Pedestres da loucura

Resenha do livro "O livro das cousas que acontecem", de Daniel Pellizzari
Daniel Pellizzari, autor de “Digam a satã que o recado foi entendido”
01/11/2002

Quem se espantou com o vigor da estréia de Daniel Pellizzari, em Ovelhas que se perdem no céu, tem novos argumentos de estranhamento. O livro das cousas que acontecem (ilustrações de Luiz Pellizzari) abre a coleção Tumba do cânone, da jovem e independente editora gaúcha Livros do Mal, e mostra que o pior recém começou, sendo que o pior é o melhor. As 14 histórias revelam uma maior unidade temporal e de estilo, qualidade de ritmo e encadeamento do que a primeira obra. E é bem mais agressiva, exposta num tom ultra-realista. Se o realismo mágico exige um pacto de magia, a crença aqui é instaurada na absoluta descrença. Ninguém acredita em nada e, portanto, tudo é possível. Os personagens — outsiders — são pedestres da loucura. Caminham à toa pelas suas idéias, neuroses e lembranças. Passaram dos limites, não se dão conta e fracassam ao comunicar seu desespero. Inconseqüentes, resvalam na autodestruição do desejo. O desejo subordina as ações singelas aos extremos da carência. Um funcionário de sex shop limpa as cabines de masturbação e, de repente, descobre o sabor doce do esperma e procura, ensandecido, o dono da golfada. As circunstâncias, as normas e as convenções desaparecem no ato de busca. O que existe é apenas a obsessão. Como num filme de Robert Altman, as histórias conversam entre si de forma invisível e casual. Um aposentado convive com estranhos buracos que falam no corpo. Uma cidade desaparece do mapa. Causa-conseqüência não funciona nesses parâmetros, unicamente conseqüências da conseqüência. Os episódios começam do nada, de uma mudança absurda de ordem, de uma novidade. São inverossímeis e coagem pelo exagero. Mas é preciso não confundir com humor grotesco e negro. Não há gargalhadas pontuando as piadas. O risível é comovente, fazendo a sensibilidade adquirir uma posição crítica, um mal-estar permanente, perquirindo a validade da rotina (as tragédias irrompem à medida que as alucinações ganham uma rotina). A mulher que mata as pessoas num simples bater de botas (metáfora popular da própria morte) não consegue conter a autoridade da fantasia e do ego. Em Pellizzari, mundos virtuais disputam as possibilidades das fábulas. A narração segue um andar delicioso, de desprendimento, que honra os epítetos de um Campos de Carvalho. Veja o fragmento do conto Modo de dizer: “Francisco, um homem de sorriso magro, cabelo líquido e fidelidade nula”. Para ganhar dessa síntese, somente os “ácaros sonolentos”.

O livro das cousas que acontecem
Daniel Pellizzari
Livros do Mal
115 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho