A muralha de Ibiza

Conto de Jorge Sá Earp
Ilustração: Marcelo Frazão
01/10/2024

O rumor se elevava da rua. Tinha dormido até tarde. Levantou-se a custo e abriu a porta da sacada que dava para a rua principal: o bulício do mercado. Fez e tomou café puro. Tinha esquecido de comprar leite na véspera. Se lembrou da chegada e da visão da ilha da janela do avião, quando erguera os olhos do Herald Tribune.

Desceu a escada íngreme da pensão e passeou por entre as barraquinhas do mercado. Tecidos, bijuterias, souvenirs, bonés, camisetas, estatuetas, flâmulas, quinquilharias. O rumor mais intenso. Ciganas numa esquina ofereciam-se para ler mãos. Cuidado con los gitanos — Doña Marcela, a dona da pensão, tinha advertido logo que Jonas chegara. No los traiga en su cuarto! Los alemanes son cabezones. Traen gitanos y se los roban… Por que Doña Marcela pensou que ele ia convidar ciganos para o seu quarto?

O porto e o navio para Palma de Maiorca atracado. Gaivotas gritavam e voejavam. Jonas se senta para tomar um café. Turistas alemães vermelhos de sol. Cartazes nos restaurantes em espanhol e em alemão. Paellas. Horchata. Ele sobe então a cidade velha, ali onde as casas eram brancas. De repente mulheres de negro escapolem como formigas por uma fenda estreita do interior de uma moradia. Ali dentro toda claridade parecia afastada. Embaixo o mar, o ancestral mar mediterrâneo e seu profundo azul. No termo do píer o farol. À esquerda a fortaleza fenícia sob um céu luminoso. Lucas respirou o ar salino e se lembrou da noite anterior: o jantar ao ar livre, a paella, o vinho, a mesa animada de alemães. Depois os bares, El Teatro, onde dois brasileiros falavam à vontade, como se o português fosse uma língua absolutamente incompreensível, dando pinta e ele intervindo com um “tudo bem?”, o que os deixou bastante sem graça.

Jonas desce a ladeira até o pequeno largo e ali no ponto de parada toma um táxi até a Playa de los Angeles.

O chofer o deixa em frente a um bar. Dali caminha na areia até a praia gay, onde havia outro bar, conforme lera no guia. Estendeu a toalha e construiu com o pé um montinho, assim como os banhistas fazem no Rio. Rique tinha se decepcionado com Ibiza; preferia a Grécia. Conhecera-o há pouco tempo, quando fora legalizar um documento no consulado em Roterdã. Jonas ganhara uma bolsa para estudar Direito Internacional na Corte de Haia. Rique era um cara legal. Muito legal. Era de Niterói. Começaram tomando um café perto do consulado e daí a amizade se consolidou. Passavam frequentemente fins de semana em Amsterdã, a cidade vibrante. Rique era louco, mais boêmio do que ele, por incrível que poderia parecer se contasse isso a seus amigos no Rio.

As férias, resolvera vir à Espanha: Barcelona e Sitges. Naquela cidade adorara Gaudí, que apenas conhecera em um filme de Antonioni. E em suas rotas por bares, saunas e boates, não conhecera ninguém, afora um ou outro papo agradável. Porém nada maior. Agora estava ali, estendido na areia da ilha de Ibiza, na praia dos Anjos, contemplando os diversos tons de azul e verde do mar à sua frente. Tentara cair n’água mas estava gelada: era o mês de maio; ainda não esquentara.

À sua frente, um grupo de alemães. Engraçado como a forte língua prussiana, de acentos marciais, não combina com os gestos propositalmente afetados e femininos do sujeito quarentão e de seus companheiros. Fazem para se mostrarem engraçados — claro, Jonas pensou. Sorriu para si mesmo, reclinou-se um tempo e depois se dirigiu ao bar. Ali pediu uma cerveja. Uma música animada era emitida pelo aparelho de som. Em volta do balcão muitos fregueses. Todos à vontade e com os mesmos gestos femininos dos alemães. Mesmas vozes de falsete. O espanhol também é uma língua masculina. Jonas observou. O português, o nosso principalmente, é mais suave. O francês é absolutamente feminino. Mas não é o que o Jean-Philippe pensa. Conhecera-o numa viagem à África, a trabalho. “Claro: é a língua dele. Não tem como julgar.”

Continuava essas elucubrações linguísticas, que lhe distraíam o espírito, fazendo companhia a si mesmo, pondo aqui e ali, uma pitada de humor. Voltou ao seu “acampamento”. Surpreendeu-se então: uns poucos metros adiante das alemãs pintosas estavam os dois brasileiros, que na noite anterior, no bar Teatro, tinham “botado pra quebrar”, feito escândalo. Resolveu, no entanto, não os cumprimentar, fazer que não os tinha visto. Foi tentar então outro mergulho: desta vez a água lhe pareceu mais acolhedora.

Depois de várias cervejas, se deu conta do fim do dinheiro. Só tinha levado cash pra praia, por natural precaução. Pegou um táxi atrás do mesmo bar na outra extremidade da praia e pediu que o conduzisse até a pensão de Doña Marcela. Chegados ali, na esquina, explicou seu problema financeiro ao motorista. Entretanto surpreendentemente o sangue ibérico do homem ferveu: ele começou a lhe gritar injúrias em castelhano e catalão. Jonas respondeu com a mesma suavidade que num instantinho iria subir ao quarto e voltaria como um relâmpago com o pagamento do táxi. O chofer resmungou e se acomodou emburrado na cadeira.

Dívida paga, sobreveio-lhe a fome. Contudo, às quatro da tarde não havia um só restaurante aberto em toda a ilha. Jonas recorreu então a Doña Marcela. A mulher bonita ainda nos seus quarenta anos, bem bronzeada, olhos verdes e cabelos amarrados em coque, exibiu-lhe um sorriso largo. Ofereceu-lhe um xerez e logo lhe trouxe um filé com fritas, acompanhado de salada. Até agora não havia levado ciganos para o quarto, Doña Marcela estava amiga dele.

Quando despertou, já era noite. Tomou mais um banho, uma ducha forte e morna, e desceu. A rua repleta de gente. Os restaurantes anunciavam paellas. Alemães vermelhos de sol e com camisas floridas comiam e bebiam. Jonas subiu as ruelas margeadas de casas caiadas de branco. Voltou ao bar Teatro. Ali conversou com alguns espanhóis, que lhe recomendaram a boate Anfora, para os lados da muralha fenícia. Ao notar que esses amigos recém-feitos, amigos de bar, estavam preferindo conversar entre si, talvez fossem “caso”, Jonas resolveu caminhar até a boate. No caminho estacionou num bar, que se chamava não muito originalmente La Muralla. Pediu uma cerveja. Estava vazio. Nenhuma mesa ocupada; a não ser uma. Jonas voltou-se para ela. Ali estava sentado um garoto. Não demorou que a cerveja pedida e tomada em alguns goles, acrescidos dos outros já consumidos no Teatro, adormecesse a timidez do nosso amigo e o impulsionasse à primeira abordagem inicial. Com voz e gesto.

Logo o garoto estava sentado à sua mesa. Se chamava Dave Wilde. Era inglês. De Londres.

— Wilde?

— É; como ele mesmo.

Jonas o achou bonitinho. Mas não o atraía especialmente. Conseguira companhia para as próximas horas. Contou que tinha vindo a Ibiza junto com um amigo suíço. Mais velho. De Zurique. Morava em Zurique com esse amigo.

—Sei — Jonas disse, com um sorriso sibilino interior. E comentou sobre a reputação arredia dos ingleses. Dave desmentiu: era lenda, folclore. No entanto, Jonas fizera esse comentário quase como um elogio à simpatia de Dave. No fundo conhecia as artimanhas da cerveja nesse processo. Não sabia que deus fenício faria as vezes de Dioniso.

Rumaram para a Anfora. O Muralla continuava sem clientela.

Subiram mais ladeira até que alcançaram uma porta cavada no próprio muro fenício. Seu interior mergulhado na semiescuridão como todos os lugares desse tipo. Os clientes, em sua maioria, ali vestiam roupas de couro.

— É um lugar leather? — perguntou a Dave, que deu de ombros, numa indiferença sarcástica. Impossível dialogar com aquele volume de som.

De repente, Jonas se lembrou da erva que tinha comprado na tarde do primeiro dia de chegada em Ibiza de um cigano no café da praça central. Tinha pegado esse hábito na Holanda, onde as coffee shops eram legais; fumar um depois de ter tomado uma boa dose de cerveja. Lançou a proposta a Dave. Seus olhos brilharam. Jonas propôs irem à sua pensão. Não levara um cigano ao seu quarto, mas indiretamente um cigano fizera com que ele levasse Dave para lá.

Jonas era extremamente desajeitado para apertar um baseado. Dave puxou a maconha e o papel de suas mãos e num instante fabricou o cigarro para os dois. Fumaram e conversaram. Veio o sono. Jonas ofereceu a Dave a cama ao lado. Mal a luz se apagou, o inglesinho saltou de uma cama para a outra. Outra lenda a respeito dos nativos de Albion: a de que eram sexualmente cold fishes. Dave demonstrou ser um peixe elétrico. Ou nem mesmo um peixe, mas um mamífero quente de pele aveludada, um felino bravio. Wild mesmo.

Dia seguinte, Dave se sentou de súbito na cama:

— Que horas são?

— Onze — Jonas respondeu com os olhos turvos, o rosto amassado, tonto ainda da agitação vivida.

O garoto se levantou e se vestiu com pressa. Estava visivelmente preocupado. Prometeu voltar a encontrar Jonas na Playa de los Angeles. Rápido beijo de despedida.

Mais tarde foram longas as caminhadas, idas e vindas de Jonas pela praia. Seu pensamento vagava triste: queria tê-lo visto mais uma vez. No entanto, o suíço de Zurique, ao surpreender Dave chegando às onze da manhã no quarto, com certeza armara um escândalo. Aqui, a imagem da cena de ciúmes provocou o riso de Jonas. Um riso temperado com amargura. Ele não gostaria de ser a parte traída. Mas gostaria de ter Dave ao seu lado.

Uma brisa forte empurrou areia em sus olhos.

Uma gaivota gritou ao longe.

Aos poucos, na distância, o bar ia se desentranhando de uma percepção nevoenta. Divisou os alemães e os dois brasileiros conversando em grupos separados junto ao balcão.

Jorge Sá Earp

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1955. Cursou Letras na PUC/RJ. Formou-se pelo Instituto Rio Branco e ingressou na carreira diplomática em 1981. Publicou 20 livros, nos gêneros poesia, conto e romance. Em 1994, recebeu o prêmio Nestlé de Literatura pelo romance Ponto de fuga (Paz e Terra). Publicou em 2023 o romance memorialístico O fio da seda (7Letras).

Rascunho