vinte e cinco) e escrevo. A minha poética da ação está nas obras materiais que realizei, em benefício público e comunitário. Exemplo de ação poética é a Instauração Práxis e a transformação que ela representa para a poesia brasileira da segunda metade do século 20 aos nossos dias. Exemplo de poética da ação é o Centro Cultural São Paulo que concebi e construí, revolucionando o conceito de espaços culturais no País. Como um poema de plasticidade orgânica, o Centro Cultural São Paulo abriga a diversidade interdisciplinar e simultânea de múltiplos falares artísticos.

Auto-estima

Mário Chamie

Sou Chamie,
venho de Damasco.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Sírio sou helenizado.

De Damasco
ao meu legado
sou católico
e islâmico,
copta apostólico
catequizado.

No pórtico
mediterrânico
sou ático e arábico.
Vou contra o deserto
de desafetos contrários.

Sem custo nem preço
que se meça
em nome de meu gênio
atlântico e adriático,
desprezo a cabeça
e a sentença
de meus adversários,
adversos e vicários.

Sou Chamie, Mário.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Por onde entro,
venho de Damasco
pela porta
do apóstolo Paulo.
Sírio sou helenizado.
Venho de Damasco,
por onde saio.

(De Caravana Contrária, 1998)

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho