Trazer o livro à cena

"Palindroma", de Heloisa Jahn, faz ver a poesia no ato de editar e o livro como um lugar de afeto
Heloisa Jahn, autora de “Palindroma” Foto: Bel Pedrosa
01/10/2024

A reconhecida editora e tradutora Heloisa Jahn deixou um livro de poesia inédito: Palindroma, feito em parceria com Carlos de Moraes. A Quelônio traz a público essa boa nova, em edição delicada, bonita e respeitosa, uma vez que preservou o formato originalmente pensado pela autora. São cartões em que se encontram um poema em um dos lados e uma ilustração de Moraes no outro.

O impactante é ter em mãos um conjunto de poemas compostos no início da década de 1970. Isso mesmo, esse livro foi escrito e desenhado entre 1970 e 1972, portanto, é obra de mais de 50 anos. Ele chega agora para existir em meio à porosa e empenhada cena poética dos anos 2000. Difícil escrever sobre isso. Talvez Ricardo Domeneck fizesse grande ensaio sobre o tema.

O fato é que os poemas de Palindroma, ao fazerem-se agora contemporâneos, trazem também à mente um outro tempo de poesia. Tempo de Chico Alvim, dos poetas marginais, de Torquato Neto, Waly Salomão, Roberto Piva, Hilda Hilst e toda uma poesia que flertou com o erro e o direito de errar. Poesia que chamou nossa atenção para o corpo do escritor, do leitor, da linguagem e da obra. Que descorporificou as regras corporativas dos monumentos editoriais (ironia boa, tratando-se de uma pessoa que mais tarde ajudou a estabelecer editoras como a Companhia das Letras e Cosac Naify).

Quando uma obra chega assim, instaurando o alargamento do tempo no tempo, já podemos dizer que de um efeito não podemos nos esquivar: é preciso não esquecer que nisso, que forçosamente chamamos de poesia contemporânea, há tudo, há séculos de maneiras distintas de deixar o rastro das vivências afetivas as mais diversas. Logo, na série literária, não há contradição alguma se um livro aguarda 50 anos para chegar, pois o tempo das literaturas e seus diferentes momentos histórico-culturais é sempre o tempo de tudo e também de nadas.

Portanto, vamos aos poemas de Heloisa Jahn com a coragem que a leitura exige, a de nos sabermos anacrônicos e expostos sempre ao erro.

A ordem da leitura
O título sugere que a leitura vá e venha. Teoricamente, um palíndromo é aquilo que pode ser lido nas duas direções, do início pro fim e o contrário. Mas suspeito de que esse Palindroma não se preste muito bem a isso. Está implícito na ideia de palíndromo que o sentido não se altera quando optamos pela leitura em direção contrária, e aqui, no livro de Jahn, a experiência se altera, sim.

Se abrimos o objeto, uma caixinha com lâminas soltas, e damos início à leitura em acordo com a organização que nos chega da editora, ou seja, de cima para baixo, vamos ler um livro em que as ilustrações vêm antes dos poemas escritos; se fizermos a leitura em direção contrária, primeiro vêm os poemas escritos, depois as ilustrações. Como dissemos acima, a literatura do início da década de 1970 estava impregnada do convite à materialidade dos objetos, à corporeidade e objetividade da literatura. Sabemos que, por mais que a intenção de um objeto que mistura diferentes materialidades da linguagem passe por um desejo de ampliação do poema, ver antes uma imagem e depois os escritos é diferente de ver antes o escrito e depois a imagem. Logo, a experiência da leitura do livro não funciona como palíndromo.

Mas não é apenas a posição dos poemas e das imagens que desfuncionaliza esse palíndromo, são também, como teríamos de esperar, os tons dos textos, suas imagens poéticas (o que elas dizem) e suas forças. Se lermos do início ao fim, começaremos por um soneto lírico sem muito entusiasmo, mas logo avançaremos por um texto meio beat, que evoca estrada e que ao mesmo tempo nos coloca parados feito aquele sujeito de Chico Alvim em praça pensando,

Você faz assim:
fica pensando bem calmo
[…]
vai deixando o pensamento armar uma rede larga.
[…]
Você perde a paisagem,
os cheiros, viagens feitas,
perde o nome que as coisas têm.

Bonito ver a sutil ambiguidade na palavra “rede”, que pode ser teia, mas também, claro, lugar de se deitar. Deitar e ficar até que as palavras atravessem o sujeito a ponto de mudar a lógica das substâncias conformadas, “o nome que as coisas têm”. O poema torna-se bonito pelo que de desejo por movimento ele desperta; talvez um desejo que só possamos perceber em estado de preguiça, numa depuração bem calma. O poema teria o ritmo de uma canção ao violão, bem-feita e afeita aos anos de sua escrita, não fosse o excesso de pontuação, marcas da interferência racional e previsível que depõem contra a sutileza das imagens evocadas.

Pensemos, a cena é de depuração para a não conformação das palavras já desgastadas dentro da lógica de sua funcionalidade (exercício de todo poeta), ela tem calma, desejo e paisagens, ou seja, é de uma plasticidade que projeta o olhar no tempo-espaço de uma reflexão que implica o corpo estirado na rede. O quadro parece exigir menos pontuação, enquadramento, direção do autor… mais liberdade para soltar os pensamentos. Como se a música pedisse acordes levemente mais sujos, ou harmonias mais hesitantes, indefinidas, reticentes para que a gente vagasse na cena.

O mesmo excesso de marcação e direcionamento por meio das pontuações ocorre em outros poemas e talvez revelam apenas que estamos diante de versos de juventude, feitos por alguém que mais tarde consagrou seu caminho literário na tradução e na edição de poesias.

Ode aos livros
O ponto alto de Palindroma, inclusive, homenageia essa trajetória, a de quem se dedicou, como poucos, a levar livros aos leitores. Digo isso porque talvez a colaboração maior deste volume, em meio ao cenário contemporâneo da poesia, esteja em não deixar esquecer que literatura, mesmo em tempos de dessingularização material dos livros — reféns que estão e estamos de uma indústria que também só faz multiplicar o objeto nas esteiras fordistas — o livro continua sendo o lugar onde um afeto foi externalizado, e que portanto não pode ser menosprezado em sua materialidade estabelecida, em seu capricho e esmero.

Bem, se o foco se volta aqui ao livro como objeto, temos que retomar a sugestão feita acima, a de que o palíndromo não funciona. Os poemas mais ao final do livro, caso os leiamos na sequência que nos chega da editora, ganham em eloquência e liberdade. Versos como “saio à rua e danço”, “viva o sonho erótico/ […] vivam, soltas, as feras do mundo”, “abaixo a análise freudiana”, entre outros, demonstram, para além do tom de manifesto à vida, que, se aceitarmos a proposta do palíndromo e lermos o livro na direção contrária, experimentaremos outro livro, um que começa mais forte e eloquente e que depois se deita na rede.

Nesse ponto, sim, a consciência de uma artista que, mesmo jovem, já dava fortes indícios de inteligência e sensibilidade raras na maneira de lidar com os livros. Aqui, sim, a arte de editar, estabelecer e oferecer ao público materializações do afeto e do sonho que revelam o lado poético da edição. E, se tomarmos a concepção de tradução de George Steiner, o lado poético também da tradução, aquele que consiste em transportar de um espaço-tempo cultural a outro as paixões que não podem ser desperdiçadas.

Cercada de grandes poetas no tempo da escrita desse livro, Heloisa Jahn não vai ombrear com eles no que diz respeito ao trato estético, antes, vem reforçar um trato ético, o de materializar, fazer emergir e circular, num mundo inóspito e fechado para a poesia, livros que desobjetificam a conformação do sentido das coisas. Mesmo como poeta, sua contribuição continua sendo ímpar como quem traz livro à cena.

Palindroma
Heloisa Jahn
Quelônio
48 págs.
Heloisa Jahn
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1947. Foi uma importante editora, tendo trabalhado na Companhia da Letras e na Cosac Naify. Tradutora das mais renomadas, traduziu autores como Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Jorge Orwell, Charles Dickens, Hans Christian Andersen, Louise Gück, entre outros. Morreu em São Paulo (SP), em 2022.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho