Infiltrações e realismo

Resenha do livro "Dezembro indigesto", de Ronaldo Cagiano
Ronaldo Cagiano, autor de “Concerto para arranha-céus”
01/11/2002

O poeta mineiro Ronaldo Cagiano estréia nos contos com um estilo canônico e adjetivado, portando um vocabulário requintado, mais da língua escrita do que da língua falada. Em Dezembro indigesto, premiado com a Bolsa Brasília de Produção Literária de 2001, dois Cagiano estão duelando, buscando sobrepujar a voz e afinar o ponto certo do timbre. O primeiro é o leitor introjetado ainda no autor, evidenciando suas influências e sobrecarregando os personagens com a bagagem literária. O narrador se infiltra na história, formatando as figuras à sua imagem e dissemelhança.

Na maioria dos 25 contos, surgem referências e citações de Bandeira, Camus, Drummond, Sartre. Os pensamentos intrusos são como epígrafes jogadas no próprio curso narrativo e que interferem na significação do conjunto. A naturalidade escapa, os protagonistas se tornam menores do que a intenção ideológica, marionetes repercutindo outros livros, puxando constantemente o enredo para fora do texto. Nesses momentos, a intensidade se esvai pela previsibilidade teórica, que se divorcia da alta carga realística desenvolvida nas tramas. Das duas uma: ou acredita-se que os personagens têm a mesma formação culta e escola, ou o escritor realmente interrompe sua intensa capacidade de fabulação com um deslumbramento intertextual. Em algumas passagens, Cagiano mais lê do que escreve, ou talvez esteja apenas avalizando sua escrita com clássicos, o que não era necessário. Exemplos do procedimento: ao recorrer duas vezes a pintura de Portinari para descrever retirantes (o que anula qualquer frescor da observação) e a de citar em contos distintos (Tangerine Dreams e Contraponto) o mesmo pensamento com pequena variação: “Stalin disse que a morte de um homem é uma tragédia, a de um milhão uma estatística”.

O melhor Cagiano é o que não deixa provas de sua existência. O que desaparece para a visibilidade das histórias. O cotidiano febril, a violência sexual e a urbanidade caótica são apanhados com secura, pontuando o suspense e a revelação nos contos Traição, Abuso e Legião estranha. Nenhum comentário sobressalente. Neles, somente a realidade toma posição, colocando o escritor como um dos mais representativos da nova geração. Em Abuso, uma mulher sofre com os altos e baixos de uma memória fóbica, enfrentando a assombração dos maus tratos da infância. A cena do agressor coxo fugindo de bicicleta é uma passagem antológica de terror psicológico. Ninguém vai querer olhar de novo. Cagiano mostra uma agressividade ímpar, uma fé pessimista ao soltar as amarras bibliográficas. A solidão é seu principal tema, encadernando o índice em um único substrato. Todas as figuras estão escanteadas, não conseguindo consumar a relação (casal de guerrilheiros de Contraponto), isoladas no próprio verbo (O profeta), e presas na encenação política (o camaleão de Pulhas S/A).

Dezembro indigesto
Ronaldo Cagiano
Governo do Distrito Federal
242 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho