Um visionário da Aurora Pós-Humana

Ao longo dos anos o Ciberpajé Edgar Franco vem construindo um universo ficcional fascinante
Ilustração: Bruno Schier
01/10/2024

1.
Somos células, enzimas, órgãos, carne e sangue, pensamento e linguagem.

Somos parte do fluxo orgânico da vida, em perpétuo movimento.

Ninguém sabe exatamente como esse fluxo começou, nem por quê.

Ninguém sabe exatamente quando esse fluxo terminará, nem por quê.

A vida nos dá todas as condições materiais e mentais pra viver, mas não confiamos na vida.

Desconfiamos da vida.

Tememos a vida, suas armadilhas.

Estamos apavorados.

Estamos todos apavorados, aparvalhados.

Uma poderosa expressão desse medo foram as ondas de ansiedade que me atingiram recentemente.

Não me lembro de já ter me sentido tão mal antes disso.

Na escuridão do quarto eu fui obrigado a encarar minhas escuridões internas, uma onda medonha de cada vez.

O oxigênio foi ficando cada vez mais escasso.

Fui desaprendendo a respirar.

Uma crise de ansiedade, mesmo que duradoura, mesmo que em ondas, ainda não é um ataque de pânico.

É o que dizem.

Então espero jamais vivenciar um ataque de pânico.

Não faço questão alguma de comparar.

Na escuridão do quarto eu fui obrigado a encarar minhas escuridões internas, uma onda medonha de cada vez.

O corpo exausto, paralisado.

O fluxo orgânico da vida, estagnado.

Insônia-solidão.

Parcialmente paralisado pela depressão, procuro no Youtube o conforto, o bálsamo consolador dos budistas: palestras da monja Coen e do monge Genshō, da escola zen-budista.

Numa plataforma de streaming assisto ao documentário Caminhe comigo, com o monge Thich Nhat Hanh, também da escola zen-budista, e ao documentário Do estresse para a felicidade, com o monge Matthieu Ricard, da escola tibetana.

Tempos atrás um jornalista atribuiu a Ricard o título de a pessoa mais feliz do mundo, e o rótulo pegou.

2.
O bálsamo consolador eu também encontrei numa coletânea de máximas, memórias e reflexões lançada recentemente.

Uma coletânea insólita.

Uma coletânea fora do esquadro.

De um artista fora do esquadro.

De um mago psiconauta.

Provavelmente o único nas universidades brasileiras.

O bálsamo consolador eu também encontrei nos Aforismos do ciberpajé, de Edgar Franco (editora Sinete).

3.
“Eu cultuo o mito do infinito.”

“Sou um filho do Cosmos nascido no Cerrado, na região mais ancestral do planeta, onde a vida primeiramente frutificou e posteriormente disseminou nossa espécie. Estive no Itzimal, vivi o Mani. Sou um Lobo da Terra da Constelação da Águia, um espírito de Braçur, navegante astral fruindo Gaia de mãos dadas com Yurupari. Sou um ser em transmutação na busca por Ra’anga, nada pode me parar, nem a tempestade —que já me tornei —, nem a morte. Sou Poraqué passageiro dos navegantes de Macauã. Eu sou, eu fui, eu serei.”

“As aparências, os corporativismos e os conchavos inescrupulosos regem as relações humanas. Ser um Lobo solitário é só para espíritos fortes e resilientes. A sedução de ser aceito, de ser bajulado, de ter poder, é muito intensa, mas a única verdadeira transformação acontece em um mergulho para dentro, jamais para fora, jamais anulando-se para atender às regras de outrem.”

“Um Lobo solitário não lidera ninguém a não ser ele mesmo. Não coordena e dirige nenhuma matilha, não detém nenhum poder, não sonha com nenhuma glória, não deseja nenhum prêmio. E se você caminhar ao lado dele, compreenderá a beleza e a profundidade de sua solidão. E mesmo a Lua, que ilumina o caminho do Lobo nas noites penumbrosas, tem consciência de que ele seguirá sereno e selvagem também na escuridão.”

4.
Ao longo dos anos o Ciberpajé Edgar Franco vem construindo um universo ficcional fascinante: a Aurora Pós-Humana.

Professor titular da Universidade Federal de Goiás, o Ciberpajé é uma persona alienígena mutante, um vírus fractal que se propaga livremente no Programa de Mestrado e Doutorado em Arte e Cultura Visual dessa universidade.

Mentor da banda performática Posthuman Tantra e pioneiro no uso de enteógenos na pesquisa artística acadêmica, esse feiticeiro tropical conquistou minha atenção permanente em 2013, com a novela gráfica BioCyberDrama saga, produzida em parceria com o lendário quadrinista e ilustrador mineiro Mozart Couto.

5.
“Sou apenas um Lobo fantasiado de homem, aprendendo a fruir entre seres confusos e assustados, uivando sem medo para a Lua esplendorosa.”

“As incertezas são o hino do agora. Sempre foram, você apenas não percebia. Seus portos seguros eram mentiras que você contava para acalentar um coração iludido. Nesse momento, a incerteza é a melodia e eu quero dançar reconectando-me à minha natureza animal e cósmica! Sou a velha árvore e o Lobo encantado com o canto da Lua.”

“Amar a deus é fácil. Amar uma imagem mental criada por você ou por algum dogmático que te domina é algo trivial. Amar alguém que não existe, que você não pode tocar, conviver, experienciar, é facílimo. Por isso tantos dizem amar a deus, uma imagem mental que varia de crente para crente, uma ilusão perfeita. Difícil é amar outro ser humano, com suas complexidades, lidar com as diferenças, com as idiossincrasias do semelhante. Amar a deus é para os idiotas, os fracos, os escravos, amar a si mesmo e ao próximo é só para os fortes.”

“Sou resignado. Não ensinarei nada a ninguém, todas as teorias, textos, poemas, são cinzas, lixo desprezível diante da experiência. Não me ouça, não ouça ninguém, viva, experimente. Ou morra em vida vivendo a existência dos outros.”

“A universidade já morreu há tempos, segue como um zumbi ainda hipnotizado pela própria imagem pedante e cobrindo com a maquiagem da retórica sua incapacidade criativa, sua falta de vivacidade. Eu estou nela pra ajudar a enterrá-la de vez, para que venha o novo.”

“Em 2011 descobri que era necessário propor a mim mesmo uma transmutação e um renascimento, quando me aproximava da idade de quarenta anos, a idade da maturidade. Isso ocorreu logo depois de uma profunda crise existencial deflagrada por uma experiência com o enteógeno Psylocibe cubensis. Durante um período de nove meses — tempo de um renascimento completo — passei a limpo minha existência nesse período que antecedeu a data de meu aniversário, com humildade e serenidade perdoei-me completamente por todos os chamados erros — na verdade experiências fundamentais e fundantes de minha evolução da consciência. (…) Nós somos o que acreditamos ser, então o impacto simbólico de transformar-me em Ciberpajé realmente revolucionou minha vida e minha percepção do mundo. Tornei-me ainda mais sereno, selvagem e vivo, só isso já demarca a grande importância dessa ação para mim. E a minha condição de Ciberpajé envolve o caráter mutante das verdades, é literalmente uma condição mutante, pois estou apto a reavaliar todas as minhas ideias a todo instante e não sei se amanhã, ou mesmo daqui a um segundo, não me transformarei novamente e mudarei meu nome. Estou aberto a novos renascimentos. Tudo é possível, a minha transformação é contínua e eterna como a do cosmos.”

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho