Uma pandemia de crises

Corrosiva e deprimente, a crise parece ser mesmo a manifestação mais ostensiva da noção de contemporâneo
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/10/2024

A noção de crise está tão agravada como expandida, a ponto de ter virado uma pandemia que carrega consigo uma ameaça de morte às mais diferentes formas de sociedade, cultura, pensamento, arte e mesmo de vida humana. Corrosiva e deprimente, a crise parece ser mesmo a manifestação mais ostensiva da noção de contemporâneo.

A crise atual guarda uma diferença marcante em relação à velha ideia de crise, pois então ela indicava um momento provisório e de passagem, enquanto agora, na sua forma contagiosa, ela virou distópica: instalou-se no presente em tão larga escala que contaminou também a ideia de futuro. Mas como pensar a noção de crise como estado permanente? Ela poderia ser sustentada na longa duração, ou conduziria necessariamente ao colapso, a um estágio de devastação total, desta vez sem retorno geológico, sem mágica do caos criativo ou remissão mística post-mortem?

Assim, temos de reconhecer a gravidade extrema da crise ambiental, palpável para cada um de nós — agora mesmo, por exemplo, quando o país inteiro respira o ar poluído das queimadas criminosas que atingem a totalidade dos ecossistemas brasileiros. E é impossível desconhecer a crise sem precedentes da desigualdade econômica, na qual o Brasil ganhou cinco novos bilionários a custo do aumento de milhões de pobres, a despeito dos esforços do governo democrático. Ocorre que há também uma crise de inovação, produtividade e crescimento, a ponto de alguns pensarem o desenvolvimento não mais como uma destinação natural do trabalho, mas como um evento único, historicamente ultrapassado e sem possibilidades de ser novamente atingido.

Também temos de encarar uma crise do mercado convencional, na qual o comércio físico e a indústria nacional estão quebrados pela competição virtual, pela especulação rentista e ainda pelo desequilíbrio da situação mundial dos diferentes mercados nacionais, nos quais a guerra comercial das grandes potências obriga os países emergentes a tomarem partidos numa polarização que os prejudica, pois os impede de atentar para as próprias necessidades estruturais em favor de vitórias táticas de ocasião.

Há uma crise da democracia, como experimentamos na carne com o governo bolsonarista. Mas não se trata apenas do Bozo: a tendência mundial já não é a de alimentar o vigor das diferenças pactualizadas, mas, ao contrário, a de votar o próprio fim da democracia em favor de representantes apedeutas e histriônicos. Cacarecos são agora fenômeno corrente da política ditada pelos biliardários da internet, os verdadeiros agentes geopolíticos contemporâneos, não os governantes democraticamente eleitos. De fato, não há fator da vida democrática mais disruptivo do que a internet, que sob a publicidade do fim dos filtros elitistas está inteiramente filtrada pela máxima acumulação de capital por escroques que estão fora das leis nacionais e internacionais.

A pandemia da crise avança, portanto, nas patas do capitalismo globalizado, do desemprego crônico massivo, da irrupção dos nacionalismos regressivos, do ideário totalitário, imediatista, violento e sádico a ponto de tomar a tortura como exemplo cívico, como alardeou o penúltimo napoleão de hospício, porque o último a aplica como um plano de construção de cortiços de um quilômetro de altura e de pitorescas viagens de teleférico pelas favelas. Funiculì, funiculà.

Há crise da educação, atacada duramente pelos tarados que ocuparam a pasta durante o último governo neofascista, mas também pela falta crônica de investimentos e, inversamente, pela hiperdeterminação econômica da escola, manifesta tanto no custo abusivo das mensalidades como na supervalorização do útil e pragmático em relação à ideia de formação, ou seja, da lenta acumulação do capital intelectual. Obviamente há também uma crise da universidade — esta que, em todo o mundo, mas de forma especialmente brutal nos países emergentes, vê desrespeitada a sua autonomia e contingenciados os seus recursos, pois o principal ímpeto de governos autoritários não é apenas privatista, mas deliberadamente anti-institucional e anti-intelectual.

Há uma óbvia crise dos direitos civis e humanos, que se veem expurgados das constituições nacionais por decretos e jabutis pautados na surdina das madrugadas, por parlamentares movidos a grana e a grama. Há crises persistentes de racismo e crise de preconceitos de gênero, nas quais conquistas igualitárias e ações afirmativas parecem repentinamente perdidas — perdendo até para si mesmas, como quando o identitarismo se contrapõe às ideias universalistas, que fundamentam as democracias, e promovem solidariedades verticais, de tribos, em vez de solidariedades horizontais de classe.

Há crise da imprensa e da regulação dos novos monopólios da mídia digital que afetam todos os espaços da vida civil e das instituições democráticas. Há crise do Estado-nação que se dissolve na grana dos oligarcas sem compromisso com qualquer ideia de direitos humanos ou de valores básicos de solidariedade humana. Como conter os novos impérios tecnológicos, cujas inovações, sucedendo-se e substituindo-se umas às outras, logram não a liberação do homem do trabalho, como fabulavam as expectativas utopistas de outros tempos, mas ao contrário a precarização do trabalho e mesmo da pessoa, a protagonizar um mundo novo de imensas cracolândias?

Há crise das religiões tradicionais e especialmente do catolicismo, cujas comunidades de base, com grande presença e respeito entre os mais pobres, foram atacadas pela própria cúpula da Igreja, a qual, agora, distante das periferias, assiste atônita ao crescimento explosivo das seitas neopentecostais populistas, adeptas da tal teologia da prosperidade, no qual Deus é cúmplice fiel de todo tipo de dinheirismo e conservadorismo alucinado dos costumes.

Há crise profunda nos mais diversos âmbitos da cultura: crise dos paradigmas de conhecimento, crise das humanidades e dos humanismos, pois a admissão do real parece já maquinal e aleatória, ao sabor das fake news e das bolhas homogêneas, dos eus-expandidos da internet, cujo fermento é o sentimento loser: uma equação afetiva fatal na qual se juntam rancor, ressentimento e impotência.

Há crise da literatura, crise do cinema, crise do teatro e de todas as outras formas de arte, cuja centralidade na vida social parece irremediavelmente perdida, uma vez que a própria noção de estética parece debilitada tanto pela moral conservadora como pelo moralismo doutrinário da militância, posto que uma e outra são avessas a complexidade, dúvida, aporia e singularidade — noções que regulam a operação estética. Ou de outra forma, como disse Oscar Wilde, em 1891: “There is no such thing as a moral or an immoral book. Books are well written, or badly written. That is all”.

Diante desse quadro pandêmico, nem de longe exaustivo, compreendem-se inclusive as crises de demência e de negacionismo: funcionam mais ou menos como supor que dormir, drogar-se ou, enfim, perder a consciência preservem o passageiro em pânico da queda do avião.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho