Depois de quinze anos de atividade literária ininterrupta, a minha posição é novamente a do estreante e não deixa de ter certo agrado aos meus olhos. Crescer depressa é um dos mais alarmantes sinais de envelhecimento no Brasil. (LÚCIO CARDOSO – Diário)
Uma literatura que se inaugura — de modernidade — com um Machado de Assis deveria ter mantido o rumo dado por começos tão magníficos, em berço dourado que virou ou poltrona acadêmica ou espreguiçadeira modernosa. Na cronologia que eu uso — que não diz respeito somente ao tempo que passa — esses “começos” evidentemente não se referem a José de Alencar (que Ariano Suassuna, enquanto professor de Estética, na Universidade Federal de Pernambuco, ensinava ser “mais importante do que Joyce”. Os alunos do autor de A pedra do reino iam atrás disso e se ferravam, é lógico).
O pontapé inicial do grande romance brasileiro foi dado, auspiciosamente, por um gênio moderno como poucas literaturas tiveram, no início de um primeiro tempo. Machado, o goleador, o goleiro e o gandula ao mesmo tempo, é a divindade tutelar do game “Literatura” — jogo que ainda não terminou, enquanto aqui estamos consultando bússola adoidadas, no qual o Norte e o Sul que ele traçou estão apagados daquela boa medida flaubertiana, desenhada com compasso que traça, no ar, o arabesco abstrato de um Stendhal que tivesse o vigor extraordinário de um Sterne viajando de Matacavalos para o centro do Rio de tinta que se apaga.
Se eu fosse professor de Estética ou de Literatura, começaria por ensinar esse pentiment aos alunos — e a sorte grande de ter tido Machado na base do traçado, de pés descalços e mão enluvada, no começo de tudo. Nunca admiraremos o suficiente o mulato que nos legou a herança da sua prosa (não da sua poesia) como quem abandona um guardanapo usado, num fim de tarde onde foi servido chá de grandeza, em verdes terraços. (Os acadêmicos que trocam receitas de Viagra, na Academia Brasileira de Letras, nas tardes de hoje, deviam evitar o olhar severo do busto do Dom Casmurro.)
Pois muito bem. Estávamos falando da sorte grande (e meu assunto não é Machado nem a loteria, mas Lúcio Cardoso), e agora devemos fixar o Brasil perdulário que foi, pouco a pouco, perdendo o rumo dado pelos aéreos instrumentos machadianos, até restar somente o fragmento de etiqueta agora na nossa mão, entre bolinhos e chás que mataram Guimarães Rosa. Fetiches à parte, vamos com calma, e reconheçamos que não foi bem assim, conforme acabo de saltar algumas léguas, serelepe: a nossa boa literatura ainda prosseguiu recebendo as águas primaciais de Euclides da Cunha (a sua obra-prima, Os sertões, que acaba de completar cem anos, é tão grandiosa que já acolheu Vargas Llosa, um húngaro e dois argentinos enfiados no mesmo camisão do Conselheiro — o que soa quase pornográfico), além de ter produzido um Le grand Meaulnes que é bem melhor do que o francês. Refiro-me a O ateneu, de Raul Pompéia, que antecedeu Alain Fournier também no tempo de uma imaginação transida pela febre das adolescências.
Uma literatura começa com pelo menos três mestres criadores de obras de alta voltagem literária — e é difícil acreditar que esteja produzindo, agora, apenas os budas gotosos ligados na monotonia das editoras.
Foi assim mesmo? Caiu de cem metros de altura? Não, não foi assim, leitores. A queda foi gradual, progressiva e paulatina — e paulificante também (o que espero que este texto não esteja sendo, até agora). Andando com o travelling, Afrânio Peixoto pode ser visto a copiar, em seguida, o modelo do romance francês de segunda (ou terceira?), à maneira dos diluidores de Balzac ou daqueles dois anões descartáveis, Paul Bourget e Marcel Prevost. Foram as tutelares “divindades” de cartório que Afrânio escolheu para si, enquanto o inquieto Monteiro Lobato — inquieto demais — começava a sua caminhada de articulista de jornalecos até se tornar no (bravo, fundamental) editor e criador de literatura infanto-juvenil docemente rural, em nossas letras. Lobato legou à criança brasileira, não só do seu tempo, os sítios cheios de cores e gentes candidamente caipiras, enquanto o espírito sombrio de Lima Barreto olhava para além daquela cerca, vendo a estranheza dos destinos, nos subúrbios do mesmo Rio de Machado… mas isso não foi suficiente para emancipar o seu olhar (ainda assim, original) de influências conflitantes demais para lhe dar sossego e ânimo de seguir o próprio faro — independentemente — para o pequeno e o não-relevante, tomados como temas à Bartleby, da melhor linhagem das obsessões de Kafka, Svevo e Joyce.
Outro Barreto (Paulo), escrevendo sob o pseudônimo de João do Rio, enveredaria por dentro da noites — elegantes e deselegantes —, em busca de novas estranhezas como que captadas através de espelho art–nouveau, até morrer, como Lima, às vésperas do Modernismo que só moderniza a nossa poesia, inicialmente (de 1922 a 1928).
O que eu estou querendo ressaltar é que, desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perdendo a força inicial, de raiz “psicológica” (vá lá a palavra!) e apesar dos esforços díspares — em tantas e tão diversas direções — de Dionélio Machado, no Sul, de Cornélio Penna, em São Paulo, e de Lúcio Cardoso, no mundo fixo tanto do submundo urbano quanto dos porões dos velhos solares… se o arco dessa nossa volta caprichosa não tivesse que elidir, por ora, o problema do romance regional como um subproduto modernista. Lúcio, aliás, começou aderindo (na primeira hora da influência, enorme, de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego) à receita do melhor do regionalismo, ao publicar seu romance de estreia Maleita (1934).
Em si mesmo, isto é, na obra que vai publicando de forma quase seqüenciada (1935, 1936), o que esse escritor “à margem” opera é a passagem de volta para o futuro da literatura que perdemos (se é que me faço entender, no curso sinuoso que estou antecipando). Ao introduzir, afinal, o meu assunto — Lúcio Cardoso — no esquema de análise que o vê como um “elo” meio perdido, o que eu pretendo é alinhá-lo como herdeiro daquela modernidade inicial da nossa literatura, se a ele juntamos, numa etapa posterior, os nomes quase antinômicos (?) de Clarice e de Rosa, num mesmo plano introspectivo e de invenção etc. Para a ótica mais ortodoxa — em se tratando do que apenas parece “linear” na evolução da narrativa brasileira —, certamente que eu acabo de dar alguns saltos mortais, ao propor uma espécie de elipse do regionalismo do qual só recentemente fomos nos emancipando — o que permite que se chegue a Lúcio como “módulo intercambiável” do quadro (pulando-se — sempre é bom que se diga — o longo hiato que torna Lúcio, agora, o nosso romancista psicológico “de volta” e tudo o mais)…
Num dos saltos, atropelei Octávio de Faria — e lamento-o, sinceramente. Ele tentou escrever seu roman fleuve, a “Tragédia Brasileira”, não conseguiu (mas tentou), e a sua obra-prima está fora da “Tragédia”: leiam as Novelas da Masmorra, do velho Octávio, no dia de São Nunca-de-tarde em que forem reeditadas (atenção, editores dorminhocos sonhando em jantar com Paulo Coelho) e estarão a braços com três das melhores ficções brasileiras de todos os tempos. Prosseguindo: Octávio talvez precisasse apenas alargar a visão católica, para dar o outro tipo de salto necessário — embora a força estivesse, na altura, com aquela asa “torta” do Modernismo (o regionalismo), que de qualquer modo iria dar o “norte” à bússola do romance que ainda vigora nos dias de hoje, por meio de velhos e novos (como Francisco Dantas e outros).
Lúcio Cardoso é, para mim, o grande romancista que faltou, o Faulkner que esperávamos e que não veio, à brasileira, na obra de passagem para a modernidade pós-30. Daquele “pontapé” inicial — e seus desdobramentos — é ele, com certeza, um criador de maior ambição do que Cornélio Penna, com aquela literatura de rendas e bordados (“romances de antiquário”, na visão de Mário de Andrade), na sala onde a menina morta nos olha desde um pálido retrato. O vento sopra as cortinas das grandes janelas e, no Sul, iria trazer a voz de Verissimo, que pensava que era um romancista argentino educado em campo de neve americana. Não era. Ninguém irá se impactar, atualmente, com novelas ao estilo de Fernando Namora, sobre dilemas amorosos de médicos vacilantes que serão depois trocados por jagunços farroupilhas — em tom épico forçado —, quando o vento forte da literatura latino-americana soprar, nos ouvidos de Erico, com trompa rouca demais para se fazer ouvida onde gritam todos os diabos da casa sem cortinas de renda e sem trancas nas portas da fronteira, casa arrombada, casa de demônios, casa assassinada. A literatura dos interiores enlouquecidos já se acercara pela mão do pontilhista Luiz Jardim — com vocação de voyeur (em Confissões do meu tio Gonzaga) que recuou um passo do tema do incesto (melhor e mais alto do que o do muro da vizinha do lado) — e, assim, é Lúcio mesmo o único Faulkner que temos, virado para dentro e para fora, perseguido pelo difícil amor de Deus e se sentindo, na carne, a morada do Diabo.
Antonio Gala nos diz que “o corpo guarda sem saber a marca dos desejos consumados, e também talvez dos que não se consumaram e dos que nunca poderão se consumar”. Somente em Lúcio o leitor de verticalidades enxerga — no romance pós-regionalista — o portador daquela angústia que passou de moda porque perdemos o sentido de transcendência do ato de viver, não só misterioso, mas danação que cumpre “decifrar”. Quando o poeta Lêdo Ivo (que, nos anos 40, dividiu apartamento com o escritor) afirma ser Lúcio “o grande emissário da noite, da sombra e do silêncio numa literatura que sempre foi solar e tropical”, ele situa bem o escritor que, de início, rendeu tributo à camisa-de-força regional (tão forte era), ao estrear com um romance que traça a trajetória do seu pai aventureiro, Joaquim Lúcio Cardoso, fundador de Pirapora. Salgueiro (1935) seguiria ainda a mesma receita, mas A luz no subsolo, do ano seguinte, e principalmente Dias perdidos (1938) e a novela Mãos vazias fariam desviar sua ficção para o intimismo avant-la-lettre que Lúcio vai representar — mesmo “fora de lugar” — na prosa brasileira do pós-guerra. A luz no subsolo ainda é um texto indeciso entre as duas pulsões — a solar e a noturna, para ecoar a palavras de Lêdo — mas já trazia uma força nova, que Mário de Andrade de imediato reconheceu: “Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas compreendi perfeitamente a sua finalidade de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas”.
Mário não poderia imaginar que, anos mais tarde, Lúcio daria início justamente à sua Trilogia do mundo sem Deus — focado na terra desolada do mesmo Rio de Janeiro a que se devotou Octávio de Faria, sem no entanto a coragem do mergulho de Lúcio no submundo das modernas cidades ornadas dos colares de prostitutas, alcoólatras e assassinos. As novelas Inácio, O enfeitiçado e Baltazar (esta, inédita), recém-lançadas pela Civilização Brasileira, selo da Editora Record, fazem parte do projeto de investigação que Cardoso não chegou a completar com relação ao submundo carioca. Sob a pele das coisas, seu olhar não se deixa fascinar pela cidade — ao contrário da insustentável leveza da literatura do amigo Aníbal Machado, por exemplo. O próprio Lúcio explica a diferença, abismal, de atitudes: “Para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto (digo TUDO: as casas cheias de sombras e promessas aliciantes, os grandes becos da necrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, o inimigo subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que pode decidir o futuro, tudo).”
A “lenda urbana” da vida do escritor dá conta de que, nesse período, ele teria chegado a contratar um matador de aluguel para persegui-lo, de modo a sentir na pele a sensação do seu personagem jurado de morte. O que há de certo é o que Lúcio escreveu em cartas como as destinadas a Cornélio Penna, o autor de A menina morta, que merecia toda a sua confiança: “É impossível a alguém viver como eu vivo, sem explodir ou morrer um dia. Estou aqui sem coragem de atravessar o dia, de reunir as minhas numerosas máscaras…”
Clarice Lispector também manteve correspondência com Lúcio e comprova essa tormenta interior (ou a “máquina infernal da mente que Deus me deu”, nas palavras do escritor), ao mesmo tempo em que testemunha a respeito também da influência que exerceu sobre os autores da sua geração, a partir de quando o seu caminho próprio (para a interioridade) se esclareceu para ele. Tanto quanto detestou o título O lustre, foi o escritor quem “batizou” Perto do coragem selvagem (nunca achei esse título “parecido” com Clarice; sempre achei que deveria de uma Carson MacCullers ou de um… Lúcio Cardoso) e, segundo ela, foi o seu “muito querido amigo” quem lhe ensinou “a conhecer as pessoas através das máscaras”. Alguns amigos da Lispector dão como certo que a admiração da escritora chegou a resvalar para o terreno amoroso, num sentimento impossível de ser correspondido por Lúcio, homossexual apaixonado pelas mulheres apenas como criador capaz de instilar vida em personagens como Nina — de Crônica da casa assassinada — que Wilson Martins tem certeza de que “ficará como uma das grandes mulheres do romance brasileiro. Sua personalidade imperiosa e despótica, seu enigma secreto dominam não somente a chácara e a família dos Menezes, mas, ainda, e sobretudo, o próprio leitor”.
Essa — a obra-prima de Lúcio — foi relançada pela Editora Record, que também reapresentou Mãos vazias e O desconhecido, em homenagem aos 90 anos do escritor mineiro. E a editora Luciana Villas-Boas anuncia que a decisão da editora já foi sacramentada em contrato: irá relançar toda a obra de Lúcio Cardoso (inclusive o Diário completo), além dos romances Maleita, Salgueiro, A luz no subsolo e Dias perdidos. O projeto todo permitirá talvez uma melhor visão do que aqui se tentou esboçar, impressivamente: a do elo perdido cardosiano como uma peça a repor na cadeia “não-evolucionista” que confina o romance brasileiro de hoje a tratar só do Intranscendente (com exceção de Raimundo Carrero e alguns poucos).
A Record nos promete uma “surra” de Lúcio Cardoso — e é isso mesmo que estava faltando.