Lord Jim (uma releitura)

Reli essa obra movediça, que aparentemente conta uma história de “perda da honra” e gostaria de partilhar com os leitores de Rascunho algumas novas anotações feitas à margem
01/11/2002

“Havia alguma coisa no impecável asseio de Jim, desde o capacete reluzente até às perneiras de tela e aos sapatos brancos, que personificava, aos olhos sombrios e encolerizados de Brown, uma correção que todas as tendências da sua vida escarneciam e condenavam.”

O livro a que pertence o trecho acima (de rara penetração no nervo dos antagonismos ao mesmo tempo mais banais e mais misteriosos) é daqueles clássicos modernos a que sempre estamos voltando, para descobrir qualquer coisa que escapou às primeiras leituras, se não todo um novo significado por trás de aspectos que as releituras vão extraindo do fundo inesgotável das obras-primas. No caso, refiro-me ao “amontoado de imagens quebradas”, como diria o místico George Fox, que fazem um velho romance de Conrad — o Lord Jim — nunca se parecer com o mesmo livro já lido antes, nas muitas praias de brilhos falsos enterrados na areia da literatura. Reli essa obra movediça, que aparentemente conta uma história de “perda da honra” e gostaria de partilhar com os leitores de Rascunho algumas novas anotações feitas à margem, agora, de uma Quanto ao espelho de bronze do Jim, ele é quase um de vidro enterrado na praia semovente dessa história de uma bela edição americana, de 1952, impressa para os sócios de The Limited Editions Club, New York, e ilustrada pelo gênio de Lynd Ward, já vão lá cinqüenta anos…

Acompanhado, agora, pelo rigor (não isento de fantasia) das belas litografias coloridas do grande artista — em páginas duplas de selvas sombrias da Malásia, portos de sampanas e jardins de hotéis cheios de histórias correntes entre os “párias das ilhas” — reli o Lord Jim (pela segunda, terceira vez?) e mais uma vez percebi quanta fumaça de charuto Joseph Conrad sopra sobre o real núcleo dessa narrativa de um ato de covardia que se torna na neurastenia de “um jovem de coração puro”. Pois o autor gostava de escrever assim, na neblina ou na onda de calor insuportável que faz tremer a cor viva de um guarda-sol manchando a paisagem. A maneira do autor de Hearth of Darkness nunca seria a direta, e o seu olhar era o de um capitão elegante, aristocrata, voltando-se para os lados quando uma senhora nervosa atirasse algum objeto brilhante ao mar que acolhe tudo — para depois ir chorar na cabine da primeira classe. Se, depois, fosse ela justamente convidada, por “coincidência”, para a mesa do solitário Capitão Conrad, eles falariam da estação das chuvas, das monções e das aves migratórias, do sol na praia de Brighton e de como a tarde pode se precipitar sobre um terraço de Veneza… mas o comandante de olhar sereno jamais mencionaria o caso de um pequeno copo de ouro (que boiara ainda um momento na água, antes de afundar).

Ao ler a edição brasileira de Lord Jim — ainda muito jovem — na tradução magnífica de Mário Quintana para a Editora O Globo (RS), lembro que já naquela altura eu me irritara com toda a tempestade justamente em outro copo (de água), feita por Jim e até por Marlow, o narrador e alter ego de Conrad. Por que tanta comoção, tanta inquietude balbuciante naquele jovem vestido de branco imaculado, parecendo uma noiva traída pela paz no convés de um barco? Todas aquelas reticências e frases alongadas no jardim do hotel, junto com a noite de cigarros atirados para além do círculo onde o homem mais velho ouve a história do rapaz julgado covarde porque saltou a amurada do Patna — navio de peregrinos e cargas duvidosas, prestes a virar sucata e lembrança de saltos no escuro… Ora, se não se pode exatamente elogiar o desvio de um jovem imaginativo, numa noite de mar calmo, ao pego no contrapé da tranqüilidade de desastre (pois os desastres parecem preferir as noites perfeitamente tranqüilas para irromper como a cabeça da baleia do fundo do oceano de desordem), se não podemos deixar de lamentar seu mau passo, saltando para a companhia da pequena tripulação de crápulas pondo-se a salvo num bote, se tudo o que ocorreu de lamentável é mesmo isso — lamentável —, parece também uma obsessão doentia que o jovem desgraçado não acorde, não se faça um pouco menos trágico na sua roupa branca manchada pela pata do macaco das fugas, não tendo sido ele o primeiro, nem parecendo que vá ser o último a levar o seu susto de idealidade…

Alguém devia levá-lo a qualquer beco do fim mundo, talvez, entre mulheres e perdedores escolados. Uma alma boa — e cínica — deveria levá-lo um pouco além da castidade física e moral (Joseph Conrad era uma alma elevada), com a sua roupa branca “suja” pelo salto. A vida, Jim, é justo esse salto que lamentamos menos ou mais, tendo que seguir sem tempo para investigar entre as ramagens, as águas poluídas e os poços sem fundo. Bem, é também verdade a miserável lata velha do Patna navegou, adernada, venceu as milhas do desastre e foi milagrosamente salva, vindo a dar a num porto qualquer, rebocada. Navio horrível. A prova viva — e enferrujada — do pecado.

Não há outra solução, já se sabe: os capitães de marinha aposentados têm de instaurar inquérito para investigar o caso da velha banheira abandonada e, depois, julgar e punir os fujões (todos sumidos no oco do mundo)… ou pelo menos aquele único que veio ao encontro do tribunal dos portos, como um anjo caído. Eis o Jim que ocupa o seu posto, há quase oitenta anos, na literatura: o “Lord” Jim de capacete, calça e sapatos da mesma cor – pisando na lama do julgamento, na sala abafada, com todo mundo desatento à sua versão e querendo dar o caso por encerrado. Mas ele não ajuda, não inventa atenuantes, não facilita o trabalho dos antigos capitães lembrados de que, um dia, também foram jovens. Jim, o irritante Jim “na nuvem do seu mistério” quer devassar a sua culpa e quer a punição que mereça o seu coração mole.

“Mole” ou puro? Já nem sabemos o que seja um “coração puro” — mas de moleza sabemos como o diabo. E o diabo faz a festa para a perda do jovem imediato: ele é punido e acha branda a punição, recebe o castigo e considera mínima a sentença de desonra pelo resto da vida. Eis o drama — hoje um tanto absurdo — desse Billy Budd não-enforcado no mastro da gávea: Jim permanece horrorizado com o seu salto no escuro, quer interrogar as manchas das cabeças escuras que o julguem em quaisquer rodas de ex-colegas da vida no mar e até daqueles que pisam em terra firme, mas sem código de honra a respeitar. Ele quer a inocência de volta e, com ela, uma espécie de salvação na sua agonia mais psicótica do que tudo.

Nada disso, entretanto, está no verdadeiro foco do interesse de Conrad no romance que só vai chegar ao seu epicentro de sombras quando o “capitão” Brown afinal aparecer, nos confins da fuga do “Lord”, para lançar a frase que o alcança — e o destrói — no escuro, já no final da obra-prima.

“TUAN JIM”

Os que leram o romance sabem que Jim se tornara o “Tuan” (algo como Lord) dos nativos do Patusan — o lugar perdido no Extremo Oriente onde o rapaz pudera, enfim, esconder a mancha da sua “desonra”. Ali, naquela selva sem contato com os ocidentais, o antigo imediato de um navio esquecido fizera por onde remendar os buracos invisíveis na farda branca, lustrando de novo os sapatos a fim de imprimir novas pegadas distantes da praia dourada dos seus sonhos de jovem…

O livro é um pouco sobre isso — o quanto a juventude é traída por si própria —, mas é, acima de tudo, sobre a traição maior da vida, que pode nos ocorrer em qualquer idade, quando “caímos” porque uma fé qualquer nos falta, uma certeza funda se cinde e o nosso ser pode se torna vulnerável a uma única frase, a um gesto do acaso, a um acontecimento funesto na monotonia de um parque ou no horizonte de algum paraíso precário de fuga.

O Patusan era um desses paraísos precários. E é nesse horizonte que um dia vai surgir o sinistro, o corrompido Brown, um pirata vulgar ali levado pelas correntes e desembarcado pelo azar da cobiça barata. O “capitão” Brown e sua malta não pretendem mais do que botar a mão em alguma bagatela perdida, algum butim dos nativos, seja de que tipo for. Raciocinam que “deve haver qualquer coisa de valor”, mesmo ali no Patusan-limite, na zona extrema do arquipélago das ilhas onde um homem branco fora se refugiar…

A mente da escória não pode enxergar num “coração puro” mais do que um fugitivo, um culpado, um homem de alma tão perdida quanto aquele lugar. E a cena final — como não poderia deixar de ser — vem imersa em engano e névoa, quando Brown, sem nada saber de Jim, resolve apostar na frase pronunciada só para “ver o que acontece”:

— “Eu sei quem você é…”

Quer dizer, “eu te conheço” (sem conhecer), “eu te manjo” (sem “manjar”). Reduzida a nossas gírias atuais — num tempo de desonra — pode parecer pouco.

No Patusan, e ali na neblina que a noite sopra sobre um barco de sombras naufragadas, para Jim… é muito. As palavras — sempre as palavras! — vêm, sem certeza, ferir uma honra afinal verdadeira, um fortaleza moral que existia no meio da aparente fraqueza.

Na hora incerta do crepúsculo, naquele limbo em que Jim caiu perante o seu próprio reflexo na hora indecisa, o céu da ilha é como um espelho vermelho e o “amontoado de imagens quebrados onde bate o último sol” ilumina o morto ainda vestido de branco, ao ser levado pelos nativos dissolvendo-se lentamente no interior das palhoças das quais se erguem alguns rolos de fumo.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho