Caderno de notas (3)

Três romances que acabam de chegar às livrarias, três espantosos romances, compõem, se tomados em conjunto, uma perspectiva vigorosa para a literatura brasileira do novo século
01/11/2002

Três romances que acabam de chegar às livrarias, três espantosos romances, compõem, se tomados em conjunto, uma perspectiva vigorosa para a literatura brasileira do novo século. Falo de Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll (editora Objetiva), de Nove noites, de Bernardo Carvalho, e de Braz, Quincas & Cia, de Antonio Fernando Borges (esses dois lançados pela Companhia das Letras). Três livros que, num ambiente de best sellers nefastos e projetos retrógrados, vêm reafirmar a fertilidade de nossos melhores escritores.

O romance de Noll, um escritor surgido nos anos 80, difere muito dos outros dois, assinados por escritores que apareceram já durante os 90 e que, por sua vez, guardam entre si fortes semelhanças conceituais. Mas diferenças e semelhanças se referem, em geral, mais a quem lê, do que a quem escreve. Falam do leitor, e de seus olhos cheios de anseios e de reflexos, e não da escrita. Noll tornou-se um nome chave na literatura brasileira, tão importante quanto o de Sérgio Sant’Anna, o mais importante narrador surgido no país durante a década de 70. Como seus livros anteriores, o tema de Berkeley em Bellagio é a instabilidade do real e os instrumentos precários com que a literatura tenta, em vão, acessá-lo. Em vez de se ver como uma máquina de fotografar o mundo, como consideram os novos naturalistas urbanos, ou uma máquina de confessar e se lamuriar, como julgam os sentimentalistas do novo regionalismo, a literatura é um instrumento delicado, que coxeia e falha, diante de uma realidade que, ela também, é só fragmento e vacilação. E assim Noll a maneja, com coragem e uma sensibilidade incomum. Não é por acaso que seu romance traz ao fundo a figura do filósofo irlandês George Berkeley, com seu pensamento empírico e sensualista, ele também quebradiço e insuficiente diante da brutalidade do real.

Já nos anos 70, Sérgio Sant’Anna rompia com os vícios modernistas, com os herdeiros do sentimentalismo regionalista, com o poder coercitivo do naturalismo urbano e, sem temer o estado de solidão, passava a fazer uma literatura pautada pela independência conceitual e obcecada pela surpresa. Cada romance que publica é não só absolutamente distinto do anterior, como o contradiz. Cada novo livro de Sant’Anna é um livro inaugural _ e assim são vários os Sérgios Sant’Anna que temos a chance de conhecer. Ele é um autor que coloca em xeque a questão da autoria e que, desse modo, atenuando a força da assinatura, põe em crise a própria noção de autor. É sintomático que hoje, num tempo de best sellers pré-fabricados e fórmulas requentadas, ele esteja um tanto esquecido. Sem Sant’Anna, sem seu atrevimento e sua coragem, provavelmente não haveria nada do que aconteceu de bom na literatura brasileira que o sucedeu.

Já João Gilberto Noll faz um percurso inverso, mas nem por isso menos perturbador. Seguindo, a seu modo, uma trilha aberta por Clarice Lispector rumo ao coração selvagem da escrita, Noll faz uma literatura de forte interiorização, em que a própria idéia de literatura é posta em questão, o centro se deslocando da “obra” _ e, portanto, da construção _ para se aproximar da ascese e do rito. A literatura de Noll tem caráter religioso, não no sentido doutrinário, ou de catequese, mas naquele em que o texto aspira a se tornar ato transcendente e aparição do que não se vê. Faz uma literatura de celebração e ninguém passa pela leitura de seus livros sem sofrer algum abalo. Berkeley em Bellagio, o romance que agora lança, dá um salto à frente: mais do que nos livros anteriores, ele trabalha com elementos íntimos e se reaproxima assim, avidamente, da esfera da realidade sem, contudo, conservar a ilusão de retê-la, ou de fotografá-la.

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É nesse ponto, e só nesse, que Berkeley em Bellagio se aproxima de Nove noites – o romance mais pessoal, e talvez o mais impecável, que Bernardo Carvalho já escreveu. Pessoal não só pela presença de referências diretas ao real, pela proximidade com a investigação jornalística, pela linguagem factual e seca. Pessoal, sobretudo, porque nele Bernardo expõe, de modo velado, mas expressivo, sua teoria da literatura como jogo, um jogo perverso e perturbador, que vem agitar a realidade, desdobrá-la e, em vez de pretender retê-la em seus enquadramentos, só a expande e engrandece. Nesse aspecto, e também só nesse aspecto, o romance de Bernardo Carvalho abre um canal em direção a Brás, Quincas & Cia, o desconcertante livro de Antonio Fernando Borges. Também Borges _ o nosso Borges carioca _ trabalha a literatura como um afinadíssimo jogo intelectual. Com uma paciência suíça, ele constrói uma narrativa estupenda, armadilha que engolfa seu leitor, que o arrasta para um universo existente unicamente na letra, do qual o real fica banido e no qual só aparece quando falsificado. Brás, Quincas & Cia é um romance que, de um lado, exerce a literatura como um refinado exercício intelectual, mas, de outro, e justamente por isso, põe em questão a materialidade do mundo em que vivemos com tanta naturalidade, e que, contudo, nem sempre é tão natural e material. Assim, nessa forma muito indireta de sobrevoar o real, o romance de Borges o coloca em questão, e de modo muito mais radical que os exercícios retóricos enfadonhos de naturalistas e sentimentalistas.

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Nas duas últimas décadas, a literatura brasileira foi dominada por romances simplistas, que ora exploram um naturalismo urbano fortemente influenciado pelas linguagens audiovisuais, e por isso se julgam “contemporâneos”, ora se contentam em tratar a memória como algo pastoso e definitivo. Uns, maus alunos de José Rubem Fonseca, exploram a violência e a miséria com os mesmos métodos pulverizados da publicidade e dos videoclipes; outros, numa exacerbação lastimável do Eu, se voltam para confissões e rememorações que só podem interessar a seus próprios umbigos. Muitos desses autores se espelham, ou vieram mesmo, do cinema e da televisão _ e cometem a ingenuidade de pretender que a literatura, para acompanhar os novos tempos, deve com eles ombrear e competir. Quando, como nos mostram Noll, Bernardo e Borges, a literatura só merece esse nome quando se encoraja a ser o que é: não fotografia ingênua, não confissão narcisista, mas o terreno da fantasia e da construção.

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A luta contra o novo naturalismo e o novo sentimentalismo que infestam a literatura brasileira de hoje se expressa, ainda, em outros projetos que merecem todo entusiasmo. Milton Hatoum, com sua estética em que a memória vem servir ao sonho e, ao submeter-se a ele, se revela como o que de fato é: duplicação e farsa. Fernando Monteiro que, isolado no Recife, e como Bernardo e Borges, aposta na literatura como construção refinada, como uma deliciosa armadilha, a golpear e desafiar as crendices do leitor. Monteiro escreve para desafiar o leitor, para deslocá-lo de sua comodidade, para arrancá-lo de sua postura de “poltrona e óculos”. O leitor, Monteiro nos mostra, não é o que, através dos livros, vê, mas aquele que, ao ler, nada ou cada vez menos vê. Também no Recife, Raimundo Carrero, já mais próximo da literatura ritualística de Noll, vem se destacando com uma escrita de vigor incomum, ele também contaminado pela mesma insatisfação que corrói um Sérgio Sant’Anna, produzindo narrativas que se superam e se desmentem, na aposta corajosa em uma escrita “sem estilo”, na qual a maquinação supera a confissão. Sem se dedicar a pregações, ou mistificações, Carrero faz uma literatura que manipula as estruturas mais íntimas do humano e que as dissolve na grande borra da fantasia. Ao ler Carrero, nos tornamos homens menores e, justamente por isso, homens melhores.

São escritores, todos eles, que parecem ter solvido as lições vindas de um campo distante, mas fértil: o da poesia de João Cabral de Melo Neto. Escritores que, sem perder a sensibilidade e sem se subtrair a escolas ou grupos, enfrentam a ambigüidade que rege toda escrita e apostam na literatura como construção _ e não como retrato banal da realidade, como pretendem os novos naturalistas, ou como memória narcísica e desnecessária, como fazem os sentimentalistas do novo/velho regionalismo; ou ainda como divertimento frívolo, como ela se converte nas mãos dos fabricantes de “mais vendidos”.  É curioso que um poeta, Cabral, se perfile atrás de toda essa geração. João Cabral foi, provavelmente, a voz mais lúcida que a literatura brasileira produziu ao longo do século 20 e, por isso, é muito significativo que ela penetre, agora, com tanta contundência, a mente de nossos narradores. A lamentar, apenas, que dela se esquivem, quase sempre, os próprios poetas. Afora poucas exceções, entre elas os versos magníficos de um Fabrício Carpinejar, quase nada mais ecoa da voz e das lições de Cabral entre a poesia que hoje se faz.

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Refletindo um pouco mais a respeito da literatura de João Gilberto Noll, penso no que Fernando Pessoa chamou, a propósito da poesia produzida em Portugal na primeira década do século 20, de “impulso religioso”. Em carta a Jaime Cortesão escrita em 1913, Pessoa distingue: “que é o dinamismo de fora para dentro (e que é bom não confundir com o outro sentimento religioso, (…), a que falta o impulso por ser de mais subjetivo, meditativo apenas”. Seguindo Pessoa: não se trata de fazer literatura religiosa, ou pregação religiosa. Mas de trabalhar, de outra maneira e em outra direção, com aqueles impulsos que, na maioria das pessoas, desemboca na conversão a uma religião _ e que Freud analisou, de modo definitivo, em O futuro de uma ilusão. No caso, partir da idéia de que o impulso religioso é um impulso para ao devaneio, para a ilusão, e então tomá-lo como o que de fato é, quer dizer, invenção arbitrária, ilusão pura, crença naquilo que não cobra crença alguma, mas só adesão.

A literatura de Noll aponta para esferas elevadas, que superam a atmosfera dos clichês e das meias verdades hoje dominante, e abdicam do mundo para dele se aproximar melhor _e isso está mesmo em Berkeley em Bellagio, romance que Noll chega a definir como uma narrativa “gay” e que, de fato, não só pelo tema do amor homo-erótico, mas por praticar uma estética marcada pelas qualidades em geral (e enganosamente) a ele atribuídas. Mas não é um apontar glorioso e “crente”, é ao contrário a meditação do homem que rasteja, que conhece seus limites estreitos e sua precariedade, que afunda e arqueja, mas, ainda assim, eleva o olhar. Não em busca de uma salvação (já se foi o tempo em que se podia acreditar que a literatura é útil), nem de uma retratação (na qual a literatura viesse corrigir a realidade perfeita, enquadrá-la em seus dogmas e, assim, retratar o mundo tal qual se supõe que ele seja). Mas de uma perspectiva menos crente, mais aberta e paradoxal a respeito da vida e suas possibilidades. A literatura, Noll parece nos dizer, é possível _ e isso devia bastar. Ela não serve para nada, mas só para ser intensamente o que é: literatura.

Aliás, a correspondência de Pessoa, quase toda ela _ e, por que não, também sua poesia e, em particular, uma obra-prima como o Livro do desassossego, um livro chave para quem deseja entender a literatura produzida a partir do século 20 _ toda essa literatura maneja questões que, de outro modo e com outra sensibilidade, Noll, ele também, não se cansa de trabalhar. Questões que parecem ser, na verdade, o combustível da literatura de Noll, aquilo que o faz escrever e também aquilo que (como um carburador ou um estômago) depois ele “digere”. Macera e cospe. É nesse resto _ e não em alguma estética nobre, ou auto-centrada _ que se encontra a força da literatura de Noll. Como Pessoa (e como Kafka, como Clarice), Noll trabalha uma literatura que pretende não divertir, ou retratar, ou explicar, mas “fazer sofrer”. Sem fotografar o real, é da dificuldade em acessá-lo _ e, portanto, daquilo que ele tem de mais áspero e constrangedor _ que seu leitor sofre.

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Daí a importância, agora, de dois autores como Bernardo Carvalho e Antonio Fernando Borges. Já “desiludidos”, sem nenhuma esperança tola de que a literatura possa vir a ser algo mais que literatura, os dois se põem a trabalhar narrativas presididas por grande liberdade interior, e interessadas não em recriar o mundo, em interpretá-lo ou macaqueá-lo, mas sim em engendrar mundos paralelos, com suas regras autônomas e suas ordens, ou desordens, intransferíveis. Máquinas de subjetivação _ e não máquinas de normatizar o subjetivo _ em contato com as quais o leitor expande velozmente suas perspectivas, multiplica ao horror suas visões de mundo e, assim disperso e fragmentado, sincroniza com o mundo em que vive sem, contudo, nele se escravizar. Jogos de liberdade, nos quais é preciso desejar a liberdade para jogar. Uma literatura, enfim, que se descola do mundo para, na distância dolorosa, desejá-lo mais intensamente. (FIM)

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho